Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, anunciou em março que o euro digital, ou seja, a moeda digital emitida pelo BCE, tem o seu lançamento programado para outubro de 2025. Este projeto encontra-se em preparação desde 2023. Mas o seu significado profundo; mais político e ideológico do que propriamente económico; os seus riscos e as suas implicações transformadoras nem sequer suscitaram qualquer sobressalto na sociedade civil. E, no entanto, pode bem concretizar um sonho até hoje inacessível a qualquer tirano.
O receio perante a novidade é um clássico das sociedades. Mas esta inovação, que se concretizará como imposição obrigatória, surge num contexto particularmente inquietante. Os processos decisórios da União Europeia tornam-se, a cada passo, menos democráticos. Este pode ser mais um avanço no sentido de que, depois da erosão das soberanias nacionais, se caminhe agora para o controlo das soberanias individuais; mediado por uma engenharia social algorítmica.
O funcionamento atual da União Europeia revela uma tendência clara para a centralização autoritária; impondo as decisões de uma oligarquia tecnocrática às soberanias nacionais, reprimindo o contraditório e silenciando a crítica. Mesmo as decisões do Tribunal da União Europeia se sobrepõem hoje às instâncias judiciais nacionais; anulando juridicamente a vontade popular.
A ambição de construir um poder único, capaz de submeter todas as soberanias europeias à obediência de um centro tecnocrático, já não é um receio infundado. No plano monetário, a própria criação do euro, apresentada como promotora de competitividade e integração, acabou por reduzir drasticamente a soberania económica dos Estados; gerando uma dependência quase total de instâncias transnacionais como o BCE e a Comissão Europeia.
O euro digital poderá, à primeira vista, responder à criação de moedas digitais não reguladas, oferecer uma garantia superior de fiabilidade, maior eficiência nas transações e no combate à lavagem de dinheiro. No entanto, carrega consigo um risco profundo; o de se tornar instrumento de normalização comportamental; impondo um modelo único de pensamento, consumo e existência.
A digitalização total da moeda, ao permitir o controlo absoluto sobre o dinheiro de cada cidadão, poderá inaugurar uma nova fase na história da vigilância e do controlo social. Estamos perante uma moeda digital centralizada e obrigatória. Não se trata de especulação. Já em 2021, o Supervisor Europeu da Proteção de Dados alertava para o risco de o euro digital se tornar “num instrumento de vigilância em massa”; caso não fossem asseguradas garantias tecnológicas e legais adequadas.
O uso político e coercivo do sistema financeiro é uma realidade contemporânea. No Canadá, em 2022, contas bancárias de manifestantes foram congeladas por ordem estatal, sem decisão judicial; demonstrando como a digitalização financeira pode ser usada como ferramenta de repressão (CBC News, 2022).
A substituição gradual do dinheiro físico por uma moeda digital centralizada no espaço europeu poderá tornar-se numa engrenagem crucial de uma nova arquitetura de controlo social. Esta transição, longe de ser uma simples modernização técnica, ameaça comprometer gravemente a liberdade individual; ao mesmo tempo que reforça o poder de entidades supranacionais desprovidas de escrutínio democrático real.
Tudo, claro, é apresentado sob a retórica sedutora da segurança financeira, da inovação digital e da estabilidade regulatória. Mas, até 2030, é plausível que o dinheiro físico desapareça por completo; entregando ao Banco Central Europeu a capacidade de vigiar e condicionar os rendimentos e despesas dos cidadãos; com impacto especialmente nefasto sobre os mais vulneráveis.
Imagine-se, por exemplo, que alguém ousa criticar as instituições europeias ou recusa apoiar partidos alinhados com as suas diretrizes. À semelhança do sistema de crédito social chinês, poderá ver a sua margem de autonomia restringida como forma de punição silenciosa.
Autores como Pierre Manent e Chantal Delsol já advertiram que a União Europeia está a evoluir para uma estrutura onde a deliberação democrática é substituída por uma gestão tecnocrática; instaurando um “império da norma” sem alma política nem legitimidade popular.
