Governo trabalhista fecha as fronteiras

Keir Starmer alterou radicalmente a sua postura face à imigração. Promete controlar as fronteiras para acabar com a “traição” do Partido Conservador.

Governo trabalhista fecha as fronteiras

O intenso debate sobre a imigração mudou de figura no Reino Unido. O primeiro-ministro Keir Starmer protagonizou, ao longo da última semana, uma volta de 180 graus sobre uma das matérias mais fraturantes em terras de Sua Majestade – e na Europa, em geral. O líder do executivo britânico publicou no seu perfil oficial em várias redes sociais uma série de declarações contundentes sobre imigração e sobre a forma como planeia corrigir a «experiência de fronteiras abertas», pela qual condena os conservadores, tendo ido ao ponto de lhe chamar «traição». Na quarta-feira chegou mesmo a apresentar um número: «Já deportei mais de 24.000 pessoas que não têm o direito de estar aqui. E não vou ficar por aqui».
A imigração, e o seu controlo, tem sido um dos debates mais controversos das sociedades europeias nos últimos anos, e dadas as posições adotadas pelos partidos de centro-esquerda ou social-democratas, como é o caso do Partido Trabalhista britânico, estas posições de Starmer podem surgir como uma surpresa. Mas qual é verdadeiramente o plano do primeiro-ministro para reverter a tendência, por que motivo mudou de opinião nesta matéria e será que os chamados populismos de direita tiveram alguma influência nesta mudança de maré?

Plano para a mudança
Através da publicação de um documento que se estende por 82 páginas, intitulado Restoring Control over the Immigration System (Restabelecer o controlo sobre o sistema de imigração, em português), o governo britânico deu a conhecer o seu plano para lidar com um dos temas prementes das sociedades ocidentais. A estratégia dos trabalhistas, que foi apresentada e discutida na Câmara dos Comuns na passada terça-feira, divide-se em sete capítulos: 1) «A imigração líquida tem de diminuir»; 2) «Imigração, mercado de trabalho e crescimento»; 3) «Estudantes qualificados»; 4) «Controlos justos»; 5) «Regras respeitadas e aplicadas»; 6) «Promover a integração e a coesão»; 7) «Um sistema preparado para o futuro». Para além dos 7 pontos que o compõem, o documento conta ainda com a introdução do primeiro-ministro e do ministro do interior. (O documento pode ser consultado na íntegra em https://assets.publishing.service.gov.uk/media/6821aec3f16c065
4b19060ac/restoring-control-over-the-immigration-system-white-paper.pdf).

O primeiro parágrafo de Starmer é especialmente pungente, lançando uma crítica ao Partido Conservador que governou durante os últimos cerca de catorze anos: «Em 2023, sob o governo anterior, a migração interna explodiu para mais de um milhão de pessoas por ano – quatro vezes o nível em comparação com 2019. Esta foi uma escolha política que nunca foi apresentada ao povo britânico. Na verdade, muito pelo contrário – o anterior governo prometeu repetidamente que a migração interna seria controlada. Em vez disso, a Grã-Bretanha tornou-se uma experiência de (…) fronteiras abertas». «O dano que isto tem causado ao nosso país é incalculável», acrescentou, sublinhando a pressão que tem sido colocada pela imigração sobre os serviços públicos e sobre o mercado de habitação – um discurso que, há pouco tempo, seria associado ao Reform, partido que tem vindo a crescer exponencialmente nas sondagens, liderado por Nigel Farage, um dos principais patrocinadores do Brexit. Starmer puxou ainda dos galões e referiu que, desde que tomou posse no verão do ano passado, «os pedidos de visto diminuíram quase 40%. Mas agora é altura de ir mais longe e mais depressa» para «assegurar ao povo britânico que a experiência acabou. E que este Governo vai fazer regressar a política de migração ao senso comum». A utilização da expressão «senso comum», tradicionalmente ligada aos conservadores, é também reveladora da mudança de paradigma, e ler a palavra «traição» ao referir-se à política de imigração britânica dos últimos anos na conta oficial de Keir Starmer seria algo que pouco gente se atreveria a prever há umas semanas.

“Ilha de estranhos”
«Numa nação diversa como a nossa, e eu celebro esse facto, estas regras tornam-se ainda mais importantes», disse o primeiro-ministro no início do discurso na segunda-feira. «Sem elas», continuou, «corremos os riscos de nos tornar numa ilha de estranhos, e não uma nação que caminha junta». O discurso causou alguma celeuma na franja mais à esquerda do Partido Trabalhista, com o próprio autarca de Londres, Sadiq Khan a comparar as palavras de Starmer com as de Enoch Powell. Powell foi um político conservador que, em 1968, deu um discurso que lhe custou o cargo de Secretário de Estado da Defesa. Na intervenção que ficou conhecida como «Rios de Sangue», Powell disse que os ingleses arriscavam tornar-se «estranhos no seu próprio país». Naturalmente, o executivo britânico está a tentar demarcar-se desta associação, e Beth Rigby, jornalista da Sky News, escreveu que uma fonte interna lhe disse «que a equipa do primeiro-ministro não se tinha apercebido da semelhança e não tinha intenção de fazer a comparação». Mas o que motivou, realmente, esta mudança completa no discurso de Starmer? De acordo com André Azevedo Alves, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, a principal razão «é a perceção de que o eleitorado deseja maioritariamente uma política de imigração mais restritiva, o que por sua vez se reflete também na rápida subida do Reform nas sondagens». Assim, acredita o professor, «Keir Starmer atua fundamentalmente motivado por um instinto de sobrevivência política».

Utilidade do populismo
Outra das dimensões desta discussão sobre a imigração reside nos populismos e na sua influência sobre a mudança do discurso (e ação) do centro. «Até muito recentemente, quem enunciasse posições como as agora anunciadas por Keir Starmer seria imediatamente acusado de ser um perigoso populista de extrema-direita», continua Azevedo Alves, «mas a verdade é que foi precisamente a pressão das forças ditas populistas que obrigou o centro político a ir de encontro às preocupações dos eleitores no âmbito da imigração». Sendo que o crescimento dos populismos tem sido transversal a praticamente toda a Europa, o que tem conduzido a debates sobre como os travar, o professor da Universidade Católica defende que «só oferecendo respostas concretas e eficazes para essas preocupações reais dos eleitores» é que é possível. Jaime Nogueira Pinto, escritor e politólogo, acredita que foram «os movimentos nacionais-populistas os primeiros a chamar a atenção para os problemas político-indentitários da imigração descontrolada». «Agora, apesar da correção política – chamavam racistas e xenófobos aos que se preocupavam e levantavam reservas às políticas de “no borders” – desde o centrão ao centro-esquerda e aos socialistas, todos acordaram, ou fingem que acordaram, para o problema. A ver vamos», conclui o politólogo.