A hipocrisa política e o caso de Francisco, homem bom

De que servem palavras contritas, se na ação política jamais Jesus está nas decisões dos políticos?

O Papa Francisco constitui um dos raros casos, no nosso tempo, de coerência entre pensamento, palavra e ação. Não vou fazer o elenco dos seus múltiplos gestos simbólicos e efetivos (da sua viagem a Lampedusa, à aceitação do amor entre pessoas do mesmo sexo, da coragem em enfrentar os interesses do banco do Vaticano, à condenação da pedofilia nas fileiras da igreja, ou a condenação do neoliberalismo e da ‘economia que mata’). Quero tão-só observar a hipocrisia dos sucessivos elogios fúnebres feitos por políticos. Todos se disseram tocados pelo exemplo de humanidade de Francisco. Vemos, ouvimos e lemos – não podemos ignorar a hipocrisia dos atuais «capitalistas das palavras» (Sophia de Mello Breyner).

Para Trump, o Papa deixou os católicos muito tristes e os católicos, disse, foram uma forte base de apoio ao seu MAGA. Autocrata e racista, reacionário e defensor dos oligarcas, Trump moveu uma das peças do seu tabuleiro de interesses: bom Papa seria Raymond Burke, um apoiante de Trump, Presidente do Conselho Consultivo do Instituto Dignitatis Humanae, organização católica de direita, próxima de Steve Bannon. Burke defende a política de imigração de Trump. Francisco promoveu o diálogo intercultural e religioso… Por isso Francisco foi acusado de ser um Papa «marxista», quando, na verdade, humanismo e humanidade foram as palavras-chave do seu pontificado. Erguer pontes, não muros, eis a mensagem de Jorge Bergoglio.

 Já para a europeia belicista Ursula Van der Liar (assim a adjetivo: Liar, mentirosa), Francisco deve ser seguido como figura inspiradora na defesa da democracia e da liberdade dos povos. Portanto, ataque-se o Estado Social, a solução final para defender as democracias, apostando no rearmamento que só nos custará 800.000.000 de euros… António Costa, esse, europeizado, não deixou de lembrar Francisco como exemplo de combatente da paz. Que fará senão seguir a cartilha dos outros? O seu único combate é o da carreira unipessoal nos bastidores do poder. O nosso ministro Rangel crismou o Papa de «Profeta da esperança», numa nota poética típica sua. Porém, Rangel é um Ministro que jamais será capaz de compreender o que é ser-se social-democrata. Se o fosse defenderia, por igual, os povos da Ucrânia e da Palestina, pois são os filhos dos pobres que estão nas trincheiras e, fiel à tradição diplomática portuguesa, condenaria, sem ambiguidades, o genocídio do povo palestiniano. Que tem feito o Governo espanhol, já agora?

Na contrição geral, Pedro Nuno Santos e Montenegro vincaram no líder cristão a sua dimensão social, o seu labor por abrir a Igreja a todos. Porém, perguntemos: PS e PSD têm na Educação e na Saúde, na Justiça e noutros setores laborais, seguido a mensagem social do Papa? Têm feito políticas para que se viva dignamente neste país? Até o fradesco Carlos Moedas teve de falar, no seu tom (similar a Rangel, de resto) de nasalidade aguda e estridente made in Cascais, das palavras que Francisco lhe terá dito em privado: ‘Carlitos, és um resistente’. Sim, Moedas resiste a todas as medidas sociais e verdadeiramente democratas que, em Lisboa – trampolim para voos mais altos – poderiam amenizar a vida cheia de dificuldades dos seus concidadãos.

No momento em que nos despedimos do Papa ‘do fim do mundo’, ofende-nos a hipocrisia dos líderes mundiais. E nacionais. Nas guerras que alimentam, comerciais ou com armas de facto, de Trump a Zelensky, de Putin a Mark Rutte, nenhum deles terá jamais compreendido a força revolucionária de Francisco. À desumanização em curso, seja por causa da obsessão do dinheiro, seja por causa do embrutecimento tecnológico, o Sumo Pontífice opôs a ‘revolução da ternura’. Francisco tocou os líderes mundiais? Como? Quando? Onde? Olhamos para este tempo e só há uma certeza: o ataque às democracias, a ascensão dos oligarcas, a estupidez como ideologia global, a cobardia como estratégia: de Londres a Moscovo, de Israel à Casa Branca, de Paris a Telaviv. Contam-se pelos dedos de uma mão os políticos (nenhum deles na Europa) em que resta um quê de caráter e de ação cívica. 

Ainda no que respeita ao nosso quintal, extraordinário é que todos eles, à sua dimensão, fazem, por estes dias, da hipocrisia uma virtude e do elogio fúnebre um exercício de cínica polidez. Todos dizem os lugares-comuns do pueril protocolo. Francisco não foi, diga-se, modelo que seguissem. O cristianismo de Francisco não existe num país onde os salários são uma ofensa diária, bem como as rendas altíssimas uma forma nova e liberal de vampirismo social. De que servem palavras contritas, se na ação política jamais Jesus está nas decisões dos políticos?

Francisco, que trabalhou com e para os pobres, veio a Portugal ver a juventude em jornada… Como teria sido corajoso que um político português tivesse guiado o Papa numa peregrinação pela periferia de Lisboa, pelas estações de metro onde viceja a pobreza mais soez, seja de portugueses ou de estrangeiros! Moedas e Pedro Nuno, Montenegro e Marcelo, o que resta do CDS e o que vai medrando no Chega (partido do ódio, da mentira e da corrupção, apesar da hipócrita beatice de um André), nenhum deles, no Parlamento ou no trono presidencial, vota e decide verdadeiramente em favor das pessoas que vivem a contar os tostões dos baixos salários e os patacos das pensões com que pagam casebres e medicamentos.

Francisco inspirou-os em quê?