Percival Everett. O esmagador triunfo de um escritor negro num tempo assustador e estúpido

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A sua “subversiva” reimaginação do clássico Huckleberry Finn, que lhe rendeu os elogios e distinções da praxe, tendo o romance colhido de imediato a unanimidade nas aclamações da crítica, e ficando soterrado numa série de prémios, incluindo o National Book Award e o Kirkus Prize, fez dele um candidato demasiado óbvio para ganhar o Pulitzer de ficção.

Na semana passada, Percival Everett resvalou uma vez mais para aquela categoria de quem parece ficar de castigo no prestígio de uma carreira literária que serve perfeitamente para ilustrar a boa-consciência que domina os tropos culturais. Ao ser-lhe atribuído o Pulitzer para ficção pelo romance James, não se pode dizer que ele tenha feito algo mais do que acatar essa espécie de privilégio que se deposita num escritor negro numa pouco subtil forma de procurar redenção num contexto político de clara regressão dos direitos sociais, particularmente das minorias, depois da eleição pela segunda vez de um autocrata racista que está a tentar reescrever esse capítulo fundamental da história norte-americana, o da escravatura. No seu estertor e impotência, o sistema cultural vai fazendo o possível para dar um sinal de resistência, mas como Everett reconhecia há dias numa entrevista ao Público, as coisas evoluíram para um ponto tal em que tudo se tornou meio anedótico, ao mesmo tempo «assustador e estúpido». A sátira de pouco serve nestas circunstâncias, pois como se pode mofar depois de o estado da Florida ter apresentado uma proposta para substituir o termo “escravatura” por “realocação involuntária”. «É hilariante, se fosse para ter graça», admite Everett. «A ironia disto chega a ter a sua beleza, porque ninguém com um mínimo de bom senso pode deixar de perceber a ironia desta estupidez. Ao mesmo tempo, o impulso de apagar a história servindo-se da desculpa de que os brancos não se devem sentir culpados é bastante perverso».

Mas neste enredo que absorve tudo para um regime de ironia sórdida, Everett não deixará de assumir que ele mesmo foi capturado. A sua “subversiva” reimaginação do clássico Huckleberry Finn, que lhe rendeu os elogios e distinções da praxe, tendo o romance colhido de imediato a unanimidade nas aclamações da crítica, e ficando soterrado numa série de prémios e distinções, incluindo o National Book Award e o Kirkus Prize, fez dele um candidato demasiado óbvio para ganhar mais este galardão. Às tantas, Everett prestou-se àquela fita de quem se pode dar ao luxo de vir com uma postura desinteressada, entre o deflacionário e o cabotino, dizendo que às tantas o que teria piada era se alguém escrevesse uma crítica que realmente pusesse fim ao coro encomiástico, uma leitura que o desancasse. É quase um desafio que lança, sabendo que uma obra verdadeiramente subversiva de um autor negro nunca seria acolhida com tamanho grau de entusiasmo. Seja como for, James, o tal romance, nem estava na lista dos três preferidos do júri, mas foi submetido depois de não terem conseguido chegar a um consenso. Perante o impasse, a comissão de 17 membros com voto sobre os finalistas sugeriu esta quarta opção, e pode-se dizer que o júri a engoliu. Depois houve uma certa incomodidade quando se soube da forma como o processo decorrera, sendo que a alternativa teria sido não entregar o prémio, como aconteceu em 2012, provocando a cólera do mundo literário. Quanto a Everett, tendo-se mostrado agradado com o Pulitzer, noutras ocasiões reconheceu que os prémios chegam a ser ofensivos, isto porque forçam «comparações iníquas entre obras de arte». O certo é que os seus livros têm recebido muitos. Aos 68 anos, e desde que se estreou como romancista, em 1983, este escritor natural da Georgia tem publicado aproximadamente um romance de dois em dois anos, para além de dezenas de contos, ensaios e artigos, mas de tempos a tempos gosta de ser ele mesmo a cortar com o lado balofo dos perfis que lhe traçam, descartando sumariamente a maioria das coisas que escreve como «merda». «Tenho quase a certeza de que tudo o que escrevo é merda», disse a uma jornalista da The New Yorker. «Estou apenas a tentar fazer a melhor merda de que sou capaz».

