Entre os seus últimos ensinamentos, o Papa Francisco deixou-nos uma reflexão de extraordinária atualidade: a Carta sobre o papel da literatura na educação (17 de julho de 2024)[1].
O texto, embora pensado no contexto da formação sacerdotal, oferece uma visão tão ampla e profunda que ultrapassa essa moldura inicial. Os princípios que Francisco propõe – o papel vital da literatura no amadurecimento pessoal, espiritual e relacional – são transferíveis a todos os que buscam cultivar a sua humanidade.
“Refiro-me ao valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal.” (n.º 1)
Disponível em oito línguas (árabe, alemão, inglês, espanhol, francês, italiano, polaco e português), este documento reafirma não apenas o seu alcance universal, mas também a riqueza da diversidade linguística e cultural – dimensão fundamental para o humanismo que nele se proclama.
Ao longo da Carta, o Papa sublinha que a literatura não é um luxo nem um mero entretenimento. Num mundo saturado de estímulos audiovisuais e de notícias superficiais, ler – especialmente obras literárias – oferece um espaço de silêncio, de imaginação e de interioridade.
Francisco insiste no carácter ativo do leitor: ao ler, não apenas recebe, mas recria, transforma e expande o texto com a sua própria experiência e sensibilidade.
“O leitor é muito mais ativo quando lê um livro. De certo modo, reescreve-o, amplia-o com a sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de dramatismo e simbolismo.” (n.º 3)
Este exercício de imaginação e de escuta atenta é fundamental para a formação humana. A literatura ensina-nos a entrar nos dramas, desejos e feridas dos outros, abrindo-nos à complexidade da condição humana — uma prática que, como lembra Francisco, aproxima da ‘carne’ concreta de Jesus Cristo, feita de histórias, emoções e olhares: “Todos devemos estar atentos para nunca perder de vista a ‘carne’ de Jesus Cristo: aquela carne feita de paixões, emoções, sentimentos, histórias concretas.” (n.º 14)
Nesta conceção da literatura como via de atenção plena e de cultivo do humano, encontramos também ressonâncias com reflexões contemporâneas sobre o cuidado. Como propõe Cynthia Fleury, cuidar é um ato profundamente ligado à imaginação e à escuta ativa – não apenas resposta a necessidades, mas reconhecimento da singularidade do outro numa relação de responsabilidade e criação de sentido[2].
Tal como a boa leitura exige atenção verdadeira, paciência e abertura, também o cuidado autêntico requer uma presença imaginativa e respeitadora, que vai além das respostas automáticas ou meramente técnicas.
Num tempo de acelerada tecnicização da vida, em que o contacto humano corre o risco de se perder, a literatura oferece-se como um laboratório insubstituível para treinar a sensibilidade, a empatia e a inteligência relacional. Esta visão encontrou terreno fértil nas Humanidades Médicas, cujos programas, florescentes em várias escolas de medicina, sublinham o papel da imaginação narrativa na compreensão e no cuidado do outro[3].
“A literatura ajuda o leitor a quebrar os ídolos das linguagens autorreferenciais, falsamente autossuficientes, estaticamente convencionais […], tornando a palavra humana mais hospitaleira à Palavra que vem habitar nela.” (n.º 42)
Ler, neste sentido, é um gesto de resistência contra a banalização do humano. É um exercício de liberdade interior, de hospitalidade para com a alteridade, de criação de novas possibilidades de sentido.
Ler é uma forma de cultivar a humanidade.
Fica o convite para visitar ou revisitar – esta carta inspirada e inspiradora, que nos desafia a fazer da leitura não apenas um hábito, mas uma arte de viver e cuidar.
Professora de Literatura e de Humanidades médicas
[1]Francisco. Carta do Santo Padre sobre o papel da literatura na educação. Vaticano, 17 de julho de 2024. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2024/documents/20240717-lettera-ruolo-letteratura-formazione.html.
[2] Cynthia Fleury, O Cuidar é um Humanismo (Prefácio de Maria de Jesus Cabral). Porto: Afrontamento, 2025.
[3] Maria de Jesus Cabral e Marie-France Mamzer (Coords). O(u)sar a Literatura: Um laboratório de leituras para a reflexão em saúde (D. Faria, J. Domingues & M. Lopes, Trads.). De Facto Editores, 2020