Luiz Pacheco. O combate ao meio literário

Eis-nos sobre o centenário do Libertino, o mais insolente dos nossos polemistas, um cronista e crítico ferocíssimo, e o editor que delineou a estratégia de contraponto, um modo de resistência e desacato que inspirou aquilo que, nas últimas décadas, de melhor se fez na edição independente.

Tendemos a esquecer a que urgência a literatura, quando nos é útil, vem dar resposta. Em alguns momentos da nossa vida, mais que a busca de um consolo de qualquer espécie, surge em nós uma fome de realidade. Mas se a arte se deixou dominar pelo êxtase das formas, a realidade tem persistido como um tabu entre nós. E neste miserável país onde tão pouco se fala, onde antes de tudo, temos medo da nossa própria voz, a pior das insolências talvez seja a desses que arrancam do fundo de si mesmos uma motivação, uma ânsia de investigar o mundo, e vivem tomados de balanço, encolerizados com aquilo que os outros acatam como a normalidade, sem a questionarem. Aqueles testam as águas, põem-se a escrever num estado de agitação como se grafassem nos muros, por toda a cidade, os seus textos, dando livre curso às suas suposições, àquilo que os sacode e revira, acusando a irrealidade em que vivem os da cultura, sendo esse um campo que tresanda a mistificação. Ora, num meio onde ninguém confia em si ou em qualquer outra pessoa, onde não há verdadeiramente figuras capazes de impor valores, se se procura trazer à consciência algo que diga respeito a um confronto íntimo com a realidade, tudo isso passa por indecência. Privados da graça da multiplicação quotidiana da vitalidade, aqueles que se acomodaram a ficções substitutas, que as produzem e divulgam, contando com a menoridade, a imaturidade e a falta de experiência do leitor, repudiam qualquer obra que atravesse a linha do abstracto para o concreto. Perante esses, hoje, se pronunciarmos o nome de Luiz Pacheco, ainda as hostes se repartem, aflorando na expressão de uns um polido desdém, enquanto outros esboçam um sorriso meio canalha, em prova de cumplicidade escarninha. Mas o certo é que o fantasma não foi de todo desinfectado, desparasitado, banhado em sais – o cheiro dele ainda nos decompõe. E não faltam por aí vivos (ainda que pouco) e ressentidos alguns alvos, o que explica certa frieza, o silêncio militante, mas, e antes de irmos mais longe, numa altura em que as efemérides funcionam como uma imensa patuscada, em que cada um escolhe um osso seco do esqueleto em exposição, mordiscando umas ideias, atirando uns juízos baratos, fáceis, precipitados, ajudando também a limpar qualquer resquício ou lembrança daquilo que nele mais incomodava, e se o mais assustador continua a ser a forma como a vida é sacrificada indistintamente a favor de defuntos, muitos dos quais não nos dão em troca nada de verdadeiramente instigador, no caso de Luiz Pacheco seria útil traçar já um paralelo decisivo com uma figura coeva, a do escritor polaco Witold Gombrowicz. Este, tendo levado igualmente a efeito, e com igual sanha, o princípio de que o que importa na literatura é fazer a guerra, estabeleceu um único interdito na abordagem à sua obra: “Ficai a saber que proíbo de falar sobre mim de modo entediante, normal, comum. Proíbo-o veementemente. (…) Castigo com crueldade aqueles que se dão ao luxo de falar de mim de modo entediante e sensato: morro na boca deles eles ficam com a sua cavidade bucal cheia do meu cadáver.”

