Foi considerado um papa «diferente». Um papa aberto, acolhedor e transparente. Conhecido pela sua abordagem humilde e pelo seu foco em temas como a justiça social, a paz e a proteção do meio ambiente, reafirmando a missão da Igreja de servir a todos, especialmente os marginalizados, foi o primeiro jesuíta a sentar-se na cadeira de São Pedro, o primeiro Papa latino-americano e o primeiro Sumo Pontífice não europeu em mais de 1200 anos. Adotou o nome Francisco em homenagem a São Francisco de Assis, considerado o padroeiro dos pobres. Ficou também conhecido pela proteção dos mais desfavorecidos. Tanto que celebrou, em 2017, o primeiro Dia Mundial dos Pobres. «Eles abrem o caminho para o céu», afirmou na altura. «Na eleição [para o papa], tinha ao meu lado o arcebispo emérito de São Paulo, Dom Cláudio Hummes, um grande amigo (…) E quando os votos chegaram a 2/3, aconteceu o aplauso esperado, pois, afinal, havia sido eleito o Papa. (…) Ele abraçou-me e disse: ‘Não se esqueça dos pobres’. Aquilo ficou-me na cabeça. Lembrei imediatamente de São Francisco de Assis», escreveu o Vatican News, citando-o.
O Papa Francisco morreu, na segunda-feira, aos 88 anos, na Casa Santa Marta, no Vaticano, vítima de um AVC e paragem cardíaca irreversível. «Esta manhã, às 07h35 (menos uma hora em Lisboa), o bispo de Roma, Francisco, regressou à casa do Pai. Toda a sua vida foi dedicada ao serviço do Senhor e da sua Igreja», anunciou o camerlengo Kevin Farell. Recorde-se que o líder da Igreja Católica estava ainda a recuperar de problemas respiratórios graves que o levaram a um internamento prolongado no hospital, onde deu entrada com uma bronquite, que evoluiu para infeção e posteriormente para pneumonia bilateral.
Uma Igreja mais aberta
Enquanto chefe da Igreja, marcou também pela simplicidade e tornou-se popular até entre os não crentes, espantados com a maneira como tentou abrir mentalidades e encontrou «normalidade», mesmo dentro de funções. Desde a escolha da Casa de Santa Marta para viver, onde celebrava a missa diariamente e tomava refeições com os restantes residentes, deixando o Palácio Apostólico, às frequentes saídas do Vaticano, algumas delas para gestos tão simples e inesperados como a compra de sapatos ou de óculos, até ao seu gosto por futebol. Era adepto do clube San Lorenzo de Almagro, Argentina.
Defendeu sempre que a Igreja «é de todos». Em 2015, por exemplo, falou sobre divorciados que voltam a casar-se, dizendo que «essas pessoas não são excomungadas e não devem ser tratadas como tal. São sempre parte da Igreja». Nessa altura, Francisco afirmou que os pastores devem discernir situações diferentes entre «quem foi confrontado com a separação e quem a provocou», mas que «a Igreja não tem portas fechadas para ninguém».
Teve também uma posição pioneira sobre a homossexualidade. «Se uma pessoa é gay e procura o Senhor com boa vontade, quem sou eu para julgá-la?», disse poucos meses depois de se ter tornado Papa. Numa entrevista à Associated Press em janeiro de 2023, defendeu que «ser gay não é crime» e que as leis que criminalizam a homossexualidade são «injustas». Ainda que nunca tenha equiparado o casamento homossexual a parte do direito canónico, sempre foi transparente na sua opinião quanto às uniões civis, declarando que os homossexuais «têm o direito de formar uma família».
Disponibilizou-se ainda para encontrar-se com pessoas homossexuais e transgénero, ouviu-as e até aconselhou os pais. «Primeiro, rezem. Não condenem. Dialoguem. Façam espaço para o vosso filho ou filha se expressar (…) Ignorar um filho com tendências homossexuais é uma falta de maternidade e paternidade».
Aliás, defendia que «o único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo é quando queremos ajudá-la a levantar-se», sublinhando a importância de olhar para o «guarda-roupa da alma».
A sua eleição – no dia 13 de março de 2013 como sucessor de Bento XVI, após este abdicar do papado –, simbolizou, segundo muitos, uma série de marcos até então inéditos na Igreja Católica. A verdade é que, ao longo dos últimos anos, o Pontífice argentino combateu severamente crimes sexuais e financeiros na Igreja, assinou a primeira encíclica ambiental da História e trouxe mais diversidade regional para a cúpula do Vaticano. Além disso, aumentou o número de mulheres na sede da Igreja Católica Romana. Em 2023, Francisco contava com 1,165 funcionárias em relação a 846 no início do seu pontificado.
