MACAM. No centro de uma cidade sitiada, uma subtil rebelião

Num antigo palácio do século XVIII, na Rua Junqueira, em Lisboa, onde viveu o primeiro nomeado português ao Nobel da Literatura, D. Gonçalves Zarco da Câmara, acaba de nascer um hotel de luxo que quer defender um imponente recreio povoado das visões e miragens de um bando de artistas zangados com a realidade

Mal entramos no hotel-museu (e vice-versa), torna-se difícil reconhecer algum dos elementos ancestrais, uma só das pedras que nos remeta para o palácio de inícios do século XVIII, construído por um descendente de Vasco da Gama, Francisco Baltasar da Gama, o marquês de Nisa. Este edifício histórico que passou anos devoluto, deixara na memória recente um rastro mais fundo por ali ter funcionado o Liceu Rainha D. Amélia. Mas agora lança-nos em direção a um tempo indefinido, como que suspenso, sendo um edifício reinventado, arejado, aberto, e que não se deixa situar com precisão. Não nos esquecemos de que é Lisboa, a luz desta cidade amanhecida antes das outras, mantém esse escrúpulo, mas, de resto, é difícil apontar os traços que dominam a nova fisionomia do edifício, cuja arquitetura defende de uma impressão demasiado vincada. Desde logo sente-se um desafogo, uma possibilidade de migração a partir de elementos benevolentes, num espaço que em vez de impor parece abrir-se. A ficção começa precisamente aí, nessa entrada que produz subtis variações ali na Rua da Junqueira, na ligação entre Alcântara e Belém. Poderia ter-se optado pelo reforço de elementos pitorescos, mas parece que a ideia foi livrar-nos do arremedo caricatural que passou a dominar a situação, e tantas vezes faz dela uma narrativa a partir de aspetos que nos são impingidos. Aqui há uma maturidade que transparece pelo corte  com esse colorido sufocante, rejeitando as sugestões que se acotovelam na rua turística, e a dignidade explica-se através e um espaço que permite diferentes disposições e escolhas. Este museu-hotel começa por aí, por um alívio. Sendo mais fácil respirar, é mais fácil reunir-se consigo mesmo. Percebe-se que estamos num sítio que surge como um culminar de aspirações, um projeto de uma vida, e em que o elemento artístico alcançou a sobriedade de um despojamento, e que constrói a sua visão de luxo a partir daí. É preciso ter erguido muitos edifícios para chegar esta lição, que reconhece como o verdadeiro poder mistura em si um elemento de abnegação. O Museu de Arte Contemporânea Armando Martins (MACAM) nasce antes de tudo como uma ficção espacial, ligado mais à respiração do que a uma visão dirigida. Aqui, é possível dizer que a experiência de Armando Martins como promotor imobiliário lhe dá condições especiais de intervir numa cidade arfante, desgastada, que nos mostra o seu ar de organismo derreado pela ânsia e o nervosismo que lhe foi provocada pela sanha de década e meia de sobre-exploração e especulação a partir do seu espaço. Então, a primeira coisa que nos oferece é uma subtil depressão. Ou distensão. Mais do que qualquer uma das 600 obras que o presidente honorário do grupo Fibeira reuniu ao longo de meio século, parece-nos que, neste momento em concreto, aquilo que deve ser destacado antes de mais é o que fez com aquele edifício que, em 1755, pouco foi afetado pelo terramoto que deixou estarrecidas as luminárias da época. O edifício é um fabuloso sulco na paisagem, e é o que permite um verdadeiro compromisso com um museu de arte digno dessa aspiração. Assim o espaço é a primeira vertente de uma curadoria, e que nos permite então pensar o que pode um museu oferecer a uma cidade, que intervenção lhe cabe até no seu efeito de antinomia. Se a ideia de museu na linguagem mais corrente ainda surge tantas vezes associada a algo caracteristicamente obsoleto, anacrónico, que se entende estar em declínio ou até extinto, nunca este deixou, em paralelo, de ser reclamado como símbolo de poder, de imponência e ostentação, sendo um modo de afirmar publicamente o luxo. Num tempo em que a moral parece cingir-se cada vez mais às disposições do lucro, à sua afirmação e esplendor em todas as esferas da vida, a própria arte muitas vezes não exprime outra coisa senão essa moral, até mesmo, ou sobretudo, quando finge assumir uma perspetiva crítica do seu tempo e da cultura, sobretudo se esse dedo apontado não deixa de espelhar uma contradição insanável, estando a obra e o artista absorvida por essa dinâmica, e sendo os agentes culturais incapazes de se subtrair à reprodução da ordem financeira que veio a engolir o mundo da arte. No fundo, os principais museus oferecem-se menos ao pasmo e à admiração dos públicos do que a uma forma de escândalo, ou de deboche quanto aos valores, aos conceitos e às noções que não deixam de nos oferecer uma visão cínica da época. Se pensarmos como os valores artísticos se afirmam hoje num enredo especulativo com mais ligação ao mundo financeiro do que às noções da crítica e da história da arte, ficamos com uma ideia de como tudo se integra num efeito de circulação monetária, sendo que no entender de alguns autores o que importa num museu hoje é exibir peças com um valor de mercado de tal modo exorbitante que provoquem uma espécie de cobiça, produzindo uma excitação não pelas obras mas pelo enigma que as sustenta, e sendo estas tão mais espantosas quanto menos seja possível reconhecer o que leva alguns a pagarem somas astronómicas por elas.