O mesmo princípio ou exigência foi sendo feita por Pacheco, que viu bem como, às tantas, por conveniência, quando passaram muitos a achar-lhe graça, começaram a impor-lhe uma caricatura, engolindo-o no elenco, como um elemento de espalhafato, que traz um colorido ao pastelão das letras. Logo ele que nunca se quis misturado, parte do lote, antes se bateu sempre contra a opção livresca e bolorenta, zombando das hierarquias, dos modos da presunção, e foi sempre troçando dos nossos santarrões de altar. “Ao ver como são bem-comportados e alinhavados os nossos artistas e escritores, meros funcionários-usurários de um grãozinho qualquer de talento que lhes deu a Natureza, vêm-me sempre à cabeça os grandes exemplos dos irregulares, dos anti-sociais ou associais, que foram os grandes.” Diante de uma literatura imbuída até aos ossos da abstracção, quis devolvê-la à realidade tangível, e isso era uma questão mais de instinto do que de meditação cerebral, conhecendo o reino imundo da insuficiência, em vez de viver para as projecções idealistas, e não querendo nada com o absoluto, mas apenas com a razão que nos permite gozar essa plenitude dos dias, ser livre, desprendido, contar-se, permitir que as pequenas coisas assumam o seu lugar na experiência e na relação consigo e com os outros. Leiam-se frescos, rudes, desnaturados, os mesmos textos que lhe deram fama, Comunidade, O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor, O Teodolito, entre outros, mas tantos, afiados pela ocasião, para escarmento geral. E se a literatura exige que um homem não se ocupe demasiado de si mesmo, ele reconhecia como esta é uma terra ainda despovoada, sendo necessário que os sujeitos se assumissem, não renunciando às suas circunstâncias, nem se deixando intimidar, mas cultivando esses perfis extravagantes, dramáticos. Em vez de belezas artificiais, com as quais se mascara a degradação e mesmo os aspectos vivos, mas que afectam os espíritos púdicos, as sensibilidades que preferem a elegância dos salões, ele nunca se resignou, preferindo ser visto a palmilhar as zonas da humilhação, a refocilar nos quadros mais indecorosos e até sórdidos a pactuar com a religião do conformismo.

Como vinca Gombrowicz, a arte dá-nos uma perspectiva do mundo como cemitério: “em mil pessoas que não conseguiram ‘existir’, permanecendo na zona da dolorosa insuficiência, apenas uma ou duas conseguem realmente ‘existir’. Portanto esta sujidade, estes venenos de ambições insatisfeitas, esta luta no vácuo e esta catástrofe pouco têm que ver com a emigração e muito com a arte, porquanto constituem antes uma característica de todo o café literário e, de facto, é indiferente em que lugar do mundo os escritores lutam por o serem (…)”

Pacheco acreditava que a principal obrigação do escritor é libertar-nos das convenções e dos enredos que impedem o lado sensual da vida de se exprimir, construir uma relação de outra escala, mais funda com a existência, marcada pela ousadia e até pela crueldade, permitindo a divagação e a expansão desse regime de irresponsabilidade, sem a qual toda a criação fica amodorrada, tornando-se servil, rebaixando-se. Segundo o seu pacto, o leitor devia aturar-lhe os desvarios em troca dessa centelha de rebelião que liberta a própria realidade. O leitor acabava por aceitar-lhe um certo desmazelo, às vezes os juízos brutais, excessivos, um esgar irreflectido, um desabafo meio patético, uma malícia, um capricho, admitindo aquela margem que se abre na convivência para um tipo se exprimir de forma licenciosa, aberta, sem se sentir a todo o momento vigiado e posto em causa, antes sendo capaz de colher inspiração em tudo: fermento, desordem, impureza e acaso.

Nesse aspecto, Pacheco faz-nos ver que há uma compreensão mais profunda e que só nasce se admitirmos a instabilidade dos humores, uma perspectiva dinâmica sobre o mundo, os fenómenos ou os homens. “A humanidade foi criada de tal maneira que tem de se definir constantemente e de escapar constantemente às suas definições. A realidade não é algo que se possa encerrar numa forma definitivamente. A forma não é compatível com a essência da vida” (Gombrowicz). Por isso mesmo, a sua literatura não se define pelas formas clássicas, mas pela variação e o fragmento, o fracasso. Ele não deixou propriamente uma Obra que possa sair favorecida de acordo com algum cânone, não há ali romances, nem aquilo são contos, não temos peças de teatro, nem poemas. Não houve cá policiais, nem relatos de ficção científica, mas cartas, artigos, crónicas, diários, não só as larachas, e as bordoadas a este e àquele, mas um discorrer que vai relatando as proezas miudinhas de um homem para se ir safando, e os desgostos, as ilusões, as maroscas e habilidades, esses casos humorosos que vão compondo a nossa mitologia não oficial e até ilegal. No fundo, ele e a sua escrita confundem-se, é um ímpeto, um modo de tornar-se o embrião da vitalidade e do desenvolvimento, de garantir esse gesto de superação, de não ficar triturado nem despedaçado, mas de conseguir sair por cima, e promover o alargamento dos modos de expressão e de entendimento mútuo.

