O mais vago inquérito que sirva de oportunidade aos conscienciosos intelectuais que vão perorando sobre seja que tema for, tudo o que consiga algum destaque entre as actualidades, da guerra às tendências e frivolidades que temperam cada estação noticiosa, qualquer sondagem que procurasse, hoje, fazer um balanço sobre a figura histórica de Adolf Hitler correria o risco de parecer, à primeira vista, uma mera enciclopédia de insultos. Seria muito fácil multiplicar os diagnósticos de ordem mais ou menos patológica sobre o perfil do líder nazi, e certamente qualquer balanço nestes 80 anos da sua morte, se poderá assinalar o recrudescer de certas tensões de ordem política, acabariam por nos fornecer um bom conjunto de epigramáticas denúncias, agora que já pouco resta a fazer. Como escreveu o produtor televisivo e escritor David Slack: “Lembro-me de estar sentado em História, a pensar: ‘Se eu estivesse vivo na altura, teria…’ Estás vivo agora. O que quer que estejas a fazer é o que terias feito.” Ora, é fácil indignar-se com o passado, quando as categorias parecem já perfeitamente definidas e sedimentadas, mas como assinala Adorno, muitos conhecimentos, embora formalmente verdadeiros, acabam por resultar nulos e fora de toda a proporção se nos ativermos à verdadeira capacidade de actuar de acordo com eles. “Quando o médico expatriado diz – ‘Para mim, Adolf Hitler é um caso patológico’ – o resultado clínico talvez acabe por confirmar o seu juízo, mas a desproporção deste com a desgraça objectiva que, em nome do paranóico, se espalha pelo mundo faz de tal diagnóstico, com que se incha o diagnosticador, algo ridículo. Talvez Hitler seja ‘em si’ um caso patológico, mas certamente não ‘para ele’. A vaidade e a pobreza de muitas manifestações do exílio contra o fascismo ligam-se a este facto.” No fundo, os juízos que expressamos nos nossos dias sobre Hitler recaem nesta categoria, de afirmações feitas a salvo, a partir do exílio. Ora, Adorno parece denunciar esta postura meio inchada, algo patética: “Os que expressam os seus pensamentos na forma de juízo livre, distanciado e desinteressado são os que não foram capazes de assumir nessa forma a experiência da violência, o que torna inútil tal pensamento. O problema, quase insolúvel, consiste aqui em não se deixar imbecilizar nem pelo poder dos outros nem pela impotência própria.”
Por sua vez, o escritor polaco Witold Gombrowicz, no seu diário, vai pelo mesmo caminho, e adverte: “A condenação, o desprezo, assim não vamos longe, isso não nos serve de nada… a eterna repulsa pelo crime apenas prolonga a sua vida… É preciso engoli-lo. É preciso comê-lo. O mal pode ser vencido, mas apenas em nós próprios. Nações do mundo: ainda acreditais que Hitler era apenas um alemão?”
No entender deste grande provocador, Hitler é um personagem de tal modo estarrecedor precisamente porque sabe trabalhar com o medo, e isso faz com que possa regressar noutra forma, noutro lugar se as circunstâncias forem propícias. “Hitler foi desfeito em terra e pó e, ademais (com medo da sua ressurreição), foi caracterizado post mortem como uma mediocridade diabólica, um sargento megalomaníaco, estridente e infernal. Conspurcastes a sua lenda. Fizestes isto por medo. Mas o medo é uma forma de homenagem. Eu advogaria não ter medo de Hitler post mortem – ele cresceu com o medo alheio, oh, que ele não se erga outra vez com o vosso.”
