Ajudar Israel a manter a alma

À aparente falência moral do Estado israelita não pode corresponder igual colapso em todo o Ocidente.

No seu discurso Eu estive no topo da montanha, Martin Luther King chamou à luta pelos direitos civis nos EUA o «segundo inferno do século XX». Se assim é, não é muito difícil classificar os acontecimentos em Gaza como o ‘primeiro grande inferno do século XXI’. As notícias que chegam daquele enclave representam um atentado à decência e à ideia de civilização ocidental.
Na sequência dos atentados vergonhosos do Hamas, de 7 de outubro de 2023, o Estado israelita iniciou uma grande ofensiva, que tinha como objetivo destruir aquele movimento terrorista.
O atentado representou uma colossal falha de segurança por parte do aparelho de Estado de Israel, particularmente grave porque teve lugar quando o chefe de governo do país era, e é, um homem cujo principal capital político decorre da sua capacidade de garantir segurança ao Povo e ao seu território.
O sucesso da ofensiva das forças armadas de Israel condicionaria, pois, o futuro político do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, pela falha de segurança, por um lado, e pelos problemas judiciais que enfrenta, por outro. Se, enquanto os aliados EUA foram presididos por Joe Biden, havia o cuidado, principalmente por parte destes, de garantir que o mínimo de subsistência era dado aos palestinianos, a eleição de Donald Trump parece ter libertado as amarras e os limites àquela guerra.
À aparente falência moral do Estado israelita não pode corresponder igual colapso em todo o Ocidente. Quem se diz herdeiro do Iluminismo, e defensor da dignidade da pessoa humana como pilar central da nossa civilização, não pode deixar de se chocar com as atrocidades que o poder em Israel está a cometer na Palestina.
Sabemos que as organizações internacionais foram de uma ingenuidade tola, de certo modo colaboracionista, ao longo dos últimos anos. Sabemos, também, que o Hamas é um grupo terrorista abjeto. Sabemos, ainda, que o 7 de outubro de 2023 foi um ato horrível, mas tal não pode dar para tudo. O 7 de outubro não justifica uma política sistemática para matar palestinianos, ou para alargar o território, aproveitando as benesses do aliado e as fragilidades dos vizinhos. As vitórias militares de hoje não serão mais do que as sementes das guerras futuras.
O Hamas é o que é, mas quer os israelitas, quer nós próprios, não somos ‘aquilo’ e não queremos ser transformados ‘naquilo’. No propósito de vencer o demónio, não podemos permitir que nos transformemos num outro demónio. É isso que atualmente está em causa.
A forma como esta guerra tem sido conduzida pelo governo de Nethanyahu é, por si só, demonstrativo de um certo perder da alma de Israel, no sentido que representa uma traição a um Estado que nasceu da vergonha coletiva de o mundo ter permitido o Holocausto. Se, na II Guerra, estar calado perante o horror nazi (sabendo o que se estava a passar) significava tolerar o Holocausto, aceitar, em 2025, que Gaza seja o inferno, representa colaborar com aquilo em que o seu regime se está a transformar.
Temo, porque admiro e respeito Israel, que este conflito esteja a deixar as sementes dos ódios e os rancores de amanhã. Até há poucos anos, Israel era um país que nascera sob ataque dos seus vizinhos, mas que, na larguíssima maioria das vezes, tinha resistido a comportar-se como aqueles, respeitando os seus valores e a sua superioridade moral.
De agora em diante, o que impede o mundo de ver Israel como igual a quem os ataca? ‘Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?’.