A obra mais popular de Everett

Este escritor que foi tendo um percurso bastante discreto até há alguns anos, talvez tenha sentido a necessidade de se defender do excesso de entusiasmo de que se viu cercado, sobretudo a partir do momento em que o seu romance Erasure de 2001, foi adaptado ao cinema por Cord Jefferson há dois anos, em American Fiction. A sinopse deste consegue ser tão prometedora quanto enganadora, com a premissa a intrigar-nos com um escritor a quem é dito que o seu universo não é suficientemente «negro», e que ao dar-se conta de uma série de livrecos que têm obtido enorme sucesso comercial e crítico por corresponderem aos estereótipos que o público em geral entende como «a vida negra», também ele decide vomitar a sua versão simplória de um romance ambientado no gueto, assinando-o com um pseudónimo, e obtendo a tão embaraçosa aclamação e os lucros que sempre lhe tinham escapado. «Chamem-lhe, se vos apetecer, ironia localizada, ou racionalização conveniente, mas fosse como fosse eu ia ficar com o dinheiro», diz o protagonista. E não deixa de ser irónico que Erasure até aqui tenha sido a obra mais popular de Everett. Isso talvez esteja prestes a mudar, mas antes de nos fixarmos em James, é bom assinalar como os romances deste escritor sempre andaram à bulha com as convenções, seja mofando seja reinventando-as. Everett escreve depressa e muitas vezes aproveita o balanço na receção a um livro e alguma sugestão que daí retira para se lançar na obra seguinte. Escreveu westerns, thrillers, uma novela ao estilo de uns filmecos pirosos da televisão e um manual para a gestão de escravos. Também faz as suas concessões ao regime pós-moderno, e Erasure surge referido na trama de I Am Not Sidney Poitier, publicado 8 anos mais tarde, quando uma personagem admite à personagem do autor, chamado Percival Everett, que não gostou do livro, e este não fica acabrunhado, mas reconhece que também não gostou de o escrever, nem ficou muito convencido da sua qualidade quando o entregou ao editor. No fundo, este escritor tem uma certa facilidade em rabiscar enredos, traz uma boa dose de humor, sagacidade, e é capaz de obras de teor mais cerebral, livros em que transparece a sua paixão pela filosofia, que chega a impor-se ao enredo, como é capaz de obras mais fiéis à tramitação realista, sendo, na sua maioria, livros ambientados no Oeste americano, e colocando em evidência uma consciência da crueldade das pessoas, mas estabelecendo essa margem redentora das ligações afetivas. Outro ponto decisivo na sua ficção, é a forma como se detêm no próprio elemento de produção de sentido da linguagem e como isso em si mesmo gera uma espécie de crença ou, em alternativa, uma série de superstições. Assim, Everett não deixa de apontar como a capacidade de extrair sentido, brincar com o significado das coisas, é uma dança de falsas promessas e ilusões voluntárias, comparando-o a uma burla: «Porque queremos que a linguagem signifique algo, ela significa tudo».

A ‘armadilha’

De facto, este escritor retira o seu elemento de rebeldia de uma certa reserva melancólica, não chega a ser um satirista, porque compreende a devastadora ironia da cultura, e, em seu entender, mesmo esse subgénero da “ficção afro-americana” não passa de uma impostura, uma mercadoria que tenta ser levada a sério como um género autónomo. Em 1991, numa altura em que ainda parecia ter disponibilidade para cumprir com aquilo que esperavam dele, publicou um ensaio sobre o estado da autoria norte-americana. «Estamos à mercê de um mercado que procura afirmar as suas crenças sobre os afro-americanos», escreveu. Nos anos que se seguiram, embora a sua obra tenha conseguido triunfar enquanto a crítico se enaltece ao prestigiar um autor que soube escapar a esse engodo, por dar fôlego a personagens negras que supostamente se evadem aos arquétipos a que habitualmente as vemos confinadas, o certo é que os seus livros não escapam a essa benevolência algo paternalista, e a questão étnica continua a limitá-los à condição de um comentário sobre as tensões raciais e esse género de balelas que acabam por ser limitadoras para um escritor. No tal ensaio, Everett reconhecia essa armadilha: «Mesmo quando o nosso trabalho procura ser outra coisa, nunca escapa a ser lido como uma reação à posição em que nós e as nossas obras fomos colocados».

