A conversa à mesa do almoço tinha um objetivo: juntar os filhos dos dois protagonistas do primeiro e único Bloco Central dos 50 anos da democracia portuguesa. João Soares, filho de Mário Soares e Paulo Mota Pinto, filho de Carlos Mota Pinto tiveram também eles, anos depois, vida política ativa nos partidos que os pais lideraram no início da democracia.
Que memórias têm desse tempo? Que avaliação fazem de uma solução que os pais adotaram e que se tornou mal amada aos olhos dos portugueses e tóxica para as lideranças seguintes de socialistas e sociais democratas? E como olham para uma hipotética repetição da receita, num tempo em que várias vozes começam a achar que é a solução para sair do impasse político em que o país parece estar afundado?
Com o guião bem definido, João Soares e Paulo Mota Pinto chegaram à hora marcada ao restaurante na rua de São Bento, mesmo em frente ao parlamento. Logo à chegada, lembraram os tempos em que os dois deputados no tempo do governo de Passos Coelho, partilharam funções na comissão de fiscalização dos serviços secretos. «Fizemos um bom trabalho e tínhamos muita informação», lembrou João Soares que sublinhou as diferenças entre o acesso a informação que tinham os deputados portugueses, ao contrário do que acontecia com os congéneres de outros países. «Nós cheirávamos muito mais do que os americanos», referiu, com o assentimento de Mota Pinto.
Eanes, Cunhal e a crise financeira
Carlos Mota Pinto tinha 18 anos quando o pai, então líder do PPD, iniciou negociações com Mário Soares para um acordo de governo. «A primeira coisa de que me recordo é da reeleição do general Eanes, onde houve uma divisão do PS. O meu pai que tinha sido primeiro-ministro num governo nomeado pelo general Eanes, escreveu-lhe uma carta a explicar porque é que não o podia apoiar, porque ele foi eleito por uma base totalmente diversa da que o tinha eleito, até diria inversa, e nessa altura houve uma divisão no PS, porque o Dr.. Soares não o queria apoiar», recorda.
João Soares concorda que não se pode compreender o que levou, na altura, à junção no governo de PS e PPD, sem olhar para as circunstâncias políticas numa altura em que a democracia dava ainda os primeiros passos com grandes atribulações. O filho do líder histórico dos socialistas refere que tem respeito por Eanes, mas recusa que «façam dele um santinho. Ele é o único caso de um Presidente que, em exercício de funções, lançou um partido a partir da Presidência da República».
O PRD, que nasceu com a inspiração de Eanes, surgiu no fim do governo do Bloco Central, que governou de 9 de junho de 1983 a 6 de novembro de 1985. Dois anos em que uma coligação contranatura entre os dois maiores partidos portugueses teve de enfrentar uma crise financeira «igual ou pior do que a que vivemos em 2011», mas que atravessou com sucesso esse período. E de caminho concluiu com sucesso a entrada de Portugal na CEE: «o Bloco Central tomou a decisão mais importante do século XX em Portugal. E na altura não era consensual, tinha a oposição da União Soviética e do Álvaro Cunhal», recorda João Soares. Paulo Mota Pinto concorda e acrescenta, «confundir o Bloco Central, com o Bloco Central de interesses, a ideia de que os dois partidos juntos ocupam todos os lugares, é desmentida pela história. A história mostra que esse é um problema das maiorias absolutas».
João Soares lamenta que as narrativas que se fizeram posteriormente não correspondam ao que realmente se passou. Para o Ex Presidente da Câmara de Lisboa «há um parti pris que resulta de uma narrativa que foi criada desde que o Bloco Central acabou. É um parti pris que é construído numa narrativa profundamente negativa e nós vivemos num mundo em que as narrativas dominam, as pessoas não fazem a análise objetiva dos resultados». Na visão de João Soares, esta «narrativa» fez caminho porque Mota Pinto morreu em 1985, pouco depois do fim do governo do Bloco Central. «O problema foi o desaparecimento do Professor Mota Pinto, porque se não este discurso não ficava impune». E o grande responsável pela diabolização da solução de governo que junta os dois maiores partidos portugueses, foi o senhor que se seguiu na chefia do governo. Aníbal Cavaco Silva foi eleito líder do PSD com o apoio do grupo Nova Esperança, de que faziam parte nomes como, Pedro Santana Lopes, Marcelo Rebelo de Sousa, Durão Barroso e Alberto João Jardim. Na década seguinte governou o país sempre diabolizando o governo que o antecedeu. «O PSD foi o grande responsável por esta narrativa e tirou grandes dividendos disso com Cavaco Silva», explica Paulo Mota Pinto.