Se a elite nazi, nos serviu amplos exemplos de que a miséria moral pode conviver perfeitamente com o prazer estético, e se na época não foram poucos os intelectuais que secundaram ou não reprimiram um certo fascínio com esse desencadear súbito da acção que o fascismo trouxe à Europa, hoje, e em retrospectiva, percebe-se também como, desde então, tem havido um olhar sobre a História e o passado que se constrói como uma denúncia que chega tão tarde como se comove ou encoleriza desnecessariamente, parecendo retirar um certo prazer estético dessa frívola forma de indignação. Mas, e numa leitura que aproveita também ao esclarecimento das presentes tensões políticas que hoje se vivem, George Steiner identifica um certo efeito de estimulação dos nervos adormecidos que o fascismo veio trazer há coisa de um século. “A loucura e a morte são preferíveis ao interminável domingo e ao resguardo de uma forma burguesa de viver. Como poderia um intelectual suportar sentir no seu íntimo qualquer coisa do génio de Bonaparte, qualquer coisa dessa energia demoníaca que leva da obscuridade ao império, e ver apenas à sua frente o reluzir postiço da burocracia? Raskolnikov escreve o seu ensaio sobre Napoleão e sai para matar a velha.” Quem traz mais substância a esta linha de análise é Elias Canetti, para quem Hitler foi “um mestre das massas”, e que encara o seu aparecimento na cena política como uma súbita “intensificação da História”. Em relação a figuras deste calibre, diz-nos Canetti que é impossível uma pessoa desviar-se delas com repulsa e asco, como lhe seria natural. “Mas também não basta dar-se por satisfeita com os meios habituais da investigação histórica. Que estes não bastam é evidente. Onde está o historiador que teria conseguido fazer o prognóstico de Hitler? Mesmo que uma História particularmente conscienciosa fosse capaz, hoje, de retirar da sua circulação sanguínea, de uma vez por todas, a sua inerente admiração pelo poder, estaria em condições, na melhor das hipóteses, de nos advertir para um novo Hitler. Mas como este apareceria noutro sítio, também teria outra aparência e o aviso seria ocioso.”
Então e qual era, no entender deste estupendo ensaísta que estudou com uma profundidade inaudita os fenómenos de massa e poder, essa diferença radical que Hitler significou há um século? Canetti diz-nos que a sua força estava na capacidade de suscitar novas massas e reuni-las à sua volta. “Muito cedo se apercebeu da eficiência dessa força e, graças a uma prática e a uma intensificação ininterruptas, chegou a ser um mestre das massas. Tanto quanto se trata destas, ele sabe que lhe é inteiramente possível transformar a sua ilusão em realidade. Descobriu, por assim dizer, o ponto fraco da realidade – a parte desta onde ela é a mais fluida e, perante o qual, recua a maioria das pessoas que receiam a massa.”
Adorno entende que Hitler soube produzir um mito a partir do homem comum. Afirmando-se como um super-homem, ao mesmo tempo realizava o milagre de aparecer como uma pessoa comum, “uma mistura de King Kong e de barbeiro de subúrbio”. Mas se cada homem mede essas figuras que emergem inesperadamente tomando como exemplo o universo que melhor compreendem, enquanto um estratega da forma, Gombrowicz entende que Hitler o que vem é colocar em causa a perspectiva de uma História que se reforça com os feitos de figuras exemplares. “Hitler, Hitler, Hitler… De onde veio esse tal Hitler? No turbilhão da minha vida, no caos dos acontecimentos, há muito que notei uma certa lógica na acumulação de enredos. Quando um determinado pensamento se torna dominante, os factos que o fortalecem do exterior começam a multiplicar-se, e então parece que a realidade externa começa a cooperar com a interna.” Ou seja, do mesmo modo que a mente é distorcida pela paranoia, a realidade também parece ficar sujeita a esses efeitos. “O que nos impressiona neste herói (e porque não deveria eu chamar-lhe herói?) é a sua incrível ousadia em alcançar um extremo, o derradeiro, o máximo. Ele acreditava que vence o homem que tem menos medo – que o segredo do poder está em ir um passo mais além, aquele passo em frente que os outros são incapazes de dar – que aquele que nos aterroriza com a sua audácia é impossível de suportar, sendo, por isso mesmo, devastador – e ele aplicou este princípio tanto às pessoas como às nações. A sua táctica era a seguinte: dar um passo além na crueldade, no cinismo, na mentira, na astúcia, na ousadia, dar aquele passo louco que enlouquece e sacode para fora da norma, aquele passo inacreditável, impossível, completamente inaceitável… mantermo-nos firmes quando outros, horrorizados, proclamam: Desisto! Foi por isso que ele empurrou o povo alemão e a Europa para a crueldade – ele aspirava a uma vida mais cruel como derradeiro teste da capacidade de viver.”
