Constituinte. A Assembleia que fez a constituição iniciou-se há 50 anos

25 de Abril de 1975, um ano depois da revolução, 311 deputados representantes de sete forças políticas deram início à Assembleia Constituinte. Marcelo Rebelo de Sousa (PSD), Arons de Carvalho (PS) e Carlos de Brito (PCP), recordam episódios marcantes desses tempos.

Quatro momentos da Constituinte’

O Presidente da República destaca o discurso de Mário Sottomayor Cardia (PS) avançando com o pacto MFA/Partidos como um dos mais relevantes para que os deputados pudessem ter concluído os trabalhos.

por Marcelo Rebelo de Sousa

Pede-me Raquel Abecasis um episódio da Assembleia Constituinte eleita há cinquenta anos. Uma Assembleia Constituinte eleita em plena Revolução – no seu fluxo, ou seja, radicalização –, que convive quase um ano com essa Revolução, e termina com ela, em refluxo e fim, não tem um, mas centenas de momentos importantes.

Decidi escolher quatro de entre todos eles, por assinalarem instantes particularmente importantes para a vida de quatro partidos – os maiores – e da própria Constituinte.

Primeiro momento.

Os partidos à direita do PCP decidiram, logo no debate e votação do Regimento, aprovar a existência de um período de antes da Ordem do Dia, para discutir o contexto político que enquadrava a futura Constituição.

Ou seja, contra a posição do PCP, MDP/CDE e UDP, a maioria PS-PPD-CDS converteu a Constituinte em fórum crítico relativamente ao curso da Revolução.

O PCP passou a abandonar o hemiciclo de São Bento enquanto durasse o período de antes da Ordem do Dia, só regressando no seu término.

Ficariam o MDP/CDE e a UDP.

Até que, um dia, compreendendo que perdia mais do que ganhava com a ausência, voltou para ficar e participar nas acesas controvérsias sobre a Revolução.

E esse momento quis dizer, sem o dizer, que o fluxo revolucionário se convertera em refluxo.

A Constituição ganhara e a Revolução perdera.

Segundo momento.

Terminado o fluxo revolucionário e iniciado o refluxo, o fim do Verão e transição para o Outono de 1975 foi um tempo agitadíssimo. Uns, a sentirem o chão a fugir debaixo dos pés, outros a afirmarem o crescendo do seu poder, no MFA e no universo partidário.

Tudo culminando no 25 de Novembro.

É, então, nesse virar de maré, que Mário Sottomayor Cardia tem o seu excecional discurso na tribuna, avançando com a proposta de novo Pacto MFA-Partidos e explicitando que, se necessário fosse, a Assembleia Constituinte continuaria a trabalhar fora de São Bento e fora de Lisboa. Não foi necessário, mas muitos, talvez a maioria dos constituintes do PS, PPD e CDS chegaram a partir para o Porto. Fui dos que ficaram em Lisboa, para garantir a presença na Constituinte e no Expresso.

O discurso de Cardia foi dos mais relevantes de toda a Constituinte.

E marcou, limpidamente, quem ganharia as eleições e passaria a vencer a Revolução – o Partido Socialista. Seria o vencedor civil da Revolução e da Constituição e, nele, Mário Soares.

Terceiro momento.

Véspera da votação final global.

O PPD perdera, por cisão, quase metade da sua bancada, que saíra pela esquerda.

Tem de decidir como vai votar a Constituição.

A maioria entende que deve aprovar, pela vitória da Constituição sobre a Revolução, pelo somatório de conquistas nos Direitos Fundamentais e na Organização do Poder Político, e para não deixar a vitória total à esquerda – PS, que aprovara Direitos e Organização Política com a direita e Organização Económica e Social com a esquerda –, e ainda os demais partidos de esquerda, que quereriam assumir como seu êxito global o que, na verdade, fora parcial.

Uma minoria do Grupo Parlamentar do PPD prefere, aparentemente, equacionar o voto contra.

Francisco Sá Carneiro, nessa noite de vésperas, num comício da JSD, é claro: o PPD não só deve aprovar a Constituição, como proclamar ser uma grande vitória sua.

Passo tático-estratégico que repetiria, meses depois, ao assumir a candidatura de António Ramalho Eanes como, primordialmente, sua, também.

E, assim, ficou unânime o voto do PPD – a favor da Constituição, com a convicção adicional acrescentada pelo líder histórico, retornado à liderança, numa postura mais moderada, isto é, à direita, do que a do seu partido, quando, quase um ano antes, iniciara o processo constituinte, com o PS. E o PPD ganhou o seu papel central, tão útil para o futuro, imediato e mediato.

Quarto momento.

Instante da votação final global.

Dia 2 de Abril de 1976. Parece provável o voto unânime.

O CDS votara, mais ou menos, como o PPD, ao longo de todo o processo.

Segredo bem guardado.

O CDS votaria contra.

Estupefação generalizada.

E, no entanto, esse segredo de última hora, valeria ao CDS o manter-se como barreira, delimitando à direita, a fronteira entre a Democracia e a Não Democracia.

Valeria décadas, nas quais, à sua direita, nenhuma força política vingaria entre si e esse muro, então intransponível.

Quatro momentos definidores.

Um – o do início da vitória da Constituição sobre a Revolução. E de recuo do PCP.

Outro – o da vitória efetiva da Constituição e do consumar do fim da Revolução. Com o PS e Mário Soares vencedores.

