A Ciência, a Política e o Poder

Que a ciência se sirva da política é uma coisa, coisa diferente será a política usar ilegitimamente a ciência para as suas conveniências. Que Deus nos livre!

Há poucos dias a prestigiada revista The Lancet publicava um editorial intitulado ‘Aupporting medical science in the USA’ onde comentava os mais recentes ataques da administração americana às instituições e organizações da ciência para a saúde nos EUA. Nesse editorial o autor denunciava flagrantemente esses ataques chamando a atenção para os seus riscos e apelando à necessidade de resistência pela comunidade científica. Pareceu-me por isso pertinente e, sobretudo, atempado reflectir sobre as relações entre a Ciência, a Política e o Poder.
Se a ciência se baseia na busca – aplicação do conhecimento e na compreensão do mundo natural e social apoiando-se em evidências, já a política é o conjunto de actividades associadas à tomada de decisões e as relações de poder entre indivíduos, conduzindo à distribuição de status ou de recursos.
As interacções entre ciência e política existiram desde sempre: Desde a antiguidade, opções políticas guerreiras levaram Arquimedes a idealizar máquinas bélicas e hoje continuam a impulsionar a física na descoberta de armas cada vez mais letais e, nos dias de hoje, o sonegar pela política de efeitos nefastos que desrespeitam o ambiente, ao arrepio de todas as recomendações da ciência. A política não deve dispensar a ciência para bem basear as suas decisões, mas teima em usar a ciência como arma de intervenção poderosa. Reciprocamente, a ciência precisa do apoio político-governamental para financiar as suas pesquisas e para implementar as suas descobertas, de forma a beneficiar a sociedade. Nesta linha de pensamento a união de colaboração saudável entre a política e a ciência gera ganhos indesmentíveis para a salvaguarda da vida das populações – foi o exemplo da recente pandemia do covid. No entanto, mesmo durante a pandemia, muitos foram os políticos que negaram flagrantemente as evidências e recomendações da ciência – com as consequências que conhecemos!
Tipicamente, o método científico apresenta factos e pergunta que conclusões há a extrair desses factos. Já o método político tende a apresentar conclusões e a solicitar depois os factos que as possam suportar a seu gosto e conveniência. Quando a ciência, ou pseudociência, perigosamente aceita esse papel não haverá dissidências, mas quando recusa, a via demasiado tentadora será a da asfixia da ciência pelo poder político. No seu muito recente livro When Science Meets Power Geoff Mulgan, do University College em Londres, considera que os avanços inimagináveis da ciência necessitam de uma boa governance para se tornarem úteis à sociedade. No entanto, tais avanços têm um passo de tempo que a política não pode esperar e comportam uma complexidade para que esta não está, de todo, preparada. Basta reflectirmos, por exemplo, no número de doutorados que encontramos num qualquer laboratório de ciência em comparação com o número dos mesmos que incorporam as filas de um qualquer parlamento. Assim, entenderemos o porquê dessa difícil compatibilização enquanto vemos legitimada a confiança pública nos agentes da ciência e a desconfiança crescente no praticantes da política. A ciência deve descobrir livre e isentamente orientando a sua finalidade pela utilidade para as populações e gerindo-se sempre por valores morais e procurando resultados consensuais de larga fundamentação. Mas investigar o quê, em quem, em que tempo e com que meios serão, afinal, opções políticas… Por isso fará sentido que os governos sugiram à ciência as necessidades e possam, até, governar a ciência – essa que é, afinal, a sua missão – mas sem nunca desrespeitar a honorabilidade científica. Numa palavra, a política e a ciência deverão complementar-se e nunca beligerar.
Deverá o poder resistir às tentativas de controlar, sob pretexto de racionalizar, a ciência pois tal acabará por cercear a verdade e ameaçar, minando as democracias.
Estas tentações pelo poder podem expressar-se de forma muito ténue, por exemplo, nas escolhas sobre que investigação financiar, na escolha das notícias de ciência a divulgar, no promover da desconfiança pública sobre os factos provados da ciência, tendendo assim descredibilizá-la, e até por tentativas, como as que assistimos entre nós num passado recente, de tentar limitar a autonomia técnica das ordens técnicas-profissionais… Claro que nada disto se compara com o que se passa presentemente nos EUA, onde as políticas de Donald Trump vêm minando deliberadamente as instituições científicas, levando ao negacionismo perigoso de estratégias bem provadas de vacinação, ao subestimar dos graves impactos climáticos, afastando assim cada vez mais a ciência da política, com descrédito populista para a primeira. Este exercício de poder discricionário desacredita propositadamente a ciência, nega o seu financiamento, destrói a sua regulação e vai, numa palavra, negando o conhecimento e afirmando perigosamente o populismo.
Temos a sorte, por enquanto, por estarmos poupados a cenários desta gravidade, mas importará estarmos atentos para não permitirmos que a ciência venha a ser controlada, mais do que deve, pela política.
Desejavelmente, a política deverá pedir à ciência factos provados, de boa evidência e por amplos consensos, para poder depois decidir em função destes e no interesse das populações que deverá sempre tentar servir. Ao invés de tentar controlar a ciência para, pela via da sua asfixia, descredibilização e sonegação, justificar e legitimar quaisquer decisões de conveniência. Que a ciência se sirva da política é uma coisa, coisa diferente será a política usar ilegitimamente a ciência para as suas conveniências. Que Deus nos livre!
Quando políticos e cientistas, poder e conhecimento, se encontram e convergem produtivamente assistimos a grandes feitos: desde o controlar de pandemias à redução dos impactos ambientais. Afinal, cientistas e políticos partilham um mesmo objectivo que não poderão esquecer, que é melhorar a vida das pessoas. Entretanto, como sugeria e bem o editorial da Lancet temos quer estar atentos e lutar resilientemente!