O que se passou em Portugal no dia 18 de Maio não foi apenas mais uma eleição. Foi o prenúncio de uma ruptura. Um autêntico tsunami político. Só foi surpreendente para quem continua a formar a sua opinião através da televisão, que se tornou, há muito, uma extensão do aparelho ideológico do sistema. Como poderia dizer Millôr Fernandes, quem se informa pela televisão ou pelos grandes meios de comunicação anda muito mal informado.
Nesse domingo, num restaurante com o televisor ligado em volume elevado, escutam-se os ecos da inquietação oficial. “Assustador”, dizem os comentadores sobre os resultados do Chega. Na mesa ao lado, dois homens — um jovem e outro de meia-idade — trocam impressões com sobriedade: “Assustador é o nosso ordenado, comparado com o de países como a Espanha; o preço da habitação, da gasolina, o estado do SNS, a impunidade com que tantos políticos do PS e do PSD se servem do poder há décadas, protegendo os seus próprios grupos…”.
O contraste é revelador. Enquanto os comentadores do sistema se apressam a impor a sua leitura moralizante e ideológica, o país real reage com lucidez pragmática. O sistema político-mediático que deu origem a forças fora do seu controlo continua sem compreender o que aconteceu. E menos ainda o que está para acontecer.
O Declínio da Esquerda e o Colapso da Intermediação Mediática
Há duas tendências claras, sustentadas por factos e não meras percepções.
Primeiro, a esquerda tradicional, sobretudo o centro-esquerda, está em acentuado declínio e revela uma incapacidade profunda de compreender a época em que vivemos.
Segundo, os média convencionais, em larga medida dependentes da estrutura económica e simbólica do poder instituído, alinham-se com uma esquerda encerrada numa bolha ideológica autorreferencial, desligada das condições reais da população.
Essa esquerda, culturalmente dominante mas socialmente distante, já não compreende o mundo. Já não acerta uma. E os média, empresas de sondagem, etc., que a acompanham partilham do mesmo destino. Existe também uma minoria ruidosa, formada por prosélitos que repetem os mantras do discurso oficial, desprovidos de pensamento próprio.
A força mediática da esquerda elitista estende-se até aos programas de entretenimento, hoje convertidos, na prática, em sessões de doutrinação disfarçadas de pluralismo. E a sua versão “radical”, por mais que se proclame iconoclasta, não compreende o século XXI. As pessoas não desejam “taxar os ricos”. Querem ser ricas. Querem segurança, mobilidade social, estabilidade material. Vivem no mundo real. E, nesse mundo, as causas identitárias e a obsessiva denúncia das “estruturas de opressão” tornaram-se irrelevantes ou contraproducentes.
A Alienação das Elites e o Ressentimento do Sistema
Quem acompanhou os comentários televisivos dos últimos tempos percebe facilmente que os meios de comunicação dominantes não compreendem o país. Vivem numa narrativa construída a partir de desejos ideológicos e não da observação da realidade. Olham para o povo com uma mistura de receio e desprezo, como Hillary Clinton, ao apelidar de deploráveis os que não se encaixavam na sua visão de progresso.
Desconfiam do eleitorado e consideram-no atrasado, ignorante ou manipulável. Quando os resultados eleitorais não favorecem os partidos do sistema, fala-se em ameaça à democracia, em “populismo”, “fascismo”, “ultra-direita”. Como se a democracia só fosse válida quando produz os resultados certos. É uma concepção estranhamente condicional da democracia: as eleições são livres, até votarem “mal”.
Os média e os seus habituais “especialistas” tornaram-se incapazes de interpretar o mundo. São, cada vez mais, figuras de uma comédia burlesca, isoladas num circuito fechado de referências, tecendo teorias absurdas sobre uma realidade que já não habitam.
Em Portugal, é factual: PS e PSD falharam rotundamente no objectivo do desenvolvimento. Sem o financiamento estrutural da União Europeia, o país teria colapsado. O hiperliberalismo económico, aliado ao progressismo cultural e à esquerda universitária, criou um mundo artificial, onde há abundância de bens e escassez de sentido. Um mundo onde a estabilidade foi substituída pela precariedade, e a liberdade pela normatividade moralista. Mas a realidade começa a impor-se.
Do Desencanto Popular à Emergência de uma Nova Onda Política
O modelo neoliberal destruiu a esquerda popular e substituiu-a por uma caricatura tecnocrática e identitária. Os partidos do sistema alinharam-se com o império dos mercados e a lógica dos acionistas, abdicando da defesa do bem comum. O cidadão comum não vive melhor. Vive, na verdade, cada vez pior.
As deslocalizações, a perda de soberania económica, a diluição do trabalho digno e o esmagamento das classes médias geraram revolta. O Chega, em Portugal, é a expressão legítima dessa revolta, que toma formas distintas em diferentes países.
Os comentadores do regime continuam a rotular tudo o que os incomoda de “fascismo”, “extrema-direita”, “populismo”. Esta linguagem revela mais desespero do que análise. Usam esses rótulos para defender os seus privilégios, adquiridos e mantidos desde os anos 80, e para proteger o consenso ideológico que serve os seus interesses. Mas o verdadeiro povo da esquerda, o que trabalha, paga impostos, abastece o carro, procura casa e sustento, já não se deixa manipular. A dissociação é total. E a legitimidade, perdida.
A Nova Geração e o Colapso dos Média Tradicionais
Canais como a CNN Portugal, a SIC ou a Now tornaram-se, para muitos, irrelevantes ou objecto de escárnio. Os mais jovens nem sequer consomem televisão. O seu universo informativo é outro. E aqueles que ainda ligam os ecrãs fazem-no com ceticismo. O que encontram é proselitismo ideológico, censura simbólica e obsessão com aquilo que já não conseguem controlar.
O mundo mudou. Está a mudar. E estas novas forças políticas não são “de extrema-direita”, como proclama o sistema. São forças anti-sistema, nascidas da experiência concreta do fracasso das promessas da modernidade liberal. Um sistema que se apresentava como único caminho para a prosperidade, mas que produziu instabilidade, desintegração e ressentimento social.
Hoje, os média servem sobretudo viés ideológico disfarçado de informação factual.
Sobre Ventura, o Chega e o Pensamento Crítico
O Chega deve, em grande medida, a sua estrutura doutrinária à influência de Diogo Pacheco de Amorim, um conservador liberal clássico que encontrou em André Ventura a expressão carismática da sua visão. E em fenómenos de massas, como as democracias contemporâneas, o carisma é determinante. E não se explica racionalmente. Hoje o Chega tem uma dimensão mais ampla mas essa génese tem de ser reconhecida.
Ventura poderá ter defeitos, como qualquer figura política, mas é hoje o político mais carismático e intelectualmente incisivo de Portugal. Reduzir o Chega a Ventura é um erro. O partido representa um movimento sociológico de larga escala, que canalizou um descontentamento difuso e o converteu em exigência política concreta.
Não se trata aqui de apologia. Trata-se de análise. E confundir análise com apologia é um vício totalitário, herdado da velha tradição bolchevique que tenta suprimir tudo o que desafia o discurso dominante.
Vale a pena lembrar que Guilherme Valente foi um dos primeiros a identificar este fenómeno emergente, mesmo em termos eleitorais. A sua lucidez foi, como tantas outras, marginalizada. Porque pensar criticamente, para lá das ideologias dominantes, é hoje uma tarefa para poucos.