Terceiro – o da opção do PPD pela conquista do centro, e até centro esquerda, culminando, dez anos volvidos, nas maiorias de Cavaco Silva.

Quarto e último – o da escolha do CDS pela direita, mantendo o discurso do ‘rigorosamente ao centro’, mas garantindo que a sua direita, por três décadas, ou um pouco mais, não haveria ninguém.

Palácio de Belém, 21 de Abril de 2025
Presidente da República, ex-deputado do PPD

Foi um orgulho

Arons de Carvalho ainda se espanta por ter sido um dos mais jovens escolhidos para  fazer a constituição.

por Alberto Arons de Carvalho

Quando, no início dos anos 70, durante a governação de Marcelo Caetano, resolvi assistir a uma sessão da Assembleia Nacional, estava muito longe de imaginar que, poucos anos depois, me sentaria no lugar onde estavam aqueles deputados, cuja prestação, sem me surpreender, tanto me desapontara, pela total ausência de pluralidade de opiniões, substituídas por um discurso cerimonioso, quase sempre panegírico e até superficial.

Afinal, pouco mais de um ano depois do 25 de Abril, seguramente uma das datas mais importantes da minha vida, aí estava eu, um dos mais jovens deputados, a conviver com figuras de vários quadrantes políticos, que tanto admirava, desde alguns corajosos lutadores contra o regime deposto e antigos exilados e presos políticos até eminentes juristas e professores da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde me acabara de licenciar.

A experiência como deputado constituinte foi estimulante. Não apenas por participar – e tanto aprender… – na elaboração do texto fundador da democracia portuguesa. Mas igualmente por presenciar o debate de ideias, tantas vezes tão contraditórias, bem como por poder contribuir para a redação daquele texto. E por assistir presencialmente e participar na definição de aspetos básicos, embora fundamentais, do novo quadro parlamentar em democracia: onde se sentavam os diferentes grupos parlamentares? E que instalações tinham no edifício? Como se organizava a elaboração do texto da Constituição no Plenário e em comissões? Quanto tempo poderia durar a intervenção de cada deputado? Haveria ou não um período antes da ordem do dia onde os deputados poderiam analisar a situação política?

A enriquecedora experiência de deputado constituinte, que procurei conciliar com a liderança da Juventude Socialista, viria, todavia, a terminar em 21 de outubro de 1975, quando, já depois de concluídos os debates e a redação dos artigos da Constituição relativos à comunicação social, resolvi interromper a atividade parlamentar para abraçar um novo projeto jornalístico que sucedia ao República – o jornal A Luta.

Ex-deputado do PS

Foi muito trabalho de bastidores 

Carlos Brito lembra que os líderes estavam ocupados e foram os deputados que fizeram o trabalho.

por Carlos Brito

A realização de eleições livres para uma assembleia constituinte, no prazo de um ano, foi um dos compromissos concretos que os militares do MFA assumiram com o povo português, ao derrubarem o governo da ditadura fascista, em 25 de Abril de 1974. Diga-se, ao principiar estas linhas, que foi um compromisso plenamente honrado, com realização das eleições, em 25 de Abril de 1975, faz agora 50 anos.

Foi neste clima de transição muito crispado que a Assembleia Constituinte iniciou os seus trabalhos e os prosseguiu, numa primeira fase. Internamente, as grandes polémicas oratórias dominavam as sessões e não deixavam nada para a Constituição; no plano externo, tornou-se erradamente o alvo das contestações e reivindicações sociais, que culminaram, no seu cerco por dezenas de milhar de trabalhadores da construção civil.

Numa segunda fase, os grupos parlamentares foram progressivamente assumindo o mandato patriótico de que estavam investidos. As direções das bancadas do PS, PCP, PPD e MDP foram capazes de se entender e cooperar num plano de trabalho consensual e organizar os deputados de forma a fazer-se, no prazo devido, um texto constitucional. O CDS fazia oposição ideológica sistemática., mas educada. Até a UDP melhorou. Em largos períodos, os deputados trabalharam em roda livre, tomando como orientação os projetos de constituição dos respetivos partidos, que eram bastante avançados. Os líderes máximos dos partidos andavam envolvidos na luta de posições e nas batalhas políticas do dia a dia.

Foi uma surpresa para eles quando os deputados terminaram e lhes apresentaram o seu trabalho. Álvaro Cunhal deu-lhe nota muito positiva. Até ver não acreditava que aquela composição partidária da Assembleia produzisse coisa de jeito. Tornou-se grande defensor da Constituição. Mário Soares, com o seu orgulho partidário, proclamou: isto é o grande trabalho do PS! Sá Carneiro, sem atender à prestação dos seus deputados, vociferou: é uma constituição marxista.

Não ficou por aqui o líder já contestado do PPD, lançou-se numa conspiração com militares e líderes da direita para que o texto constitucional não fosse promulgado e antes fosse submetido a referendo.

A conter e esvaziar esta conspiração afirmou-se então o poder dos verdadeiros vencedores do 25 de Novembro: Costa Gomes, Ramalho Eanes e os Nove.

Num ato sem precedentes, revolucionário, a 2 de Abril, data fixada para votação final global do texto constitucional, o Presidente da República, Costa Gomes, deslocou-se de Belém a S.Bento e logo que os deputados concluíram a votação, aprovando-o, assinou a promulgação da Constituição, na própria mesa da Assembleia Constituinte. Sem mais entraves, entrou em vigor a 25 de Abril de 1976, dois

anos depois do dia inaugural da Revolução.

Ex-deputado do PCP