Não sendo uma obra que admita a proliferação das teses académicas, havia ali uma inquietação que sabia contentar-se com as migalhas, provocar o riso, a comoção, animar, e tudo aquilo ressoa em nós, mesmo se o material muitas vezes não deixa de ser algo mesquinho. O seu mais claro e assumido propósito foi dar um impulso para nos “desenvencilharmos todos da bisonhice congénita (ou adquirida à força? Por prudência) tão portuguesa”, e para isso foi sempre expondo o triunfo do diletantismo, as intrigas dos nossos arteiros, tudo o que para aí vai de esquemas e pactos, os modos por que se enredam em cumplicidades mais ou menos disfarçadas para se favorecerem, deixando que a literatura fique representada por obras, livrecos que não se distinguem da mercadoria em geral.

Ele tinha muita clara essa noção: há que bater. É preciso arrancá-los à realidade a que se acostumaram, a esses modos de traírem em si qualquer rasgo que busque o ilimitado em nome de levarem umas vidas confortáveis, sem sobressaltos. A sua lucidez chega-lhe dessa tentação de furar com o comodismo, reaver o espanto, ver tudo de novo, pela primeira vez. Viu tantos reviralhar a casaca, converterem-se, esses mesmos que noutro momento prometiam trazer a danação, um espírito insubmisso, mal se viram afagados, com algumas distinções ou prémios, deixaram-se recuperar para o contento geral. A vida sempre lhe pôs limitações, tinha aquela asma brônquica, veio a desenvolver um enfisema pulmonar, arrastou-se com as hérnias inquinais não operadas, e a hipersensibilidade ao álcool fazia com que uns poucos copos fossem o bastante para o deixar desvairado, a fazer disparates, e em pelo menos uma situação a tentar lançar-se de uma janela. Não viveu uma boémia verdadeiramente lendária, mas ganhou a fama de alcoólico inveterado, e passou por períodos de internamento e desintoxicação. Isto além das três estadias no Limoeiro, por atentado ao pudor, rapto, violação, isto e o outro, muitas coisas admitidas pelo próprio, mal explicadas, e ainda houve as estadias na cadeia das Caldas da Rainha, e as ocasionais noites passadas em esquadras da polícia. Sendo imune à moralidade mais tosca e comezinha, tinha o seu próprio código de valores, uma certa queda por princípios de outra ordem. E podia ser um tremendo sacana, ele mesmo o reconhecia, mas não deixava de o exercer segundo uma lógica, uma coerência e uma ética que tinha de ser apercebida caso a caso. Por outro lado, viu-se muitas vezes sabotado depois de ter começado a desancar em artigos nos jornais e folhas volantes ou plaquetes alguns dos nossos vultos de um quadro literária em que distinguia entre a literatura de consumo, a dos avençados e a “literatura de casino”, essa em que andam metidos tantos numa de competição para acumular prémios, distinções honores, para entrar em todos os índices, nas selectas, integrarem todas as delegações aos certames e festivais lá fora. E percebeu como desluzir esses prestígios, esse enredo de legitimação baseado em golpadas, trocas de favores, truques, apontar a saloiada de tudo isso, acumular um cadastro contra essas eminências, tudo isso acaba saindo caro. Afinal, ele foi sempre fazendo o exame pericial, inquirindo, juntando provas, alimentando o processo com que pretendia tornar muito claro que “a nossa vida intelectual é um logro contínuo, uma complicada teia de alçapões, fantasmas e loucos”. E mesmo se poucos lhe tributam isso, o certo é que a sua tese triunfou, mesmo entre esses que tudo fazem para trepar a hierarquia, hoje, mesmos os instalados assumem o desprezo, até uma repugnância, pelo meio literário. Fica-lhes bem, mas não se dão conta nem da contradição nem do ridículo a que se expõem, pois dizem-no enquanto envergam e procuram justificar essas dignidades. E se nada pode absolver-nos de nós próprios, não só dos enredos miseráveis em que nos deixamos capturar como de tudo aquilo que deixamos de assumir ou viver, só resta aos que pretendem viver exaltadamente e ser leais a algum tipo de princípios a opção de viver em perpétuo conflito com quase todos os que cedem àquele engodo.

