Portugal vive mergulhado numa tristeza estrutural que parece não ter solução à vista. Campanha após campanha, a discussão pública resvala para o acessório e o ridículo. Alimenta-se o espetáculo, o ruído, a indignação plástica. Fala-se mais de Trump do que dos problemas reais que afligem os portugueses. E assim se vai a mascarar o essencial: a degradação profunda dos serviços públicos, a irresponsabilidade política e a ausência de um projeto nacional digno desse nome. Entre os problemas estruturais que permanecem fora da agenda e carecem de respostas, a desorçamentação crónica do Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um dos mais graves. Décadas de má gestão, cedência à ideologia da destruição dos serviços públicos e ausência de visão estratégica produziram um sistema em colapso, onde a morte, o sofrimento e a degradação evitável da vida humana se tornaram rotina. Relato um caso concreto ocorrido recentemente, que conheço de perto. Por motivos óbvios, omito nomes e locais. Um cidadão (chamemos-lhe X) apresenta-se num hospital regional com um problema grave, mas resolúvel com os meios existentes nessas unidades de saúde. Contudo, o equipamento necessário para a intervenção está inoperacional. Enviam-no para um hospital de Lisboa, que, por sua vez, recomenda o reencaminhamento para uma unidade a 200 km de distância. Esta nova unidade, após contacto, reencaminha-o novamente para outra, a 200 km em sentido contrário. Esta última declara-se incapaz de resolver o problema e remete o paciente de volta ao ponto de partida. Segue-se nova peregrinação para outro hospital, a 130 km, e tudo recomeça. Este é apenas um entre milhares de casos. A tragédia é real, concreta e quotidiana. E não é preciso recorrer à ficção para se compreender que uma tal normalização do funcionamento administrativo destrói vidas e desumaniza a existência. Utilizemos uma imagem simples, mas eloquente: imagine-se que o Estado já só consegue oferecer pão estragado. Ao lado, existe uma padaria privada com pão de qualidade, a um preço acessível. Que acontece? Os que podem pagar abandonam o pão podre. O serviço público, cada vez mais desprezado e esvaziado, degrada-se ainda mais, ficando destinado apenas aos que não têm alternativa. O setor privado cresce, atrai mais recursos, melhora os serviços e ganha prestígio. O problema não está na existência do setor privado, que pode e deve ter o seu lugar. Está, sim, na falência do Estado em garantir pão comestível a quem dele depende. A esquerda insiste em defender esse ‘pão podre’, glorificando um sistema que já não existe, que vive de uma reputação passada, enquanto se atira dinheiro para cima de estruturas apodrecidas. O problema não é apenas de orçamento: é de visão, de prioridades, de ética da gestão pública.
Conheço casos de excelência administrativa fora do continente (onde a prioridade era o doente, não as pressões políticas ou os interesses corporativos). Esses gestores foram forçados a demitir-se. Perante tudo isto, assiste-se a um fenómeno ainda mais preocupante: a resignação social. O problema não é apenas o colapso dos serviços ou o ruído político, mas a passividade de uma população que aceita migalhas, que não exige, que se habituou ao pão podre como normalidade. A democracia sem exigência torna-se farsa. O voto sem consciência torna-se ritual vazio.