‘O setor agrícola e o mundo rural têm sido muito esquecidos nos últimos anos’

Luís Mira espera que o próximo Governo tenha ‘capacidade de decisão e de gestão’ e considera imperativo que se implemente o projeto Água que Une, que, em termos orçamentais, representa ‘dois Alquevas’.

O secretário-geral da CAP diz que nestes 11 meses de Governo foi possível recuperar alguns atrasos que estavam a afetar o setor agrícola,  mas pede mais ao próximo Executivo. Luís Mira fala ainda das tarifas norte-americanas e do problema da falta de mão-de-obra.

Como está o setor da agricultura e qual é o peso para a economia?
O setor agrícola, numa altura, em que a economia precisava de exportar apresentou números superiores à média do país, tanto nas frutas e hortícolas como no resto dos produtos agroflorestais. Teve um peso no VAB [Valor Acrescentado Bruto] de 5% em 2023, as exportações do complexo agroflorestal pesam 20% no conjunto de exportações de bens na economia, 13% se considerar o conjunto de exportações de bens e serviços.

Como se justifica este aumento?
O setor tem vindo a aumentar a sua capacidade de exportação e a sua capacidade produtiva. Quando se investe em estruturas que permitem fazer isso, depois vai aparecendo o seu efeito. Por exemplo, o Alqueva deu um grande impulso na capacidade produtiva agrícola. Não começa logo, algumas culturas demoram três ou até sete anos a começarem a produzir. No entanto, começamos a ver esse efeito não só no Alqueva, mas no resto do país, fruto do investimento que tem sido feito no setor agrícola, mesmo com o malgrado de todas as burocracias, dos entraves, das demoras, não só na gestão da parte agrícola por parte do Ministério da Agricultura na aprovação dos projetos, mas também é visível por uma grande entropia, um grande conjunto de barreiras do Ministério do Ambiente que tem uma cultura, em que as questões ambientais são parques temáticos, não são locais onde se pode compatibilizar a produção com a sustentabilidade e isso causa transtornos muito graves à atividade económica, ao crescimento e ao desenvolvimento de uma agricultura com maior capacidade.

Poderia crescer ainda mais?
Portugal tem muito boas condições em alguns produtos para crescer ainda mais do que que tem crescido, assim que sejam dadas condições. Uma questão determinante é a água. O Governo anunciou um grande investimento nessa matéria de cinco mil milhões em cinco anos, dá mil milhões por ano, num investimento que vai permitir ao país ter uma maior resiliência relativamente à falta de água, com o princípio de uma criação de uma rede nacional de distribuição de água.

Com novas eleições o plano  de água corre o risco de ficar em standby?
O Governo não apresentou só um plano, apresentou uma previsão de investimentos para os próximos cinco anos e tenho esperança que haja bom senso por parte dos portugueses para termos estabilidade, seja qual for. Nestes últimos 11 meses deste Governo foram feitas mais situações para o setor agrícola do que nos cinco anos com a anterior ministra. As florestas voltaram a estar como nunca deviam ter saído na tutela da agricultura e não do ambiente, o que levou a uma situação de estagnação no investimento florestal em Portugal completamente dramática. E são coisas que depois demoram anos a recuperar.

Foi possível recuperar tudo?
Não deu para recuperar. Deu, por exemplo, para recuperar os pagamentos do ano anterior, a ministra já tinha pago 30%, mas não se conseguiu recuperar um bom funcionamento do ministério da Agricultura que tem falta de meios e de estruturas. O próprio relacionamento com os agricultores e o funcionamento do ministério precisa de melhorar muito, mas também estava bastante deteriorado. Também é necessário haver uma gestão da Política Agrícola Comum mais eficiente do que a que tem existido nos últimos tempos. Mas isso não foi possível fazer em 11 meses com todos os problemas que houve, ainda assim, houve um retrocesso no desmantelamento e na própria destruição do Ministério da Agricultura que era esse o objetivo do anterior Governo.

