Do Ideal ao Espetáculo: Kennedy, Obama,Trump e a U.E.

Ironicamente, se compararmos os seus actos concretos aos de Kennedy, Trump parece um anjinho de sacristia.

A pergunta sobre o que é a realidade e o que é a narrativa torna-se cada vez mais pertinente. Impor às pessoas que vivam numa mentira permanente é, talvez, um dos traços mais grotescos das ditaduras. E este é, sem dúvida, um tempo estranho no Ocidente.

Está atualmente disponível na Netflix Ponto de Viragem: A Guerra do Vietname, um excelente documentário realizado por Brian Knappenberger. Não se trata de mais do mesmo, mas de uma visão abrangente, complexa e surpreendentemente honesta. O Vietname continua a “apaixonar” porque marca o paradigma das guerras que se lhe seguiram: a cobertura mediática em direto, o envolvimento emocional das audiências, a construção narrativa dos conflitos, a politização das imagens. É, em muitos sentidos, a primeira guerra verdadeiramente “pós-moderna”.

O primeiro grande responsável pelo desastre americano no Vietname foi John F. Kennedy. Figura mítica do Partido Democrata e ícone do progressismo, Kennedy foi, no entanto, longe do retrato heroico televisivo, um político cínico e moralmente desprezível em múltiplos planos. A sua suposta grandeza é uma construção ficcional, produto da nascente sociedade do espetáculo.

Foi sob a sua liderança que os EUA se atolaram no Vietname, promovendo assassinatos de governantes do Vietname do Sul, desestabilizando o sudoeste asiático e perpetuando uma política externa de violência e ingerência. Kennedy foi responsável, em grande medida, por centenas de milhares de mortes e por uma sucessão de golpes de Estado ao redor do globo. No plano pessoal, o seu comportamento para com as mulheres seria hoje, com razão, considerado absolutamente inaceitável. E, no entanto, permanece canonizado.

Trump, em comparação, é tratado como uma aberração histórica. Mas, ironicamente, se compararmos os seus actos concretos aos de Kennedy, Trump parece um anjinho de sacristia. A diferença de tratamento mediático não reside na realidade factual das acções, mas na estética simbólica que cada figura representa. Kennedy encarnava o ideal de “progresso”, e isso bastou para o absolver de quase tudo. Trump representa a disrupção, a quebra da narrativa oficial. E isso basta para justificar a sua demonização.

Assistimos hoje a um deslocamento do julgamento moral das figuras públicas. Já não se avaliam os actos objectivos, mas sim o valor simbólico e as narrativas ideológicas que essas figuras encarnam no imaginário dominante. São narrativas moldadas à imagem do que se espera, num contexto saturado por representações mediáticas de tipo pós-moderno. Vivemos numa era em que a mediação simbólica substitui a substância. Como diria Guy Debord, “o espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”.

Clinton, Obama ou Kennedy podem apoiar guerras, golpes de Estado ou políticas repressivas sem que a sua aura “progressista” seja beliscada. Trump, que reduziu a presença militar dos EUA no estrangeiro e evitou novos grandes conflitos, é tratado como um monstro. Não porque tenha feito mais mal, mas porque não encaixa no guião.

Hoje, líderes como Emmanuel Macron e outros chefes da União Europeia recebem com pose solene o principal governante da Síria, outrora diabolizado pela mesma ordem internacional que agora o reintegra discretamente. Esta reabilitação não se deve a qualquer mudança estrutural no regime sírio, mas a meras conveniências estratégicas. A narrativa dita o que é aceitável ou condenável, e não a verdade dos factos. A ética foi desprezada em nome dos interesses. E estes são manipulados propagandisticamente com o apoio até dos média privados, que funcionam como agências de comunicação dos construtores da ordem única.

Estamos num tempo em que os arquétipos mediáticos substituem a análise crítica e a memória histórica. A política transformou-se em espectáculo e a moral pública em mera gestão de imagem. A coerência foi sacrificada no altar da estética simbólica e o pensamento crítico dissolvido na espuma do consenso fabricado. Entre os mitos de progresso e as caricaturas de barbárie, o real desaparece. E, com ele, a nossa capacidade de discernimento.

Bem-vindos, pois, ao deserto do real onde as ditaduras podem ter o nome de democracias.

A União Europeia, sempre pronta a emitir sentenças sobre quem é ou não democrático, revela-se ela própria uma estrutura intrinsecamente antidemocrática, operando sob a forma de uma perturbadora ditadura soft, imune ao escrutínio popular e cuidadosamente blindada contra o dissenso. Governada por um politeburo tecnocrático, dita normas a partir de uma lógica autorreferencial, ideologicamente orientada, que escapa às dinâmicas da deliberação democrática e ao controlo dos cidadãos.

Muitos dos actos concretos levados a cabo por esta máquina institucional — da imposição de políticas identitárias à repressão simbólica de dissidentes — se fossem atribuídos a figuras como Donald Trump, seriam recebidos com escândalo pelos meios de comunicação e denunciados como expressões de autoritarismo, populismo ou extremismo. Mas o duplo critério tornou-se a norma. O problema não está nos actos, mas em quem os pratica. E, sobretudo, na narrativa que os legitima.

Para que esta crítica não seja considerada meramente panfletária, vejamos os factos. A prática sistemática de sanções e ameaças a Estados-membros por divergências ideológicas. O uso recorrente da chamada soft law para contornar os parlamentos nacionais, através de recomendações da Comissão Europeia, pareceres do BCE, orientações do Conselho Europeu e pactos “não vinculativos”, como o Pacto de Estabilidade e Crescimento ou o Semestre Europeu, os quais, na prática, se impõem como leis sem serem discutidos ou votados.

Acrescente-se a assinatura de acordos internacionais opacos, negociados pelo núcleo duro da UE à margem de qualquer debate público. A imposição de tratados sem consulta popular. E, em certos casos, a recusa em respeitar os resultados de referendos, quando estes são desfavoráveis aos interesses das elites comunitárias.

Tudo isto sob a égide de um Banco Central Europeu profundamente opaco, não eleito, mas com poder decisivo sobre as políticas económicas dos Estados-membros. E, no topo, uma Comissão Europeia com monopólio da iniciativa legislativa, composta por burocratas não eleitos, que exerce um poder desproporcionado sobre a vida política e social de milhões de cidadãos europeus.