Luiz Pacheco. “Meu Deus, que caras que nós temos!”

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Amanhã faria 100 anos aquele que se passeou entre nós como a praga de um homem só, esse provocador terrorista. E se os tantos filhos não se põem de acordo, continuando a frustrar-se a reedição da sua obra, o seu rastro não esfriou nos alfarrabistas, e agora é a academia que mostra ganas de o integrar, mumificar, fazer-lhe a folha.

Luiz Pacheco escrevia bastante mal, como certa vez me fez notar um crítico apreciador de outras tradições, mais refinadamente europeias, mas não era mal apenas por arremeter contra a clareza ou a sofisticação da sintaxe mais clássica, introduzindo um relevo ressurecto, um impulso truculento, um estilo meio aleivoso, era o escrever mal de quem mistura na frase um sabor canalha, mesmo se com laivos de uma animosa erudição. Não era, não podia ser, por lhe faltar graça, como supunha o crítico que me fez tal reparo, era pelo talento algo escabroso, pela frase sinuosa, por introduzir esse vício, essa malignidade que acha e preenche todas as fendas, que abre sulcos, aproveita os desníveis, afunda as estrias, e se dá ao gozo, fazendo do escárnio um desarranjo na língua, precipitando-a ele nela. Podia afrouxar aqui, alongar ali, articulando de forma mais voluptuosa ou grosseira, mostrando como esse gozo de quem aprecia as marcas de uso, os gastos com a vida. Ele era elipses, frases truncadas, vagueantes, recortes e sobreposições, parêntesis vastos, travessões para os apartes, variações formidáveis. Era jucundo aqui, jocoso ali, insuflava a frase, eriçava-a, dava-lhe beliscões, punha nela desabafos oralizantes, puxando o leitor para si. Mais baixo, sussurrante, noutros momentos abrindo e exaltando-se, brincando, satirizando, para cima, para baixo, indo e vindo. Dava-se a uns gastos espantosos, prodigalizava impressões, sabendo encadeá-las de forma meio caótica, mas não inconsequente.

Luiz Pacheco foi um mestre muito particular nesses abusos capazes de revivescer esta língua. Soube assim devolver-nos ao entusiasmo por ela. E neste seu centenário, é este o aspecto que nos parece de elementar justiça salientar, ainda por cima da sua prática enquanto empenhado editor, que alinhou na Contraponto um estupendo pelotão da madraçaria, ou mesmo essa arrenegada fúria que fez dele um tão excelso e temível zurzidor dos instalados bonzos do nosso meio literário, soltando as pragas na forma de folhetos, papéis volantes, postais ilustrados, artiguelhos de jornal, como este. Mas deixando de lado, por um instante que seja, o feitio ou carácter, a fábula sórdida desse “fauno devasso”, e mesmo aquele ânimo incomparável de agitador frenético, o ter-se feito um personagem que excedeu de todos os modos a escala do inconformismo, tornando-se impossível de integrar, ou até de beatificar pela inversa, como agora alguns pretendem, esse ser que veio desmoralizar inteiramente o enredo e o elenco, por uma vez gostaria de destacar como a sua dicção era um universo, dele e daqueles poucos que percebem como o manejo da língua significa uma experiência mais funda das coisas, de si mesmo. A sua casquinada ainda soa bem viva naquelas frases. Entra-se ali e sabemos exactamente com quem estamos. Leva-se encontrões, um tipo sente-se mexido, revirado. Há gestos ali, sinais, a busca de uma certa reciprocidade, e a força de gravidade de uma cultura que não prescinde do absurdo, nem de uma certa crueldade ou ferocidade, tão úteis às distinções que o espírito é capaz de fazer como os elementos calorosos.
Tudo aquilo era um modo de se fazer entender por quem pudesse e possa estar do outro lado, por esse que chega a sentir o peso da sua mão, esse leitor que ele nunca perde de vista. Firmava um trato com ele, um pacto, uma confiança. Cravava-o; não deixando também de o recompensar. O assunto dele eram essas porras que não interessam a mais ninguém, só a uns poucos, que se desforram do tédio armando-se do génio de uma longa paciência e curiosidade, os que assinam o livro de presença, mostrando-se disponíveis, esses que se rebuscam todos, que preferem variar, estender a solidão, fazendo-se companhia, afinando aquela atenção especial pelas coisas cá de baixo, sabendo que a natureza da existência, a maior parte do tempo, é rastejante. Assim, sem abrir mão das ocasionais cintilâncias, nasce um gosto pela intriga, pela condição comum. Afinal, o que era o Pacheco senão o mais sórdido e extravagante exemplo do ser comum?
Há uma literatura que desconfia das grandes inteligências, das teses capitais, das obras que, escritas para enaltecer o génio da humanidade, ficam por aí como monumentos impantes, mas, afinal, todos cagados pelos pombos. A literatura que era a dele preferia os manhosos, era imensamente perdulária, dirigia-se à tribo que vem a uma página porque estão fechados os cafés, ou porque o convívio que resta se tornou demasiado torpe.

