Passado o apagão, com contornos técnicos que ficaram esclarecidos, já se fizeram todos os diagnósticos sobre o impacto que teve no país e avaliações para todos os gostos sobre a qualidade da reação dos nossos governantes. Relativamente aos governados, até porque estamos à bica de eleições, prevaleceu uma acrítica unanimidade: concluiu-se que os cidadãos foram valentes e exemplares.
É isto, na realidade, que me leva a escrever esta crónica. Porque esse é um falso diagnóstico, totalmente desmentido pelos factos. Aquilo que sucedeu, mais uma vez, foi a corrida desenfreada aos supermercados, gerando um fenómeno de açambarcamento que, aqui e ali, chegou à pilhagem. Um assunto que, naturalmente, o setor da distribuição não quis sequer divulgar, não vá transformar-se em moda.
As imagens de correrias tontas e de hunos com carrinhos de supermercado carregados de água (que raramente faltou nas torneiras), de cerveja (que pelos vistos iria ser consumida à temperatura ambiente) e de papel higiénico (porque o medo parece dar volta à barriga a muita gente) são exemplo de uma gritante falta de civismo. Não há outra forma de o descrever. As reações de toda esta gente deviam levar a uma reflexão profunda por parte das autoridades, servindo até de estratégia preventiva para lidar com problemas semelhantes em caso de uma catástrofe a sério. O que sucederia se o apagão durasse mais de 24 horas? O que acontecerá se houver um terramoto? Será o salve-se quem puder? Teremos pilhagens descontroladas?
Também me incomoda a crítica à comunicação da crise e as queixinhas de alguns autarcas. Compete a cada entidade, nomeadamente às autarquias, ter um plano integrado e uma estrutura de suporte ágil para crises desta natureza.
Quanto aos comentários à reação governativa por parte de Pedro Nuno Santos, que voltou a despir a pele de cordeiro, pergunto-me se acha que o Executivo devia ter comunicado com os cidadãos por sinais de fumo, ou se teria sido melhor vir para as rádios dizer que não sabia quando o apagão iria acabar, em vez de procurar encontrar soluções e respostas para o mesmo. Basta lembrar que o telefonema entre Montenegro e Sánchez foi interrompido porque este último ficou sem rede…
E, claro, os especialistas que nada tinham previsto apareceram a dizer que o apagão ‘já podia ter acontecido antes’. Ouvimos não só lapalissadas deste calibre como comentários ideológicos que tudo atribuem à privatização do setor energético, ignorando que a rede espanhola, onde surgiu o problema, pertence ao Estado. Longe vai o tempo em que o líder da oposição, Rui Rio, tolerava com paciência e solidariedade a trágica comunicação do início da pandemia.
Já se esqueceram, mas eu vou recordar: em janeiro de 2020, quando os sinais já não enganavam, Graça Freitas considerava «um bocadinho excessiva» a possibilidade de contágio entre humanos, dizendo não existir «grande probabilidade» de o vírus chegar a Portugal. Dois meses depois, com centenas de infetados, a incumbente na direção da DGS propunha, ladeada por Marta Temido ou por Lacerda Sales, medidas contraditórias todos os dias.
Este apagão não teve impactos dramáticos e os serviços críticos responderam razoavelmente. Resistente a inquéritos e a investigações, o SIRESP falhou, como sempre falha, por falta de corrente. O sistema é o que é e não tem cura.
Os portugueses também são o que são. Até à próxima, dir-nos-ão que somos fantásticos. Tenhamos ao menos o bom senso de desconfiar, mantendo em nossas casas reservas de sobrevivência.
Tapar o apagão com a peneira
As imagens de correrias tontas e de hunos com carrinhos de supermercado carregados de água, de cerveja e de papel higiénico são exemplo de uma gritante falta de civismo.