As origens humildes
Segundo o site oficial do Vaticano, nascido Jorge Mario Bergoglio na capital argentina no dia 17 de dezembro de 1936, era filho de imigrantes italianos do Piemonte: o seu pai, Mário, trabalhava como contabilista no caminho de ferro; e a sua mãe, Regina Sivori, ocupava-se da casa e da educação dos cinco filhos. A sua família fugiu da Itália sob o regime fascista de Benito Mussolini, sete anos antes do seu nascimento e lutaram com dificuldades económicas.
Regina preparava pratos com sobras, como esparguete com almôndegas e Jorge Mario comia bem. As suas comidas favoritas eram doce de leite e pratos típicos argentinos.
«Desde o meu segundo ano de vida até os meus 21 anos, vivi no número 531 da rua Membrillar. Uma casa térrea com três quartos, uma casa de banho, uma cozinha com sala de jantar, uma sala de jantar mais formal e um terraço», revelou Francisco, na sua autobiografia Esperança, escrita com Carlo Musso. De acordo com o mesmo, a mãe perdeu um filho e decidiu ficar-se por aí. «A tribo estava completa. Ela costumava dizer que nós – os cinco filhos –, éramos como os dedos de uma mão, cada um diferente do outro; todos diferentes e todos igualmente seus: ‘Porque se eu furar o meu dedo sinto a mesma dor que sentiria se furasse outro’», confidencia no livro.
Segundo a BBC, a sua notória sensibilidade junto aos marginalizados também têm raízes na sua biografia: «Quando alguém me acusa de ser um papa ‘villero’, apenas rogo para que seja sempre digno disso». Os Cura Villeros ou Padres dos Pobres são um grupo de sacerdotes argentinos comprometidos com o trabalho pastoral nas periferias.
Lembra a mesma publicação que, na história urbanística de Buenos Aires, «as villas são assentamentos precários, de ocupação informal com submoradias, semelhantes às favelas brasileiras». E Jorge Bergoglio sempre foi próximo às pessoas que lá viviam, já que, durante a sua infância a região era «um caleidoscópio de etnias, religiões e profissões», um «microcosmo complexo, multiétnico, multirreligioso e multicultural». No bairro, coexistiam imigrantes de diversas nacionalidades, descreveu na autobiografia, adiantando que convivia com amigos muçulmanos.
De acordo com Francisco «as favelas são uma concentração de humanidade, formigueiros com centenas de milhares de pessoas». Famílias que, na sua maioria, vêm do Paraguai, Bolívia, Peru e do interior do país. «Elas nunca viram o Estado, e quando o Estado está ausente (…) não fornece casas, eletricidade, gás ou transporte, não é difícil que uma organização paralela seja criada no seu lugar», explicou. Com o tempo, as drogas começaram a circular em grande escala, e com elas vieram a violência e a desintegração familiar.
«O ‘paco’, a ‘pasta de coca’ – o que resta do processamento da cocaína para os mercados ricos – é a droga dos pobres: um flagelo que multiplica o desespero. Ali, naquelas periferias que para a Igreja devem ser cada vez mais o novo centro, um grupo de leigos e sacerdotes vivem e testemunham o Evangelho todos os dias, entre os descartados de uma economia que mata», continuou. Por isso, para si, «aqueles que dizem que a religião é o ópio do povo (…) deveriam primeiro dar uma volta pelas favelas: veriam como, graças à fé e a àquele empenho pastoral e civil, progrediram de maneira impensável, mesmo no meio de enormes dificuldades. Também experimentariam uma grande riqueza cultural. E perceberiam que, assim como a fé, todo serviço é sempre um encontro, e que somos nós, acima de tudo, que podemos aprender muito com os pobres», garantiu.
Nessa altura, quatro das suas vizinhas eram prostitutas. Uma delas, conhecida como Porota, chegou a procurá-lo duas vezes: a primeira vez, em 1993, quando já era bispo auxiliar de Buenos Aires, e Francisco recebeu-a. Nessa altura, a mulher já tinha mudado de vida e trabalhava em lares de idosos. Mais tarde, voltou ao contacto, pedindo-lhe que rezasse por si e pelas amigas, todas ex-prostitutas e prostitutas. «Queriam confessar-se. Foi uma celebração lindíssima. Porota estava contente, quase comovida», revelou. Foram próximos até ao final da vida dessa mulher.
No livro, Francisco fala ainda de um dos seus colegas que, em 1950, foi preso. Segundo o mesmo, roubou a arma do pai, que era polícia, e matou um outro jovem. Porque «a mente do ser humano às vezes é um mistério insondável», refletiu. «Foi detido na secção penal de um manicómio, e eu quis visitá-lo. Foi a minha primeira experiência numa prisão», lembrou. «Pude cumprimentar o meu amigo através de uma janelinha minúscula, do tamanho de um selo (…) Foi terrível, fiquei profundamente abalado», confessou. O amigo acabaria por se matar tempos depois, aos 24 anos.