Por sua vez, Borges entende que Hitler foi, de certo modo, o efeito de uma convocação histórica, entendeu que, com ele, de certo modo se dá um exacerbamento das pulsões de uma cultura (a Ocidental) tendente ao domínio, ao exercício de uma força imperial, e que, nos seus momentos de crise, se entrega a um efeito de paranoia. “Para europeus e americanos, há uma ordem – apenas uma ordem – possível: a que outrora teve o nome de Roma e que é agora a cultura do Ocidente. Ser nazi (brincar à barbárie energética, brincar ao viking, ao tártaro, ao conquistador do século XVI, ao gaúcho, ao pele-vermelha) é, a prazo, uma impossibilidade mental e moral. O nazismo sofre de irrealidade, como os infernos de Erigena. É inabitável; os homens só podem morrer por ele, mentir por ele, matar e sangrar por ele. Ninguém, na solidão central do seu eu, pode desejar o seu triunfo. Arrisco esta conjectura: Hitler quer ser derrotado. Hitler, de uma forma cega, colabora com os inevitáveis exércitos que o vão aniquilar, como os abutres metálicos e o dragão (que não devem ter ignorado que eram monstros) colaboraram, misteriosamente, com Hércules.”
Canetti parece corroborar esta ideia, indo um passo mais fundo no seu diagnóstico, não se limitando a patologizar Hitler, mas analisando os efeitos a que ele cedeu de forma a transformar a realidade seguindo até ao fim a sua ilusão, e, de caminho, arrastando consigo as massas, toda uma nação, e condenando a Europa. “Não se faz uma ideia suficiente da destruição que ocorre na cabeça de um paranóico. O seu trabalho em sentido contrário, que está ao serviço da sua própria extensão e eternização, dirige-se, precisamente, contra essa infecção pela destruição. Esta, contudo, está nele, pois é parte dele, e se aparecer, de repente, no mundo exterior, seja em que lado for, não o pode de modo nenhum admirar nem surpreender. A intensidade dos fenómenos que se dão em si próprio, eis o que ele impõe ao mundo como visão. O seu espírito pode ser tão insignificante como o de Hitler, pode, por assim dizer, não ter mesmo nada a apresentar que tenha valor perante uma instância apartidária, mas a intensidade dos seus fenómenos interiores de destruição fá-lo aparecer como visionário ou profeta, como salvador ou guia.”
A perplexidade marcou desde logo aquele enredo de tal modo categórico e cuja razão destrutiva parecia ansiosa por saciar-se de uma vez. “A propósito de Hitler não me vem nada à cabeça”, eis as únicas palavras que Karl Kraus teve para esta figura, e isto significou um sinal de exaustão das faculdades psíquicas deste vienense que impôs todo o seu génio truculento, satírico, numa batalha “contra as deformações dos meios de comunicação, contra a barbárie das psicoses colectivas, contra os impiedosos mecanismos sociais que esmagam o indivíduo, contra as violentas perversões totalitárias e a sua incultura e estupidez, muitas vezes camufladas de exaltadas e parolas poses espiritualizantes”, como assinala Claudio Magris. Terá pretendido formular uma espécie de gracejo depreciativo, dando a entender Hitler nem digno era de contemplação, que a figura causava repulsa ao pensamento, mas, na verdade, e sem se dar conta, era Kraus quem tinha sido ultrapassado, e aquela figura que se impunha com toda a sua banalidade e estupidez violenta provava que a erudição nada podia contra a bestialidade triunfante. Todo o desprezo e ironia eram inúteis diante de uma força política despudorada, uma força que nascia de um mal com o qual, até ali, aquela mesma cultura nem ousara proferir, mas que lhe pulsava interiormente. Kraus dependia da memória, da inteligência e da moral para fustigar os seus adversários, mas ao escolher a displicência para denunciar Hitler, abriu o flanco, e ficou claro que a sua altiva indiferença não estava já em condições de exercer o mesmo efeito de denúncia implacável agora sobre esta “sedução ínfera e grosseira do nazismo”. No fundo, como vinca Magris, ainda havia nele algo do sentimento nobre e cavalheiresco de defesa do humano, mas ali nenhuma das fantasiosas ousadias ou delírios de um Dom Quixote poderia fazer fosse o que fosse contra a vulgaridade e treva prometida por aquele “Leviatã político”.