O que espera do próximo Governo?
Primeiro é preciso um Governo com capacidade de decisão e de gestão. Um Governo que implemente o projeto Água que Une. É preciso um Governo que tenha a noção de que o setor agrícola e o mundo rural têm sido muito esquecidos nos últimos anos. E aqui não posso deixar de referir, em vésperas de eleições, 51 anos depois do 25 de Abril é preciso melhorar o sistema democrático. Recentemente um estudo disse que metade dos votos em Portalegre não contam para nada. Não é aceitável e ainda resta saber os que tiveram de fazer o voto útil. É indispensável que haja uma evolução do sistema de contagem de votos para que o interior do país não seja totalmente ignorado do ponto de vista democrático. Era importante que houvesse uma representação do território e não só das pessoas. Isso era fundamental para o equilíbrio do país e para o equilíbrio de um sistema democrático em Portugal. Também não podemos demorar tanto tempo para realizar eleições para o Governo. As eleições são no dia 18 de maio e se tudo correr bem, dentro dos prazos, só um mês depois é que há Governo. Hoje em dia não precisamos deste prazo, a Constituição tem de ser revisitada e tornar o sistema mais democrático, sem estes prazos que só trazem entropia.

Em relação ao plano da água. Acha que vai resolver problemas em zonas críticas como o Algarve?
Este plano não vai resolver os problemas todos, nem é possível fazer regadio no país inteiro. Isso é uma utopia, mas para o Algarve dar muito maior capacidade de resiliência face à falta de água que tem porque prevê que haja um reforço no transporte de água do Tejo para o Alqueva e do Alqueva para o Algarve. E conta com mais um conjunto de obras, quase 200, que vão até 2040 ou ainda um bocadinho mais. Não é para fazer num curto espaço de tempo. Mas chamo a atenção que o Alqueva foi planeado para 25 anos a sua construção, com uma dotação anual de 100 milhões por ano e aqui estamos a falar numa disponibilização de mil milhões por ano. São 10 vezes mais durante cinco anos. Isto em termos do que foi anunciado em termos orçamentais são dois Alquevas em termos do custo.

Já é conhecido o impacto que o Alqueva tem…
O Estado português colocou em Alqueva cerca de mil milhões e já recuperou o triplo em impostos. Estes investimentos produtivos não são custos para os contribuintes, nem para o Estado são investimentos que depois dão retorno. Não são como outro tipo de infraestruturas que se fazem que são um custo e que depois ainda têm mais custos de manutenção ao longo da sua vida.

Mas a dessalinizadora no Algarve saiu do PRR…
O custo de construção e de funcionamento da dessalinizadora devem ser equacionadas quando não há mais solução nenhuma. As dessalinizadoras são uma solução quando não temos rios a correr com água para o mar e deve ser colocada como uma solução já de fim de linha, quando não tenho mais nenhuma alternativa. Não somos Israel. É verdade que Espanha tem dessalinizadoras, mas Espanha tem um preço de energia elétrica que não temos e a dessalinizadora necessita de muita energia elétrica. Depois o Algarve tem uma população que flutua muito no tempo e a dessalinizadora não pode parar, tem de continuar a trabalhar, tem de pôr essa água no reservatório e depois mineralizar. As pessoas, às vezes, ouvem falar nisto, mas não sabem os custos e todo o procedimento que isso implica.

Já que estamos a falar do Algarve. Tem havido alguma polémica em torno da agricultura por causa da produção da pera abacate por gastar muito água…
Issoé um mito urbano. O abacate gasta exatamente a mesma água do laranjal, nem mais nem menos, mas com diferenças: tem mais, é mais resiliente a pragas e tem uma procura de mercado bastante superior. Para as pessoas em Portugal poderem comer abacates não precisamos de estar a importá-los com uma pegada de carbono enorme porque temos capacidade de os produzir. E isso é possível no Algarve. Não é nenhum crime, as culturas, os negócios e o país evoluem. Antigamente não tínhamos as coisas que temos hoje.  Atualmente temos muitos restaurantes de sushi e vamos proibi-los porque gastam muito peixe ou por outra questão qualquer? Então, por que razão é que o setor agrícola não pode acompanhar o mercado e utilizar outro tipo de plantas que não vão gastar mais água do que as que já estavam. Além disso, permitem ao agricultor ter um rendimento superior àquele que teria com outras  culturas. Não se consegue perceber e depois os partidos começam a discutir estas questões sem saberem. Ainda esta semana viu-se isso com a questão da energia, em que falavam sobre o que não sabiam. Também na agricultura falam do que não sabem e defendem princípios só com base na ideologia e não na ciência. 