Se até recentemente afirmar sobre alguém que parece uma peça de museu, era qualificá-lo como ultrapassado, mais morto que vivo, e serve como um insulto, equiparando-o a uma espécie de cadáver azucrinante, hoje, o último devaneio aristocrático parece ser o de colecionar essas peças capazes de embevecer todos os sentidos, enleando os elementos estéticos à sedução profana dos ícones de um luxo de ordem quase mórbida. Assim sendo, as condições em que se ergue um museu de arte serão especialmente favoráveis a partir do momento em que rompam com esse feitiço degradante, devolvendo-nos a possibilidade de mergulhar num espaço cuja principal função seja reclamar a ideia de uma zona de exceção ou exclusão, uma autonomia que corta com aquela avidez que reforça como o dinheiro parece ter-se tornado a única verdadeira dinâmica transcendental, cativando-nos de novo para uma relação com um conjunto de obras que prometem devolver-nos a um efeito de suspensão, uma relação de proximidade e intimidade com exemplos do vigor e da vitalidade de criações através das quais alguns dos nossos predecessores lidaram com as limitações que o tempo lhes impôs, procurando alargar, proteger ou intensificar as suas existências. Assim, se o elemento chave desta coleção privada que agora se abre ao público é reclamar uma ambição museológica de serviço público, o fator decisivo na sua intervenção é o facto de o MACAM não contar com qualquer financiamento público, correspondendo inteiramente e até corporizando os ideais de um colecionador privado, o qual, na sua perspectiva algo conservadora dos valores artísticos, menos vocacionado para as obsessões e valores emergentes, traz um legado crucial do passado, com um elemento de retrospeção que prova um alcance muitíssimo poderoso ao reativar as aspirações do passado. Assim, este museu que pretende sustentar-se através das receitas do hotel, senão mesmo ser o elemento diferenciador desta aposta hoteleira, consegue introduzir um elemento agitador limitando-se a ressuscitar uma ideia de arte que está sob ataque nos nossos dias, precisamente devido aos efeitos daquela patologia cínica que reduz tudo a uma etiqueta com um preço ou um valor sumptuário. Aqui, pelo contrário, as aspirações remetem-nos de novo para um sentido de projeto humano, dos desejos de gerações anteriores. Ainda que a proposta museológica estabeleça um compromisso que integra a arte moderna e a contemporânea, percebe-se como a ponte se estendeu daquela para esta, ou seja, do passado para os nossos dias, sem admitir o grau de corrosão e o elemento de generalizada decepção e denúncia que tomou conta de uma arte que se sabe instrumentalizada pelas ficções financeiras. Pelo contrário, a coleção de Armando Martins tem como esteio e fulgor esses elementos de sonho e fantasia que deixam neste mundo apenas vestígios ou representações de uma rebelião imaginária contra as limitações impostas à condição humana de um período que antecedeu o nosso, sendo que nos nossos dias o próprio regime nos atirou para fora do tempo, tentando derrotar a temporalidade histórica. Quando se falou do fim da História, sabemos hoje como, na verdade, essa era uma lógica de rendição absoluta dos homens, uma incapacidade de transmitirem os seus sonhos impossíveis entre si, representarem os seus desejos insatisfeitos e todos esses elementos a partir dos quais se erguem as cidades imaginárias que a ficção pôde sustentar. Um verdadeiro museu de arte deve antes de tudo desafiar as conceções cínicas que condenam a arte a um mero papel decorativo ou a um efeito de requinte e de pura ostentação. Podemos ser cínicos em relação ao MACAM, e perguntar-nos se não é apenas outro hotel de luxo, que se faz valer de uma estupenda coleção de arte para robustecer o seu perfil, o seu estatuto numa cidade onde a oferta a este nível se expandiu de forma cancerígena, significando a maior ameaça às aspirações de uma verdadeira capital, que possa ser habitada e não apenas visitada e usufruída enquanto simulacro. Seja como for, e por mais que reconheçamos os méritos deste projeto de reabilitação do antigo