Há uma vontade de distrair-nos com o personagem, com a sua excentricidade, a figura do inimputável maldizente, mas se Pacheco pôde reclamar um título com o maior orgulho foi o de ter interrompido essa espécie de missa nacional com um sarcasmo senão satânico, “sacânico”. Depois dele nunca mais nenhum desses candidatos a grande “escritor nacional” se sentiu muito à-vontade para andar em campanha, e a verdade é que seguimos, hoje, com a maior desconfiança essas encenações, como se todo o prestígio e toda a sofisticação fosse uma impostura balofa, e passasse por renunciar à nossa verdade, e, assim, provavelmente ao único heroísmo que constitui o orgulho, a força e a vitalidade da literatura (Gombrowicz).

Ele foi, certamente, o mais implacável caçador das imposturas culturais, desmistificador, iconoclasta, e se no seu registo afoito, no tom burlesco, tragicómico, ressalta amiúde uma indizível amargura, não deixaria de concordar com o escritor polaco quando este nos diz que a disciplina da história da literatura merece alguma atenção, seguramente, mas que não se deve ficar pela história da boa literatura, pelas excepções, pelos grandes vultos, quando a má arte pode ser mais representativa da nação, e até mais esclarecedora quanto à grafomania que nos é característica: toda essa acumulação demasiado automática de textos, de livros, e as pretensões nauseantes por trás da reivindicação da grandeza das obras completas. Era pelo seu desmedido entusiasmo com a literatura que Pacheco reconhecia que o prazer de admirar implica, pelo reverso, uma “violência em repelir e troçar daquilo que não se admira”. “O impulso na adesão equivale ao horror na repulsa, serão ambos produtos (possivelmente condenáveis) de um temperamento humoral e com o coração ao perto da boca (o que acarreta dissabores que nem sabem…) de um tipo que não deseja abdicar da sua capacidade de afirmação, joga-se o mais que é capaz nela.”

Deve haver algo de predatório num juízo crítico que busca reverter um quadro em que a maioria daqueles que aparecem como artistas e escritores se limitam a oferecer-nos obras arredondadas, barrocas, peças conscienciosas, meticulosas, sempre bondosas, mas que em nenhum momento nos cativam lembrando o apelo imundo de uma imaginação prodigiosa a mastigar a existência. Se nas últimas décadas vimos a arte tornar-se absurdamente inofensiva, rendendo-se à feira e ao espectáculo, no qual a única coisa que se pergunta é quem é o maior, quem estamos a promover ou a coroar esta semana, Pacheco relembra-nos que havia algo de descarado e predatório na literatura, capaz de gerar em nós um desejo de dar caça à realidade. Ele aponta para o género de sátiros, pândegos, que encontram um antepassado comum em Rabelais, que escrevia para cumprir um desígnio de ordem tanto fisiológica como espiritual, aliviava-se, zurzia a torto e a direito, descompunha, para seu prazer e dos outros, fazendo justiça aos apelos mais impiedosos que lhe passavam pela cabeça. Assim, expressava a sua época e dava-lhe outra largueza e irradiação, pressentindo tudo aquilo que o pudor mandava conter, e ao exprimir-se com a mais desabusada liberdade, alimentava o impulso dessa primavera do tempo vindouro.

Pacheco reclama a função satírica, essa composição que ridiculariza os vícios ou defeitos de uma época, e que responde com a sua ironia corrosiva a “um certo fastio da vida e dos homens, mas sem amargura, ainda esperançado, humanizando-se pelas mazelas próprias na visão das alheias e tirando daí, ainda, algum sabor, alguma alegria de estar cá”.

