Brincar com bonecas é uma prática extremamente antiga. As mais antigas bonecas conhecidas foram encontradas em túmulos de crianças do Egito – datam 2500 a.C –, e eram feitas de materiais como argila, madeira, marfim ou pedra. Ao longo do tempo, a argila acabou por dar lugar a materiais como o pano, louça, plástico e, atualmente, ao vinil ou silicone, dois materiais que permitem criar um acabamento mais realista, imitando a textura da pele, as dobras, veias e até o peso semelhante ao de um recém-nascido.
Segundo a ABC, os bebés reborn nasceram na década de 90 nos EUA e assemelham-se de forma «desconcertante» a um bebé de carne e osso. Há quem os compre por gosto, para fazer coleção e há ainda os que veem nesses bonecos verdadeiros filhos. A verdade é que nas redes sociais são cada vez mais os conteúdos que surgem sobre o assunto. E, apesar destes nos chegarem principalmente dos EUA ou Brasil, o fenómeno já chegou a Portugal.
Um processo longo e detalhado
Desde 2020 que Carolina se dedica a esta arte. «Eu encontrei-me na arte reborn desde o primeiro bebé. Vi também que havia procura e decidi tentar transformar este que era apenas um hobby num negócio. Desde então tenho feito cursos e aperfeiçoado esta arte», conta à LUZ a responsável pelo Ateliê especializado nestes bonecos. Segundo a mesma, uma característica importante para distinguir uma boneca comum de um bebé reborn é a produção: «Um bebé reborn deve ser feito à mão, e portanto nunca há um 100% igual ao outro», garante. Outro ponto importante são os detalhes: a pintura deve ter veias, profundidade da pele, tons e sobre tons de tinta, misturas complexas de cores e cabelos também feitos à mão, independentemente se forem pintados ou enxertados. «No caso do cabelo real, deve ser feito fio a fio com cabelo de boa qualidade e de preferência com fios de origem natural», explica.
Os bebés reborn são, por isso, pensados para «transbordar realismo» e «manter eternizada uma fase da vida que dura muito pouco», nomeadamente os primeiros meses de um bebé. Diferente de uma boneca comum, são esculpidos à mão por uma escultora e esse processo pode levar semanas ou até meses. Depois, são criados moldes para serem produzidos em vinil – o material final destes bonecos –, e por fim são pintados por uma artista, o que leva mais alguns dias: 10 ou 15 dias no caso de Carolina.
O bebé chega-lhe às mãos em vinil cru, ou seja, sem nenhum pigmento. O primeiro passo é limpar o kit em branco «que pode vir com sujidades da fábrica». «Depois faço uma vistoria para identificar possíveis rebarbas e excessos de vinil resultantes dos moldes que devem ser removidos», elucida. O passo seguinte é preparar o vinil para receber a tinta, com um primário. Depois, começa a pintura. «A tinta usada em reborns é termofixada, ou seja, a cada camada de pintura, colocamos o bebé no forno para fixar a tinta de forma permanente», afirma Carolina. «Nunca contei as camadas mas são por volta de 10 a 15, depende da tonalidade a que queremos chegar. Para criar peles mais escuras são necessárias mais camadas», adianta a artista.
Cada camada de tinta tem uma função específica: as cores frias como azul e verde servem para dar profundidade; os diversos tons de roxo são usados para dar a sensação de pele mais fina em locais específicos; o vermelho para dar vivacidade e o castanho e amarelo para chegar ao tom de pele desejado. «Por último são os detalhes: Veias, sobrancelhas, pelinhos faciais, os detalhes das unhas e etc.», acrescenta. As últimas camadas são de verniz, para proteger a pintura.
Após isso, Carolina começa o cabelo. «Eu particularmente não trabalho com cabelos pintados, apenas enxertados. São implantados à mão, fio por fio, na cabeça do bebé. Nessa etapa também há criatividade, podemos fazer vários ‘desenhos’ para que o cabelo tenha diferentes aparências», explica.
Finalizado o cabelo, a artista enxerta as pestanas e cola o cabelo dentro da cabeça para evitar que qualquer fio venha a cair se for puxado. «Também adiciono um íman na parte interna da cabeça para fixar a chucha magnética», continua. Por último, trata da montagem, que nada mais é do que juntar a cabeça e os membros no corpo, que pode ser de tecido ou vinil.
Um investimento
Existem todos os tipos de bebés. Desde miniaturas que se podem levar na mochila, até bebés grandes que representam crianças de mais de um ano. «Mas os mais comuns são os bebés entre o recém-nascido e um mês», conta. É possível criar bebés a sorrir, a bocejar, a dormir, acordados, com mãos fechadas ou abertas, com pernas esticadas ou dobradas, etc.