palácio, a verdade é que mal nos achamos ao abrigo daqueles treze mil metros quadrados acima do solo sentimo-nos livres dos miasmas de uma Lisboa irreal no pior sentido da palavra. Não por um efeito de libertação, de gozo ou apropriação de um qualquer imaginário, mas por submissão aos critérios e à vertigem especulativa. O MACAM pode ter nascido deste contexto, pode bem ser uma exceção que confirma a regra, mas manifesta a sede de uma outra forma de irrealidade. Mal penetramos naquele espaço, ainda antes de visitarmos as quatro galerias e os dois mil metros quadrados de área expositiva, sentimos que, como acontece quando entramos numa sala de cinema, de teatro ou numa ópera, demos um passo para fora desse real rebaixado, desse lado pedestre da vida, sendo um espaço devotado à irrealidade das fantasias daqueles que quiseram contrariar o seu tempo, as servidões que cada época nos impõe. O próprio edifício respira um outro ar, e as janelas que se rasgam nas suas paredes espreitam para outros mundos, e assim estabelece um acordo exaltante e de ordem suspensiva através de alterações mais discretas ou flagrantes à realidade. É indubitável que se trata de uma miragem ficcional que apenas os sórdidos elementos da trama de especulação imobiliária tornaram possíveis, mas pelo menos oferece-nos uma ideia do que são esses mundos auto-contidos que uma criação artística nos pode oferecer, esse elemento que o artista pode fornecer aos materiais do seu tempo, da sua sociedade, arrancando à sua biografia o seu lado heroico ou mesquinho, mas com a capacidade de o traduzir em algo que até ali não existia. Assim, um empresário filho de um lavrador, nascido e criado em Penamacor, e que às tantas esteve para ser padre, que veio estudar para Lisboa aos 14 anos, que se formou como mecânico no Técnico, e depois passou pelo Brasil, onde fez fortuna nos setores cimenteiro e mineiro, é este homem que, sem nunca saber muito de arte, soube o mais importante: soube gostar dela. É isso o que se vê no MACAM, o percurso de um tipo que regressou ao seu país e triunfou no setor que é mais emblemático da devastação dos interesses económicos a que estamos sujeitos, alguém que, com o projeto do Atrium Saldanha, pode contar enfim com o suporte financeiro que lhe permitiu agora deixar-nos o testemunho de uma vida, dando uma nova vida ao Palácio Condes da Ribeira Grande. Não se trata de obter a redenção, embora seja certo que os grandes museus têm servido tantas vezes para que os empreendedores possam justificar a obscenidade das suas fortunas. Neste caso, vemos erguer-se um museu que consegue superar a mediocridade da existência que passou a dominar a realidade lisboeta, e, assim, este representa um desafio à presente condição da cidade enquanto parque temático sujeito aos apetites turísticos, e se é improvável que venha a representar um ponto de rebelião, poderá contaminar subtilmente a nossa realidade transmitindo-lhe outras formas e valores, com uma exposição permanente que apresenta 200 anos de arte portuguesa de uma forma pedagógica e educativa, e dando, para já, grande margem de manobra às curadoras (Adelaide Ginga e Carolina Quintela) para produzirem esse contido desacato. O museu abrir-se-á a outras colecções e outros olhares, mas para já, com nomes portugueses e internacionais, nomes mais e menos consagrados, entre os quais merecem destaque Amadeo de Sousa Cardozo, Eduardo Viana, Paula Rego, Júlio Pomar, Maria Helena Vieira da Silva, Helena Almeida, Ernesto Neto, Marina Abramović, Olafur Eliasson, Elmgreen & Dragset, Isa Genzken, Liam Gillick, Dan Graham, Thomas Struth, entre outros, o aspecto mais cativante é a forma como o museu parece recusar aquela condição de mausoléu de luxo, como o edifício todo ele parece animado desse espírito serenamente truculento e desafiador, lembrando-nos do célebre conto de Borges, ‘Tlön, Uqbar, Orbis Tertius’, em que um grupo de sonhadores românticos consegue contrabandear para nossa realidade um mundo mítico cujos habitantes vivem de acordo com uma espécie de idealismo subjetivo, negando a realidade dos objetos e substantivos.