Pacheco sabia tudo do que é isso de andar por aí deslembrado de si, de se aferrar a uma causa qualquer para se distrair, de entreter uma raiva miúda, uma ânsia belicosa, lamber com a mira algum alvo em movimento, causando-lhe arrepios, não perdendo a perícia e evitando também, desse modo, ter a arma apontada contra si mesmo.

A escrita ajuda a desenredar o novelo, a tinta estende o fio. A ficção, que não exige grandes temas, dá-se por contente com uma distracção, uma oportunidade qualquer, um assunto que lhe sustenha o fôlego, pondo o melhor de si na composição de uma cena reconhecível, mas investigando esses motivos que justificam um personagem ou vários, dando à época o seu gosto. Ele tinha claro como, esmiuçando, cada ser revela um abismo. O escriba, assim, caça sucata e peças desirmanadas das que exprimem o tumulto das profundidades.
Por estes dias estraga-se a literatura com justificações, com programas estéticos e ambições que lhe são inteiramente estranhas. Os escritores foram substituídos por especialistas em registos e trilhos de documentos, que se mostram sempre muito contentes por esclarecer cada uma das suas escolhas, cada parágrafo ou frase. Sufocam tudo. Antes ainda havia uns quantos que preferiam ficar por um “não sei”, por um “foi o que me veio”. A primeira frase era uma cotovelada, um “já reparaste que…” E dali poderia ir-se encadeando pormenores que salvassem o quotidiano, arrancando-lhe uma autêntica epopeia sem elidir aquele arranque. Mas tinha de haver um toque de alvorada nas coisas que nos vinha contar.
O Pacheco era uma soberba língua-de-trapos. Quem gosta, percebe. Quem não, anda nisto por outros motivos, por fanfarras ilusionistas. Um dia destes já ninguém quererá ter nada a ver com estas coisas se se derem conta de que a literatura se coloca em relação à vida mais comum numa postura sobranceira. Mais valia escrever mal, meter-se em assuntos menores, exprimir esse prazer de estar atento, de ter reparado e fazer notar, salientar, dar um nó, engatilhar estímulos, impulsos, catar incentivos, gozar o prato, com deus e o diabo. Mais vale uma literatura comestível, mesmo se um tanto indigesta. E não seria mau se pudéssemos provocar tremendas indigestões nos leitores.

O pior é deixar-lhes uma boa impressão, encher-lhes o ego, e alimentar toda essa superlativa indiferença. O pior é que, entretanto, esta gente já nem sabe rir. Lemos as coisas tão sisudas que escrevem, tão convencidas da sua importância, estes escritores tão refestelados no lugar que certamente virão a ocupar, e percebe-se que esta gente nem desconfia do quadro ridículo em que se inscrevem.

Rir é um sinal de inconformismo, a melhor forma de se fintar os prestígios fáceis, os esquemas e enredos dominantes. Pacheco era um finíssimo intriguista, e a sua prosa é um género em si mesmo, uma argúcia envolvente, um juízo insaciável, que, como bem notou Baptista Bastos, estabelece a união entre a miséria e a glória.

O seu género é uma forma de vingança, de apostar na lucidez, bater-se contra a moral puritana que de tempos a tempos empesta e emperra a nossa vida literária. Por isso, ele nunca buscou a aprovação beata que serve a alguns para se irem governando. Ele escreveu como um danado, tal como Camilo, abraçou a vertigem e o desamparo, encantou-se pelo azar, entregou-se-lhe, e passou mal, viu-se realmente no fundo do fundo, mas raspou ali uma substância trevosa e doce, viciante e inesquecível, e isso explica porque as gerações que venham a retirar desta língua a sua visão mais profunda do mundo continuarão a procurar os seus escritos avulsos, indecorosos, marciais, em busca desses frutos bichados que deixam na boca o gosto da própria queda.