Quanto ao preço, depende de vários fatores: um dos principais que influencia muito no preço final é a escultora. De acordo com Carolina, escultoras mais famosas e mais habilidosas costumam cobrar mais caro pelo kit em branco. «Também existem kits que são fabricados em edição limitada (apenas 500 unidades no mundo, por exemplo), por isso podem chegar a preços bem altos», esclarece.
Outro fator é o tamanho do kit. «Cabeças e membros maiores demandam mais tinta, mais tempo de pintura, mais tempo no forno e mais enchimento. Cabeças muito grandes também levam mais cabelo e isso aumenta o tempo de trabalho e o custo», continua. O bebé mais caro que já vendeu custou 550 euros. No entanto, a artista garante que há bonecos a chegarem aos dois mil euros.
Vários tipos de clientes
Os seus clientes são divididos em três grupos. Segundo Carolina, o primeiro é composto por crianças de várias idades. «Elas devem representar 50% das minhas vendas», partilha. No site do seu atelier lê-se que o bebé reborn não é um brinquedo e não é recomendado para menores de 12 anos sem supervisão, «também não recomendamos em nenhuma hipótese para crianças menores de 6 anos».
O segundo grupo é formado por colecionadores, que correspondem a aproximadamente 40% do seu público. «São pessoas que gostam da arte e chegam a montar quartos inteiros dedicados à sua coleção. Não é diferente de colecionar postais, action figures ou cromos autocolantes. Os colecionadores são mais exigentes que as crianças, procuram reborns mais realistas, e são mais cuidadosos com a escolha do kit», detalha.
Por último, Carolina também vende bebés para fins terapêuticos. «Já vendi para vários idosos que têm muita vontade de ter netos ou bisnetos e não podem ter contacto direto com eles por viverem longe ou algo semelhante, ou até mesmo porque os seus descendentes não podem satisfazer essa vontade. Também já vendi para idosos com Alzheimer que já não tinham condições de estar com um bebé real ao colo», revela. «Vendo também com certa frequência a mães que estão de luto. O bebé reborn serve, não como substituição, mas como um auxílio nesse momento difícil. Uma outra utilização do bebé reborn é na chegada de um novo membro na família. Onde os pais compraram o boneco para preparar o filho(a) mais velho(a) para a chegada do seu novo irmão ou irmã», adianta ainda.
O perpetuar da maternidade
Margarida tem 72 anos, é reformada e coleciona estes bebés desde 2016. Neste momento, tem mais de 10. «Tenho de todo o tipo: carequinhas; com cabelo; uns de olhinhos fechados; outros de olhos abertos. O detalhe de alguns é de tal forma que se confundem com os reais», garante.
«Tenho um cuidado especial em escolher a artista e descobri a Carolina que os faz na perfeição. Claro que são um pouco caros, mas como não tenho vícios de qualquer espécie, retiro sempre uma pequena quantia mensal e, quando chego ao valor pretendido, lá tento comprar um», conta.
Para si, estes bebés são «o perpetuar da maternidade, encanto perdido no tempo». «Não os trato nem brinco como se fossem bebés reais… Apenas gosto de os ter, trocar fotos com muitas amigas no estrangeiro amantes desta arte e até de os fazer de manequins para alguns trabalhos que faço», acrescenta. Margarida é também apaixonada por tricô e faz as roupinhas para os seus bebés.
Normalmente pesquisa sempre as escultoras, escolhe o kit que mais lhe agrada e depois encaminha para a artista à sua escolha. «Neste momento ‘fechei a loja’, mas tenho uma coleção invejável», assegura. «Procurei desde o início pelos que mais se parecessem a recém-nascidos e foi nessa procura que cheguei a ter tantos. Até que a última saciou o meu desejo», garante.
Catarina tem 25 anos, é auxiliar de infância e descobriu os bebés reborn no ano passado. «O que me cativou foi o realismo, a perfeição da arte e da escultura. Parecem mesmo bebés recém-nascidos», conta. Rapidamente percebeu que queria começar uma coleção. Atualmente tem oito bonecas e já tem mais duas reservadas. A jovem admite que já deve ter gasto mais de dois mil euros nesta paixão. A boneca mais cara que comprou custou 470 euros.
«É um anti-stress maravilhoso. São como filhas para mim. Não brinco com elas, estão num móvel só delas e não deixo ninguém lá tocar ou mexer», revela. «Os bebés dão-me paz e amor. Todos os problemas do mundo desaparecem quando as pego ao colo ou lhes visto roupa», acrescenta.
Catarina pede sempre bonecas para produzir, pois tem preferência pelas loiras, de pele branca e olhos verdes. «Com a ajuda da Carolina, escolhemos sempre os kits mais realistas e mais pequenos (eu amo os prematuros). Depois a Carolina faz a sua magia e dá-lhes vida», adianta. A jovem tem a certeza que continuará a comprar. «Acho que vou sempre amar. A escolha desta coleção e da minha profissão é amar bebés. Mesmo que não tenham vida, trato deles como se tivessem», frisa.