Com esta nova transgressão da União Europeia, o dinheiro deixa de ser uma extensão da liberdade individual para se tornar num instrumento de controlo tecnopolítico. Deixa, em definitivo, de pertencer ao cidadão. O seu uso passa a ser supervisionado e condicionado por uma instância supranacional que age segundo os seus próprios interesses.
Nem os maiores ditadores da história sonharam com um mecanismo de domínio tão absoluto. Uma moeda única, centralizada, digital e obrigatória; sob o controlo exclusivo de um banco central que não responde a ninguém senão a si próprio e à oligarquia transnacional que o sustenta. Os cidadãos deixam de ser agentes económicos livres para se tornarem súbditos.
Desaparecem os bancos intermédios, as moedas locais, os circuitos alternativos e comunitários de troca. O dinheiro, que deveria expressar liberdade e confiança entre pares, é capturado pelo poder central como ferramenta de comando e vigilância. O controlo absoluto da moeda equivale, de facto, ao fim da autonomia real dos indivíduos em sociedade.
A promessa inicial do blockchain; descentralizar a confiança; começa a ser traída. O poder volta a ter donos; e esses donos podem moldar, condicionar e até usurpar as formas legítimas de liberdade e crescimento pessoal; invocando os pretextos da estabilidade, da segurança ou da eficiência.
O dinheiro, que deveria ser um contrato livre entre pares, regressa como código de obediência; um algoritmo que dita o que podemos ou não fazer, comprar, partilhar ou financiar.
Como contraponto, poderá restar apenas um mercado negro de moedas e um mundo económico-financeiro paralelo. Talvez essa seja a única alternativa saudável e genuinamente democrática perante esta nova investida tirânica.
A própria ideia fundadora das moedas digitais; descentralizar o poder e libertar os indivíduos da intermediação predatória; é pervertida. Aquilo que se anunciava como libertação digital transforma-se numa prisão digital imposta por uma União Europeia cada vez menos democrática; que procura eliminar qualquer dissidência ou oposição crítica.
O poder político, já hoje capaz de mapear o nosso rasto digital, seguir a localização dos nossos dispositivos e explorar psicologicamente os dados recolhidos do nosso uso da internet, ganhará uma nova arma: o controlo total sobre a moeda. Saber-se-á, em tempo real, de onde vem o dinheiro, onde é gasto, com quem se transaciona. Os nossos hábitos de consumo bastarão para construir perfis completos, íntimos e permanentes. E o problema vai além da vigilância: trata-se agora de condicionar. O Estado poderá bloquear pagamentos para produtos ou serviços considerados “inadequados”. Poderá impedir transações por razões políticas, morais ou ideológicas. Tudo o que não se alinhe com a norma oficial poderá ser restringido; ou simplesmente proibido.
O mais grave, no entanto, é a possibilidade de se congelar o acesso ao dinheiro de um cidadão com base puramente ideológica. Por ser trumpista, apoiar Putin, defender André Ventura ou criticar a União Europeia.
Dissidentes e inconformados podem tornar-se alvos de uma nova forma de punição: a exclusão económica. A moeda digital transforma-se, assim, numa arma de guerra cultural, ideológica e social.
A possibilidade de criar moedas digitais não centralizadas, mas dotadas de garantias sólidas de fiabilidade, não é uma utopia. A sociedade civil e os parlamentos nacionais mantêm, em princípio, a capacidade de resistir e impedir abusos de cariz totalitário na gestão da moeda. O euro digital, por si só, não tem de representar a concretização de um determinismo tecnológico catastrófico. No entanto, continuamos no domínio das possibilidades, e o presente já oferece razões concretas para um receio fundado: o risco de pulsões totalitárias, sempre disfarçadas sob a aparência de racionalidade técnica ou de benignidade institucional. A sociedade civil e os meios políticos devem exigir limites claros ao euro digital antes de sua implementação, sob risco de entregarmos um poder excessivo a instituições não eleitas. Mas ainda há sociedade civil?