O Bloco Central pode renascer das cinzas?
A pergunta começa a ser inevitável, numa altura em que figuras dos dois partidos começam a falar na necessidade de um entendimento entre PS e PSD. Ninguém se atreve a sugerir uma solução idêntica à de 1983, mas fala-se em entendimentos de legislatura.
A maior fragmentação da Assembleia da República, que torna praticamente impossível a obtenção de maiorias absolutas de um só partido, e as linhas vermelhas que inviabilizam entendimentos políticos à direita, são as principais razões que levam figuras como Augusto Santos Silva, Ferro Rodrigues ou Marques Mendes e José Eduardo Martins a defenderem entendimentos pós-eleitorais entre socialista e sociais-democratas que possam assegurar a estabilidade governativa.
À mesa do almoço essa possibilidade é vista com algum ceticismo. Paulo Mota Pinto acha que esta é uma solução de exceção e acredita que «não está criado o contexto para uma solução desse tipo».
João Soares tem mais dúvidas, concorda que essa não é uma solução provável no debate político caseiro, mas nota que «podemos estar mais próximo do que pensamos. Nós olhamos para o mundo e podemos ver sinais de que podemos estar próximo do que foram as raízes que originaram o que foi o Bloco Central, como solução de emergência, num contexto internacional e nacional complicados».
O socialista diz que a pré-campanha está a passar ao lado de questões que podem condicionar e muito o futuro do país, não só por causa das guerras na Europa e no Médio Oriente, mas também por causa da incerteza que chega do outro lado do Atlântico, com uma administração Norte-Americana muito imprevisível e a tomar medidas que podem criar uma crise económica mundial. Se as ameaças externas se confirmarem, concordam os dois que o entendimento dos dois grandes partidos «pode não só justificar-se como ser necessário».
Mesmo assim o filho do antigo líder social-democrata insiste que neste momento, esta é uma solução que não se vislumbra, até porque os líderes atuais, Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro, têm uma relação difícil, quase incompatível. Já os pais do Bloco Central e dos nossos convidados, Mário Soares e Carlos Mota Pinto tinham boas relações e até já tinham trabalhado juntos no primeiro governo constitucional. «Foi uma solução excecional, com protagonistas excecionais», concordam e João Soares diz que «se um dia tiver de se fazer tem de ser numa lógica que obrigue os protagonistas a mudarem o comportamento».
Já depois de 1985, houve momentos em que socialistas e sociais-democratas tiveram melhores relações institucionais e líderes que se respeitavam mutuamente. O caso mais emblemático aconteceu entre 1995 e 2002, quando António Guterres era primeiro-ministro e Marcelo Rebelo de Sousa liderava o PSD. Amigos de longa data, os dois conseguiram entender-se para que os socialistas, sem maioria no parlamento, pudessem governar sem grandes sobressaltos. Na altura, o atual Presidente da República garantiu logo após ser eleito líder do partido, que deixaria passar os orçamentos de forma a não impedir que Portugal pudesse entrar no Euro com o primeiro grupo de países europeus.
Foram as únicas experiências em que o Bloco Central funcionou e a partir daí tornou-se definitivamente um produto tóxico. Porquê? «O PSD tem aquela ideia de que consegue maiorias contra esse discurso e isso tem marcas muito bem vincadas nas bases do partido», explica Paulo Mota Pinto que chegou a ser líder parlamentar de Rui Rio. João Soares concorda que historicamente, os anticorpos a entendimentos PS/PSD, vêm mais do lado dos sociais-democratas do que dos socialistas, «se se vier a colocar a questão estou convencido que não haverá problemas do lado do PS, o problema é mais o Montenegro que é aquele PSD mais anti PS».
A dificuldade de entendimentos de governo entre os dois maiores partidos é uma originalidade portuguesa, que não tem paralelo na maior parte dos países europeus. Daqui a poucos dias na Alemanha toma posse um governo que junta mais uma vez CDU e SPD numa coligação maioritária para governar com estabilidade nos próximos anos.