Por estes dias e até junho, está patente nos Paços do Concelho do Porto a exposição ‘Francisco Sá Carneiro e a Construção da Democracia’ que presta homenagem a um dos fundadores da moderna democracia portuguesa.
O convulsivo tempo em que vivemos teima em nos recordar que a democracia é coisa frágil. Assistimos à erosão dos sistemas democráticos, mesmo em países que historicamente têm grande respeito pelos direitos civis e pela separação de poderes.
Os Estados Unidos da América, cuja Declaração da Independência moldou as democracias ocidentais, entraram numa perigosa deriva.
Mas não é só do outro lado do Atlântico que assistimos à crise das democracias liberais. Sob o manto diáfano da democracia, vários países europeus limitam os direitos individuais, coagem os média, violam a separação de poderes e perseguem minorias. Entretanto, os livres pensadores vão sendo silenciados pelos ayatollahs dos bons costumes, pelos novos inquisidores.
Portugal não está a salvo dos inimigos da democracia, como o populismo e a demagogia.
Entre nós, as corporações encontram um terreno sempre fértil e, talvez pela ancestral inveja, nunca faltam adeptos aos torquemadas de pacotilha.
Por tudo isso, é oportuno celebrar o processo de democratização e exaltar a liberdade individual – valor tão caro a Sá Carneiro.
A democracia é um processo contínuo e nunca pode ser considerada irreversível. Tal como a liberdade que é uma conquista civilizacional e não faz parte da natureza humana. Há 50 anos (1975) dissemos nas urnas que não queríamos uma democracia popular ou basista. Queriam uma democracia liberal, conforme defendia Sá Carneiro. O seu pensamento influenciado pela doutrina social da Igreja e pelo personalismo de Emmanuel Mounier e a sua ação política foram essenciais para a mudança de regime e para a consolidação do demoliberalismo.
Em 1979, Sá Carneiro forma a Aliança Democrática e pede «uma maioria, um governo e um Presidente», porque sabia que só com amplos poderes poderia reformar o regime. Apesar do seu trágico e precoce desaparecimento, as suas ideias políticas foram em concretizadas com a revisão constitucional de 1982 que redefiniu o regime, com um cunho parlamentar e civilista que permitiu eximir o poder executivo da tutela militar, flexibilizar o sistema económico e emancipar a sociedade civil.
Esta é a grande vitória póstuma de Sá Carneiro: Portugal tornou-se uma democracia pluralista de tipo ocidental e um país plenamente integrado na Europa.
Como a generalidade das disciplinas de humanidades, a História tem sido desconsiderada pelo hiperespecialização científica e pela disrupção tecnológica. O atual paradigma tecnocientífico tende a desvalorizar o conhecimento produzido pelas ciências sociais e humanas.
Ora, nenhuma sociedade é livre e desenvolvida sem o conhecimento histórico. A História permite não só a análise crítica do passado como a construção da memória coletiva, com a qual se cria um chão comum e se estabelecem laços de pertença.
A exposição revela o arquivo pessoal que Sá Carneiro confiou a Conceição Monteiro, fundamental para percebermos o seu pensamento, as convicções e a ação, antes e depois do 25 de Abril. Esta documentação, até agora inédita ao público, foi conservada e organizada pela Ephemera. Isto diz bem da importância do trabalho de recolha, arquivo, preservação, tratamento e divulgação documental realizada por José Pacheco Pereira. Também ele um livre pensador, e alguém a quem Portugal muito deve, pelo obstinado empenho na preservação de arquivos que são um verdadeiro tesouro.