Encontrado dentro de um volume de Shelley

Em 1818 o casal mudou-se para Itália. E foi aí que Percy teve o seu período mais criativo. Entre outros poemas escreveu ‘Ozymandias’, um soneto inspirado numa escultura colossal de Ramsés II. E ‘To a skylark’, que descreve um passarinho com que ele e Mary se cruzaram num passeio pelo campo

A minha adversária ia deitando a mão a todas as encadernações em pele antigas que lhe apareciam à frente. Nem se dava ao trabalho de olhar para o título, o que levantava fortes suspeitas de que queria os livros apenas para enfeitar. Mas, fosse pelo mau estado, fosse por outra razão qualquer, ainda tive oportunidade de ficar com dois ou três.

Um deles era um volume maltratado com obras de Percy Bysshe Shelley.

A primeira página, de um tom amarelado, ostenta a data de 1847. Mas por favor não me peçam um resumo: são centenas de poemas, traduções, fragmentos, cartas, ensaios, impressos num corpo de letra diminuto, mais adequado para notas de rodapé.

Shelley é o poeta romântico por excelência: impulsivo, amante da natureza, corajoso e azarado. Nasceu numa família abastada e cresceu numa grande casa de campo cujas origens remontavam ao século XIV. Deu sempre mostras de uma certa rebeldia. Estudou na elitista escola de Eton, onde os colegas faziam dele gato-sapato, e depois em Oxford, de onde acabaria expulso por ter escrito – e nunca ter renegado – um panfleto provocatório intitulado The Necessity of Atheism (A Necessidade do Ateísmo).

A coerência também não era o seu forte. O facto de num dos seus primeiros poemas da juventude atacar o casamento, que considerava tão pernicioso para a humanidade como as guerras, não o impediu de se casar duas vezes. A primeira foi em 1811, quando tinha 19 anos, em Edimburgo, com a filha de um taberneiro. A segunda foi no penúltimo dia de dezembro de 1816, com Mary Godwin – cerca de um mês apenas depois do suicídio da primeira mulher, por afogamento.

Também ele teve uma vida curta e acidentada. Andou pela Escócia, pela Irlanda e pela Itália. No verão de 1816, foi com Mary para a Suíça, onde se encontraram com outro expoente do romantismo, Lord Byron. Inspirado pelo ar das montanhas, Percy escreveria um Hino à Beleza Intelectual. Mary, pelo contrário, descreveria assim a paisagem: «Nunca se viu um cenário mais desolador. As árvores nestas regiões são incrivelmente grandes e erguem-se em aglomerados dispersos sobre o território selvagem coberto de branco; a vasta extensão de neve era salpicada só por estes pinheiros gigantescos e pelas estacas que delimitavam a estrada».

Esse ficou conhecido como o ano sem verão, devido à erupção de um vulcão no outro lado do mundo – o Tambora, na atual Indonésia. Com o grupo fechado em casa por causa do mau tempo, Byron lançou um pequeno desafio: «Cada um de nós vai escrever uma história de terror». Mary comprou um bloco de notas em Genebra e, na sequência de um sonho em que viu nitidamente «o hediondo fantasma de um homem estendido», fez o rascunho de Frankenstein ou O Prometeu Moderno, quer terminaria em 1817 e faria publicar em 1818.

Também em 1818 ocasal mudou-se para Itália. E foi aí que Percy teve o seu período mais criativo. Entre outros poemas escreveu Ozymandias, um soneto inspirado numa escultura colossal de Ramsés II. E To a skylark, que descreve um passarinho com que ele e Mary se cruzaram num passeio pelo campo.

Começa assim:

«Hail to thee, blithe Spirit!

Bird thou never wert,

That from Heaven, or near it,

Pourest thy full heart

In profuse strains of unpremeditated art.»

E agora a tradução:

«Salve, Espírito alegre!

Pássaro nunca foste,

Que do Céu, ou perto dele,

Derrama o teu coração cheio

Em profusas notas de arte não premeditada.»

Os livros antigos reservam-nos às vezes surpresas. Guardada no interior do meu volume, encontrei uma tradução deste poema para francês (‘À l’alouette’), numa caligrafia tão bem desenhada que me parecia mentira. De facto, só ao deparar-me com uma ou outra palavra rasurada me convenci de que tinha sido feita por mão humana e não impressa por uma máquina. Está datado de fevereiro de 1870.

Percy Bysshe Shelley acabou como a sua primeira mulher: afogado. Apesar dos apelos para ficar em terra, a 8 de julho de 1822 partiu com dois amigos de Livorno, no seu barco novo, o Don Juan, construído de propósito para ele em Génova. Obarco naufragou ao largo do golfo de La Spezia, devido a uma tempestade, e o corpo deu à costa dez dias depois.

Regresso, a esse propósito, ao manuscrito encontrado no interior do meu livro e ao poema do passarinho. «Cada vez mais alto

Brotas da terra

Como uma nuvem de fogo;

Bates as asas no azul profundo,

E cantando ainda sobes, e subindo sempre cantas.»

Percy sabia quase de certeza que os cristãos da Idade Média representavam a alma humana sob a forma de uma ave a voar em direção ao céu. Claro que ele tinha atacado o Cristianismo, mas não é verdade que tinha também atacado o casamento?