‘O Projeto’. Era assim que era chamado o plano secreto de comunicação, traçado entre o Partido Socialista e a agência ADBD Communicare – extinta desde 2024 – que envolveu a criação de cerca de 300 perfis falsos nas redes sociais, no período entre 2019 e 2020.
Na altura decorria a campanha para as eleições legislativas de 2019, na qual António Costa (PS) e Rui Rio (PSD) eram os principais protagonistas. As redes sociais já eram vistas como um terreno de batalha política e os socialistas apostaram a fundo num exército de bots para disseminação de mensagens favoráveis ao partido e na manipulação de resultados nas sondagens online.
«Foi-nos pedido que criássemos contas falsas nas redes sociais para fazer comentários de apoio ao PS e a António Costa e votar nas sondagens online dos debates televisivos a favor do partido», começa por contar Miguel Lopes, de 33 anos, um dos membros da equipa da agência de comunicação ADBD que participou no projeto. «Era tudo feito secretamente. Normalmente, íamos para uma rede pública, como uma Padaria Portuguesa, por exemplo. Mesmo quando trabalhávamos no escritório usávamos sempre VPNs, softwares encriptados e browsers anónimos, como o Tor Project».
Miguel era uma das seis pessoas da equipa da ADBD dedicada a este projeto, em que cada um era responsável por criar uma «família de bots».
«Para criar os perfis falsos, começávamos por escolher um nome e data de nascimento aleatório, dentro de vários segmentos populacionais. Para as fotos do perfil recolhíamos imagens de stock ou de páginas de Instagram de pessoas da Sibéria, por exemplo», conta o ex-funcionário.
Estas contas, criadas no Facebook e no Twitter, eram “alimentadas” durante semanas ou meses para que se tornassem «personalidades realistas». Só depois desse período é que se tornavam «operacionais» e podiam ser usados para fazer comentários a favor do PS ou de AntónioCosta, principalmente em caixas de comentários de órgãos de comunicação social.
«OPS enviava-nos muitas vezes argumentários ou afirmações favoráveis ao partido, para depois criarmos os comentários», explica.
António Sousa Duarte, partner e fundador da agência ADBD, era o principal responsável pelo projeto, que era depois coordenado pela especialista em comunicação Rita Ferreira. O Nascer do SOL entrou em contacto com António Sousa Duarte para obter um comentário mas o responsável disse não querer prestar declarações sobre o assunto.
Encomendas e reuniões na sede do PS
Numa das várias conversas do grupo de Whatsapp do projeto a que o nosso jornal teve acesso, um dos elementos do partido socialista sugere a disseminação de comentários com a hashtag #CostaBem, com comentários como: «A direita não suporta ter sido um Governo do PS a conseguir os melhores resultados orçamentais da história do país».
Noutro caso, alguém refere ter detetado comentários negativos relacionados com o tema do racismo e sugere que os perfis falsos saiam em defesa de Costa. Em resposta, um assessor socialista recomenda a partilha de afirmações de Costa sobre o caso Marega, com a hashtag #naoaoracismo.
De acordo com os relatórios semanais a que tivemos acesso, semanalmente eram feitos centenas de comentários através destes perfis falsos em defesa de Costa e contra a oposição.
Um desses relatórios chega a alertar que «várias contas sem rosto e muito provavelmente associadas à oposição» denunciaram alguns perfis falsos do PS. «Ainda assim, não será provável que se consiga provar que são realmente falsos, são meras suposições de páginas alter egos», pode ler-se no documento, que também refere que «o número de perfis falsos da oposição aparenta ser em número muito superior aos do PS, o que prova a dimensão da aposta e do investimento feito».
Não deixar que os perfis falsos fossem detetados era uma preocupação constante, já que muitos acabavam por ser denunciados por utilizadores e desativados. Na véspera das eleições de 2019, Aldara Rodrigues, gestora de marketing da ADBD na altura, alertou no grupo do projeto para o «risco» de interagirem com os bots naquele dia: «Se comentarmos vamos ter as atenções todas centradas em nós. O próprio Facebook tem mecanismos de alerta para garantir a transparência do dia de amanhã. Sabemos que os meios vão estar com atenção redobrada para apanhar bots. Interagir amanhã poderá gerar mais problemas do que benefícios».
Apesar de a maior parte da estratégia ser delineada através de dois grupos noWhatsApp, houve pelo menos uma reunião presencial na sede do PS, antes do debate entre Costa e Rui Rio. Nesse encontro esteve presente o dirigente do PS Luís Patrão, que integrava o secretariado nacional e a comissão permanente do partido, a equipa da ADBD, outra agência de comunicação e membros da Juventude Socialista. « Foi aí que percebi que não éramos os únicos a trabalhar com os perfis falsos. Essa outra agência que estava presente e a JS estavam a fazer o mesmo que nós», recorda Miguel.
Um exército de bots por 40 mil euros
A 6 de outubro de 2019 António Costa foi eleito primeiro-ministro e a vitória ditou o início da fase dois do projeto dos bots, desta vez adaptado ao período pós eleitoral e ao início da pandemia da covid-19, em 2020.
De acordo com o balanço de contas do Partido Socialista a que o Nascer do SOL teve acesso, o partido pagou 18.450 euros à ADBD Communicare. Já em 2020, o valor pago subiu para 21.525 euros. «Nesta segunda fase algumas pessoas da equipa alegaram objeção de consciência e recusaram-se a participar. Como este período envolveu o início da pandemia, foi mais pesado, mexia com a nossa consciência», desabafa Miguel. «Era como estar a atirar areia para os olhos das pessoas numa altura em que ainda não se sabia bem o que se estava a passar, nem o que estava a ser feito. E tínhamos de passar a mensagem de que o PS estava a controlar tudo muito bem».
O Nascer do SOL tentou entrar em contacto com o Partido Socialista para obter uma reação aos factos mencionados, não tendo obtido resposta até à data de fecho do jornal.