Mas parece que o Algarve descobriu ‘agora’ a pitaia…
Desenvolve-se mais quando há mercado. Se os consumidores não consumissem abacates, ninguém punha abacates no Algarve. E com a pitaia é a mesma coisa. É uma cultura mais adaptada, não precisa de tanta água, mas depois tem alguma particularidade na comercialização, pois os frutos têm de ter um tratamento especial por causa dos picos. No entanto, se houver mercado com certeza que haverá reação por parte dos agricultores. Os agricultores reagem ao mercado ou às políticas e quando surgem novidades tem a ver com isso. Não tem a ver com outra situação qualquer. 

E qual o impacto das tarifas norte-americanas no setor?
Instabilidade e incerteza são as palavras mais corretas para o impacto das tarifas. Primeiro, porque num dia Trump anuncia 200%, depois no dia a seguir anuncia 30, depois suspende por 90 dias. Por outro lado, é importante que não haja uma diferença tarifária entre a União Europeia e o resto do mundo. No caso do vinho não podemos ter uma tarifa que é o dobro em relação ao resto do mundo, que nos coloca em desvantagem com a Nova Zelândia, com o Chile, com a Austrália e com o resto dos países produtores. No entanto, não conseguimos definir medidas se não soubermos o impacto que vai ter. A pasta de papel e a cortiça também são impactadas, ainda por cima, porque a pasta papel e a cortiça têm um sistema antidumping que ainda os penaliza mais. E a cortiça será penalizada duplamente porque há uma exportação de cinco mil milhões de vinho da Europa para os Estados Unidos e se houver uma grande redução também terá impacto na cortiça. Mas nesse cenário de incerteza devemos olhar para o Mercosul porque para Portugal é uma boa oportunidade, já que são 220 milhões de consumidores a falarem português, coisa que não existe em mais nenhuma parte do mundo. São consumidores que preferem o produto português e temos de aproveitar, mas temos de fazer ações de promoção do azeite, do vinho, da fruta e de outros produtos que podem ser enviados para o Brasil. Os espanhóis já estão a fazer isso no azeite e estão a ganhar quota de mercado. Já chamámos a atenção o Governo para a necessidade de Portugal ter um pacote robusto de ações de promoção no Brasil.

Com as tarifas,  o produto ficará mais caro e menos atrativo…
O dólar desvalorizou 10% e ninguém disse nada, mas estamos muito preocupados com uma tarifa 10%. Falei com operadores que me disseram que se for para a frente, 5% será encaixado pelo importador, outros 5% pela operadora. Cada um faz um esforço e o preço é mantido. Vendemos Vinho do Porto caro para o mercado dos Estados Unidos, então os consumidores vão deixar de comprar por custar mais 10%? Acho que não vão mudar o seu hábito de consumo. E também acredito que nos vinhos baratos, o impacto será pequeno.

E quanto  à falta de mão-de-obra?
Cerca de 50% dos trabalhadores agrícolas em Portugal são estrangeiros. Desses, 60% são indo-asiáticos: Bangladesh, Nepal e  Índia. E ou nós como país criamos condições dignas para estas pessoas virem cá trabalhar ou dentro de poucos anos ninguém quer vir e isso seria dramático para toda a economia. Este é um problema europeu, não somos só nós que precisamos de mão-de-obra imigrante. É necessário que se criem condições e circunstâncias para que a vinda se faça em segurança, que os vistos sejam emitidos com celeridade e que as pessoas sejam recebidas com condições, não é preciso uma casa extraordinária. 

Tem ouvido falar da agricultura na pré-campanha ou acha que é um setor esquecido?
Não ouvi falar na agricultura, mas também não ouvi falar do comércio ou da indústria.

Mas é um setor que atrai cada vez mais jovens e mais tecnologia…
Não é só o setor, é o território. A agricultura e as florestas ocupam noventa e tal por cento do território e quando os partidos não olham para isso e só olham para os outros 7 ou 8%, onde está concentrada a população, alguma coisa está mal.