Estamos todos exaustos de uma arte forjada pela burocracia, e deste sistema que empurra os escritores para uma zona cinzenta e lhes rouba a capacidade de desenvolvimento dos aspectos que os tornam diferentes, únicos, da raiva com que investem. Por isso, Pacheco quis desde logo assumir um compromisso em representar a vida recorrendo a uma linguagem chula, “aquela que se ouve por essas ruas, portanto a única válida, corrente, prática e lógica com as circunstâncias”. Nas suas páginas batidas e revistas uma e outra vez, a própria mancha de texto, mesmo para um analfabeto, deixa já a impressão de que os caracteres estão ali em polvorosa, num estado de comoção. Mesmo a letra de forma fica tocada pela irregularidade, pela abundância e variedade no uso da pontuação, sugerindo a impressão de uma caligrafia, dos gatafunhos, e pressente-se as dificuldades de respiração, o ar comprimido, as razões miúdas, o modo de sopesar a frase, tudo isso desperta em nós uma fome de frontalidade, de franqueza. De resto, para um tipo que ganhou a fama e depois caiu na lenda como um desbragado zombeteiro, o que ele acabou por reconhecer foi que a sua arte lhe vinha da respiração, do facto de ter lidado desde muito cedo com a asma, e ter de andar com as bombas, e depois com a botija de oxigénio, tudo isso deixou marcas na sua prosa, que vive do vigor das insistências, num tracejado nervoso, sobrepondo, encavalitando intenções. Ao contrário daquela linguagem arrebicada, que pede para ser declamada, a sua prosa cisca de fugida as referências culturais, não se deixando confundir com esse regime que nos torna amaneirados, e que transmite acima de tudo um estado de inibição.

A frase apachecada deve soar entredentes, inclinada ao chiste, a soltar a risota, escurecendo a língua, fazendo cair os dentes, rasgando indelevelmente no rosto as rugas de um sorriso perverso. Em vez dessas grandes fitas dos que se dão ares, aqui cada palavra escavou o seu lugar, fortalecendo o intuito da frase, representando essa força interior da escrita que oferece um esteio ao pensamento, e libertando-nos, assim, de mil e um cálculos medrosos. Em cada linha, el mofa daquela solenidade em torno da qual se organizam esses convívios e assembleias frustres, com o seu respeito artificial e a simpatia falsa, e que tão bem representam o embotamento recíproco entre o literato e o seu público, satisfeitos ambos, aquele por ter palco, este por consumir produtos que lhe indiquem como exprimir o seu amor-próprio, munindo-se de um reportório de frases feitas, falsas, pretensiosas e débeis. Para aguçar a vida, Pacheco reconhece com Gombrowicz como “a arte em geral se relaciona intimamente com a decomposição, nasce da decadência, sendo uma transformação da doença em saúde”. Não só isso, como “roça o ridículo, a derrota, a humilhação”.

Mas a literatura portuguesa não tem tentado ser outra coisa senão uma imitação do que se faz lá fora, muita dessa coisada são quase pastiches do que vai chegando em tradução e nos coloniza por todos os lados: as mesmas ideias, a mesma substância e os mesmos enredos, com um toque de pitoresco local de modo a fazer passar por “autêntico”, “profundo” o que por cá se escreve, mas sempre seguindo a receita, as modas, cumprindo os requisitos, e, por isso, o cenário logo amarelece, ficando estragado pela consciência de que não se trata de uma profundidade que nos seja própria, mas que estes autores estão todos igualmente submetidos à chantagem do mercado. Isto explica porque ninguém consegue referir algo de significativo, uma ideia, um personagem, uma situação, algo mais que o título de um romance que tenha sido escrito já este século por um desses, e ficamos sempre com a sensação de que toda essa literatura apenas nos fornece “pobres sombras com um fraquíssimo grau de existência”. Pelo contrário, Pacheco continua a provocar-nos, a aliciar-nos para aquele seu universo mal frequentado, com aquele ritmo desordeiro, aquela malevolência dolorida, todo esse fulgor com que mergulhava no gigantesco silêncio onde se forma a nossa surda realidade, inconfessada e amordaçada. E para fechar este texto, destacando um traço decisivo na sua personalidade de escritor, sirvamo-nos de uns versos do poeta costa-riquense José María Zonta: “Agora entendo como a obediência/ aos demónios internos/ é também uma disciplina”.