Pela primeira vez em 51 anos, ficou em causa o sistema de partido único que alterna entre a fação mais ao centro-direita (PSD) e a mais ao centro-esquerda (PS). Uma parte do país, especialmente uma certa esquerda e os média, compostos por um determinado tipo de esquerdismo elitista e profundamente desconectado da realidade, ficou em choque. A surpresa e a desilusão são compreensíveis. Algo está a falhar nos programas e nas práticas políticas do sistema português, e a mensagem da esquerda, particularmente, encontra cada vez menos apoiantes. Contudo, em vez de refletirem sobre o fracasso das suas propostas, o que faz o sistema? Demoniza o adversário com falácias, atacando também os eleitores que nele votaram. Esta prática representa a negação da própria essência da democracia.
Este mesmo sistema promove uma propaganda sistemática que procura convencer-nos de que não há alternativa possível a si próprio. Qualquer proposta divergente só pode provir de forças obscuras e perigosas.
Importa fazer um diagnóstico realista sobre os resultados eleitorais. Por que motivo, em zonas tradicionalmente de esquerda, nos segmentos populacionais mais pobres e nas respetivas regiões, os partidos de esquerda estão em extinção? Por que razão os seus apoiantes mais fervorosos desqualificam quem opta por propostas diferentes, chamando-lhes ignorantes, fascistas e criaturas ignóbeis?
A democracia vale pela sua capacidade de nos surpreender. E também pela liberdade que confere a cada cidadão para fazer as suas escolhas. Vale pela diversidade de partidos, com visões diferentes sobre como deve ser organizada a sociedade. Estas são características que distinguem as democracias das ditaduras.
Que sistema é esse em que os média e certos grupos se arrogam o direito de determinar o que cada um deve escolher, atribuindo às escolhas que consideram inaceitáveis um caráter indigno? Esta mentalidade é uma patologia das democracias e um traço típico do pensamento totalitário. Trata-se de uma mentalidade que se vê a si mesma como detentora exclusiva da virtude: «Só eu sei o que é o bem, a democracia e a justiça; quem não pensa como eu é fascista».
A essência da democracia, a sua grandeza e também a sua fragilidade, reside no princípio de que cada pessoa vale um voto. A liberdade de escolha é total, e cada um responde unicamente perante a sua consciência, sem medo de punição. A ideia de que a expressão do povo pode ser rejeitada por não ser suficientemente ‘letrada’ ou ‘esclarecida’ levaria, no limite, à abolição do eleitorado. Ou à proibição de partidos que não se enquadram no modelo do ‘partido ideal’.
Em Portugal, as zonas mais pobres – de Rabo de Peixe à Península de Setúbal, passando por certas zonas do Algarve real, destruído por décadas de má gestão urbanística e corrupção político-partidária – votaram Chega. São estas populações ignorantes, ou estarão simplesmente a querer uma voz, a reclamarem que preferem serviços públicos que funcionem (transportes, escolas, centros de saúde) à proliferação de casas de banho neutras, campanhas identitárias, penitência racial e milhões de euros canalizados para uma cultura subsidiada de esquerda?
Os idosos com vidas miseráveis e os jovens sem oportunidades estão mesmo preocupados com a agenda LGBT ou o carbono fóssil? Dar voz ao homem comum não é apenas populismo, mas dizer às pessoas que elas existem e importam.