Ouve-se falar no interior quando há incêndios…
Claro, quando há incêndios, quando há cheias e quando há esse tipo de coisas.

E em relação à Lei dos Solos?
Muitas vezes, o Parlamento perde-se  nessas discussões. A Lei dos Solos não vai resolver nenhum problema de habitação. É uma falsa questão. Não vai causar nenhum impacto na agricultura, mas foi um assunto muito debatido. A questão da habitação em Portugal tem outras razões que não se querem enfrentar e que tem a ver com as rendas condicionadas e tem a ver com todo um conjunto de questões que ainda vêm do 25 de Abril e que não foram atualizadas. Depois os resultados são estes e agora andamos à procura de uma solução quando é só resolver isso. Ninguém quer investir na habitação para arrendar quando há pessoas que pagam rendas de 200, 300, 500 euros em casas de cinco ou sete assoalhadas no centro de Lisboa. Resolvam isso e resolve-se o problema da habitação de forma rápida e haverá mais habitações para arrendar e para vender. Assim não, estamos no sentido contrário. A Lei dos Solos só pode vir facilitar e, vamos ver, a construção de algumas instalações para trabalhadores agrícolas. Mas a realidade que vimos em Odemira foi a câmara a opor-se. As empresas quiseram construir casas e foram proibidas e a solução que apontaram foi pôr contentores, depois caiu toda a gente em cima a dizer que não tinham dignidade sem terem ido ver. Esta é a história que nem sempre é contada com realismo. Não houve construções para alojar os trabalhadores porque as autoridades regionais e nacionais não permitiram e apontaram a solução dos contentores como temporária  – que era para dez anos – porque tinham de criar infraestruturas nos aglomerados populacionais para receber estas pessoas que vinham para cá trabalhar. Oito anos depois não se fez nada nesse sentido e não deixaram as empresas construir. Atenção que essa construção não era para ser feita com fundos, era com dinheiro próprio. A Lei dos Solos pode vir ajudar alguma coisa se for permitido construir para alojar os trabalhadores sazonais que são necessários.

E o setor não perde ao ficar com menos terrenos agrícolas?
Não. É insignificante, não tem nenhum impacto.

E há outras prioridades para o setor?
Em termos europeus devemos ter um Orçamento da PAC individualizado e não colocado num pacote de fundos único. Tem de haver simplificação e exigir aos produtos importados as mesmas condições de produção que se exigem aos europeus. Depois há a questão da agenda ambiental. Os agricultores estão interessados na agenda ambiental, mas não nos timings que a União Europeia colocou. Tem de haver estudos de impacto das medidas que foram definidas e muitas delas têm de ser dilatas no tempo. Temos três milhões de hectares de floresta e é necessário um olhar diferente. A saída da tutela da Agência Portuguesa do Ambiente foi uma boa medida, mas é necessário que as políticas também sejam ajustadas. Os dinheiros europeus que existem para a floresta não são utilizados porque as medidas foram mal concebidas, algumas até propositadamente para que a floresta não tenha uma atividade económica e isso é totalmente errado. 

Essas verbas foram para onde?
Foram depois utilizadas na agricultura. Foram reprogramadas e utilizadas no setor agrícola só que a floresta precisa ter uma política, precisa de ser encarada como uma atividade económica. Há sítios onde não há condições para isso e tem de ser encarada como uma atividade de preservação da natureza. Não podem ser os proprietários a pagar a preservação da natureza porque não estão para isso. Não posso estar a contribuir com um bem comum, sendo eu a pagar. Outra questão que gostava de chamar a atenção é para a Casa do Douro. Uma inconstitucionalidade, na nossa opinião, a Provedoria de Justiça veio dar razão à CAP. O Douro tem um problema complicado, mas a solução não é a Casa do Douro são medidas estruturais para resolver um problema de uma região que tem regras de comercialização muito particulares e tem uma vertente social importante. O Douro deve ser encarado com essa vertente social e tem que se ver qual é o caminho mas há uma questão relevante na região do Douro e na questão vitivinícola em todo o país que tem que ser equacionada.