Que Hitler estava para lá de qualquer elemento de denúncia de ordem intelectual prova-o o facto de o seu horizonte partir de uma acumulação meio caótica de noções truncadas, daquele tipo de leitura que tresvaria a partir de argumentos que não consegue acompanhar até ao fim. “Não é segredo nenhum que o filósofo favorito de Hitler não era Nietzsche mas Schopenhauer, especialmente os “escritos menores” de Parerga e Paralipomena (1851), muito mais acessíveis do que O Mundo como Vontade e Representação (1819)”, nota o ensaísta espanhol Rafael Narbona. “Hitler, um analfabeto filosófico, apropriou-se de duas das ideias de Schopenhauer – convenientemente adaptadas às suas ambições – para manipular as massas. A primeira é uma aversão ao ‘fedor judeu’, que estragou a herança greco-latina, propagando um moralismo insípido e um apego doentio à razão. O segundo é uma simplificação grosseira do conceito de vontade, que Hitler funde (e confunde) com a luta pela vida do darwinismo social, ignorando o facto de que Darwin nunca teria subscrito a tese de Herbert Spencer. Hitler e os seus seguidores não repararam que Schopenhauer coloca o indivíduo, e não o povo, no centro da história. Indivíduo e não povo, porque o filósofo era um misantropo consumado, sem qualquer interesse em participar na vida da comunidade. Para o dizer de forma gentil, Hitler é um filósofo de província, que se alimenta de frases de almanaque.”
E voltamos a Gombrowicz, que talvez tenha explicado melhor do que ninguém como um irascível complexo de inferioridade num encadeamento propiciado pelo próprio sentimento de impotência que corroía intimamente os povos europeus foi o que permitiu desencadear toda aquela dinâmica de devastação, a qual, no fundo, estava já engatilhada no próprio complexo civilizacional, que apenas espreitava a possibilidade de se manifestar da forma mais desavergonhada, livrando-se de todos os complexos para manifestar o seu apetite de destruição. “Ele não teria sido um herói se não fosse um covarde. A sua violência suprema foi a que perpetrou contra si mesmo quando se transformou em Força – tornando a fraqueza impossível em si barrando a sua própria retirada. A sua resignação suprema foi a resignação perante outras possibilidades da existência. (…) Todavia, entrou lentamente em jogo a acção de um factor quase imperceptível, nomeadamente a quantidade, o número crescente de pessoas. À medida que o número crescia, o grupo entrava noutra dimensão, quase inacessível a um só homem. O grupo, tão pesado, tão massivo, começou a viver a sua própria vida. É possível que cada um dos seus membros confiasse no líder só um pouco; no entanto, esse pequeno pedaço multiplicado por números cada vez maiores tornou-se uma perigosa carga de fé. E eis que a dado momento cada um deles sentiu, talvez até com inquietação, que já não sabia mais o que os outros lhe fariam (os outros que eram tantos e que ele não conhecia), caso lhe ocorresse dizer ‘Desisto’ e dar de frosques. No instante em que se deu conta disto, as portas fecharam-se com estrondo…
(…)
O grupo entra num estado anormal. As pessoas que compõem o grupo perdem o controlo de si mesmas. Doravante, ninguém pode afastar-se porque já não se encontram no domínio «humano, mas antes no «inter-humano» ou «supra-humano».
(…)
Notemos que tudo isto é muito semelhante ao teatro… ao fingimento… Hitler fingia ser mais corajoso do que era para forçar os outros a juntarem-se ao jogo mas o jogo gerava a realidade e criava factos. (…) Atentemos também a que, no momento em que o processo alcança o estádio sobre-humano, a ideia já não é necessária. Ela era indispensável no princípio, quando tinha de convencer, unificar apoiantes entre si – agora é quase supérflua porque o homem, enquanto tal, não tem muito a dizer nesta nova dimensão sobre-humana. As pessoas começam a crescer hierarquicamente. Criaram-se pressões. Surgiu uma forma que tinha a sua própria razão e lógica. A ideia existe apenas para servir as aparências; é a fachada por trás da qual tem lugar a possessão do homem pelo homem, criando-se a si mesma em primeiro lugar e só depois perguntando pelo seu significado…”