Benefícios e perigos
E nas redes sociais – em particular no TikTok –, têm-se multiplicado as contas de mulheres que vão mais longe: fazem festas de anos para os bonecos, criam quartos com todos os pormenores, levam o bebé para todo o lado, vão com ele a um médico fictício, levam-no para uma creche, dão-lhe banho, trocam as fraldas… No entanto, segundo Carolina, isso não corresponde à realidade. «Muitas dessas pessoas estão a tentar ‘viralizar’ nas redes, com o que é conhecido como ‘Rage Bait’, e isso tem trazido muito preconceito para a comunidade reborn», lamenta. Recorde-se que Rage Bait é uma estratégia online que visa provocar raiva ou indignação num público, com o objetivo de aumentar o engajamento e as interações.
Mas há que estar atento. De acordo com a psiquiatra Elsa Fernandes, o realismo associado aos objetos – neste caso bonecas –, e à interação com o mesmo levantam questões sobre os benefícios e perigos, associados a esta prática. «Em primeiro, vale lembrar que o seu uso terapêutico pode acontecer, por exemplo, em situações de luto, sendo usados de forma simbólica e proporcionando um espaço de recordação e conforto ao enlutado. Pode também ser utilizada em contexto de pacientes institucionalizados, como é o caso de pacientes com demência e em que pode ser obtida diminuição da ansiedade (efeito calmante) e reconfortante com o seu uso», aponta, acrescentando que «usar bonecas reborn pode ser uma forma de expressão individual e usada de forma terapêutica para auxiliar a partilha de sentimentos e emoções, através da criação de histórias e da exploração de personagens, de um enredo». «O uso, neste contexto, é simbólico e pode ser benéfico», refere a especialista.
Apesar destas formas de uso serem terapêuticas, devem ser acompanhadas da intervenção de profissionais de saúde mental pois existem riscos associados: «como a substituição permanente da criança perdida no caso de luto – o que pode interferir no processo de luto saudável –, com o uso da boneca como substituto de um filho perdido e a recriação de rotinas da maternidade como forma de evitar o sofrimento da perda; o estabelecimento de relações intensas, mas ‘vazias’, dada a troca não recíproca com um ser inanimado e a falta de desafios associados à interação entre humanos (e necessárias para a aprendizagem social, por exemplo)», exemplifica. Além disso, continua a psiquiatra, também existe o risco de estigma associado a práticas que são socialmente aceites em crianças mas vistas com desconfiança quando praticadas por adultos. «Também é relevante refletir sobre o uso excessivo de bonecas reborn, com o estabelecimento de dependência emocional das mesmas, como uma manifestação de dificuldades emocionais não resolvidas ou a procura de ocupar um vazio emocional existente e que pode antes beneficiar de apoio psicoterapêutico e/ou psiquiátrico», alerta.
Alguns sinais de apego excessivo às bonecas reborn podem refletir-se na tentativa de substituição de relações humanas por interações com a boneca, «na preferência por passar tempo com a boneca em vez de interações sociais reais e com isolamento progressivo da família e amigos», explica Elsa Fernandes. Segundo a mesma, existe ainda o risco da personificação extrema, que é um fenómeno em que é atribuída personalidade, voz e identidade complexa à boneca, «o tratar da boneca reborn como um ser vivo (alimentar, dar banho, levar ao médico fictício) levando a reações emocionais extremas quando a boneca é magoada ou criticada por outros, ou quando esta prática é questionada». «Fenómenos como a negação da realidade, o uso da boneca como uma fuga de uma realidade que não se consegue viver ou enfrentar ao invés de procurar apoio terapêutico e uma resolução desses problemas emocionais, pode atrasar a sua resolução ou impedi-la», garante.
Por fim, podem gerar-se, em situações mais raras e extremas, sintomas de dependência emocional em relação à interação com a boneca reborn, manifestando-se sob a forma de ansiedade, tristeza persistente ou angústia intensa ao ficar longe da boneca. «Nesta situação, alguns indivíduos podem ter a sua vida do dia a dia alterada ao diminuir o desempenho em áreas importantes da vida (trabalho, estudo, autocuidados) ou ao despender as suas finanças de forma desproporcional com acessórios e manutenção da boneca», elucida.
Quando um familiar demonstra apego excessivo a bonecas reborn, a resposta da família é crucial: «Deve conter empatia, respeito e uma vigilância atenta, evitando críticas ou confrontos diretos, mas permanecendo atenta a sinais de sofrimento emocional», aconselha a especialista. «Deve procurar-se colocar questões para entender o papel da boneca reborn na vida da pessoa, observar o impacto que esta prática tem na vida do dia e sugerir a partilha deste papel ocupado pela boneca reborn com um profissional de saúde mental – em situações como um luto mal resolvido, depressão, ansiedade ou em que o dia a dia habitual da pessoa passa a estar inviável», remata.