De químico e segurança de discotecas a Papa
O líder religioso, foi sempre criado com base na fé católica. Apesar de ter tido uma adolescência normal – saia com os amigos e ia a festas -, não faltava a uma única missa. Aos 15 anos foi escolhido pelo seu professor de religião para preparar a primeira comunhão de dois colegas que ainda não tinham recebido o sacramento. Na infância, também teve uma grande paixoneta por uma jovem chamada Amalia. Segundo o que a própria contou citada pelo jornal argentino La Nacion, com 12 anos, chegou a pedi-la em casamento. «Se não me caso contigo, viro padre», disse-lhe.
O romance terminou devido à proibição dos pais de Amalia. «Quando éramos jovens ele escreveu-me uma carta e eu não lhe respondi. Queria que desaparecesse do mapa. O meu pai bateu-me porque me atrevi a escrever uma carta a um menino. Ele tinha desenhado uma casa com um teto vermelho e branco que em baixo dizia: ‘Esta é a casa que te vou comprar quando nos casarmos’», contou. Depois, veio a proposta de Bergoglio e nova repreensão. Nunca mais o viu. «Os meus pais afastaram-me dele e fizeram de tudo para nos separarmos. Agora ambos somos muito humildes e quem sabe almas gémeas, porque amamos os pobres», adiantou.
Francisco diplomou-se depois como técnico químico. No entanto, acabou por escolher o caminho do sacerdócio, entrando no seminário diocesano de Villa Devoto.
Entre os 14 e 19, segundo o próprio, chegou a trabalhar como empregado de limpeza numa fábrica de meias, onde o seu pai era contabilista. Além disso, trabalhou como segurança de uma discoteca quando era estudante universitário em Buenos Aires e num laboratório químico para conseguir um dinheiro extra.
Em 11 de março de 1958, entrou no noviciado da Companhia de Jesus. De acordo com o jornal do Vaticano, completou os estudos humanísticos no Chile e, tendo voltado para a Argentina, em 1963, licenciou-se em Filosofia no Colégio de São José, em San Miguel.
De 1964 a 1965, foi ainda professor de Literatura e Psicologia no Colégio da Imaculada de Santa Fé e, em 1966, ensinou as mesmas matérias no Colégio do Salvador, em Buenos Aires. De 1967 a 1970, estudou Teologia, licenciando-se também no Colégio de São José.
Escreve a mesma página que a 13 de Dezembro de 1969 foi ordenado sacerdote pelo arcebispo D. Ramón José Castellano. De 1970 a 1971 deu continuidade à sua preparação em Alcalá de Henares, na Espanha, e a 22 de Abril de 1973 emitiu a profissão perpétua nos jesuítas.
Regressou depois à Argentina, onde foi mestre de noviços na Villa Barilari, em San Miguel, professor na faculdade de teologia, consultor da província da Companhia de Jesus e também reitor do colégio.
No dia 31 de Julho de 1973 foi eleito provincial dos jesuítas da Argentina, cargo que desempenhou durante seis anos. Depois, retomou o trabalho no campo universitário e, de 1980 a 1986, foi novamente reitor do colégio de São José, e inclusive pároco em San Miguel. No mês de Março de 1986 partiu para a Alemanha, onde concluiu a tese de doutoramento; em seguida, os superiores enviaram-no para o colégio do Salvador, em Buenos Aires, e sucessivamente para a igreja da Companhia, na cidade de Córdova, onde foi diretor espiritual e confessor.
Foi no dia 28 de fevereiro de 1998 que se tornou arcebispo de Buenos Aires (funções que desempenhou até ser eleito Papa) e cerca de três anos depois, em 21 de fevereiro de 2001, foi elevado ao cardinalato por João Paulo II.
Foi nessa condição que participou nos dois últimos conclaves, o de 2005, que elegeu o cardeal Joseph Ratzinger como Papa, e o de 2013, no qual foi eleito Papa, na sequência da renúncia de Bento XVI.
Decorre no sábado às 9 horas, na Basílica de São Pedro, o seu funeral, que antecederá o conclave da sucessão, previsto para o próximo mês. A data foi definida em reunião dos cardeais na Santa Sé. E, uma última vez, Francisco rompeu com a tradição, definindo um benfeitor como responsável pelo pagamento do seu funeral. Em testamento, o jesuíta detalhou também a vontade de ter uma sepultura simples, sem ornamentos especiais e com uma única inscrição do seu nome em latim: «Franciscus».