James, o Prémio Pulitzer de ficção

Em James, vemos Everett picar o ponto, apresentar-se no escritório para fazer obras de reconversão de um marco cultural. E então, desta vez inverte a perspetiva dos acontecimentos de Huckleberry Finn, seguindo as linhas gerais do romance de Twain, mas agora submetendo-o a uma drástica revisão e reinvenção como uma narrativa na primeira pessoa, na voz de Jim, o fugitivo escravizado do romance. Se as aventuras da dupla ao descer o rio Mississippi numa jangada pareciam, na perspetiva de Huck, um enorme desvario, do ponto de vista de James vemos como tudo assume contornos bem mais drásticos e terríficos. E recordamos o momento em que Jim diz a Huck, no romance original, como já estava farto «aventuras». O comentário de Everett é muitíssimo pertinente, mas ao conferir interioridade e literacia ao talvez mais famoso emblema ficcional da escravatura americana a seguir ao Uncle Tom, Everett não deixa de ficar submetido a esse tropo comercializável de dar resposta a partir das margens, exorcizando a velha bagagem racial para confrontar de que forma evoluiu a relação dos leitores com aquele romance que tem um peso fundacional na literatura norte-americana. O problema é que o romance de Everett é ele mesmo um derivado, vindo reescrever Jim como este James, um leitor ambicioso, que compreende que a Bíblia não passa de um instrumento dos seus opressores e que mantém íntimos solilóquios com Jean-Jacques Rousseau, Voltaire e John Locke, muitas vezes sobre a escravatura. É um personagem que se inscreve como uma forma de delírio na marginália, servindo-se de expedientes bastante patéticos, como se a dignidade do tal escravo tivesse de ser resgatado para um tom inchado, o de um erudito que tem de fingir um certo retardo para não se tornar ameaçador para os brancos. Assim, logo no início do romance, ficamos a saber que o famoso dialecto ocular de Jim em Huckleberry Finn é uma forma estratégica de se camuflar, passar despercebido: os escravizados foram levados a embotar a sua fala para acalmar os nervos dos brancos. Mas, mal estes viram costas, entre eles, os negros falam num inglês cristalino e erudito. («Será isso um exemplo de ironia proléptica ou de ironia dramática?», pergunta uma personagem). No fundo, isto explica bem o elemento patético de um ambiente intelectual que se arrepia com as mais de 200 incidências da expressão “nigger” no romance de Twain, e que prefere esta impostura de fazer passar Jim por um rei-filósofo, um dos grandes génios mercuriais do seu tempo. Dá sensação de que Everett, que nas entrevistas não se cansou de repetir que leu o romance de Twain 15 vezes, e que o fez para o transformar numa mancha, e o desfocar, até ficar enjoado dele, realmente leu-o até não perceber nada. Teve de reescrever Jim, fazer dele outra coisa, porque na verdade, há formas piores de degradar um homem do que chamá-lo “nigger”. Há quem ainda imagine que a dignidade humana só se alcança através de uma filosofia que penetre na miséria e lhe reinvente os fundamentos, e nunca compreenda a miséria dessa filosofia. Na verdade, é Mark Twain quem continua a rir-se, e é o seu romance que acaba por levar a melhor sobre este James, demonstrando o perigo da colonização cultural que leva um escritor negro a ter de falsificar Jim para o “elevar”, sendo incapaz de reconhecer a fabulosa dignidade da personagem no original. A recomendação a fazer a Everett é que leia Huckleberry Finn uma 16ª vez, agora já livre da sujeição de ter de escrever um romance para impressionar os brancos.