Daniel Falcão, ‘Gotinha’. Lenda do tráfico no Morro da Maré

Quase adolescente, lá na favela era uma espécie de Billy The Kid.

Como vem sendo tendência um pouco por todo o continente americano, no Brasil, as fações criminosas já lucram mais com certas atividades comerciais legítimas do que com o tráfico de droga. Entre essas atividades, contam-se o comércio paralelo de gás, energia elétrica, transportes, combustíveis, lubrificantes, cigarros e bebidas, extração e produção de ouro, construção de imóveis em terrenos ocupados, golpes e fraudes através do telemóvel e, num resquício das velhas práticas, roubo de cargas e furto destes aparelhos.

A lógica vai no sentido de construir um portefólio o mais vasto possível, e não faltam exemplos de atividades legais, como postos de gasolina e usinas de etanol, que estão nas mãos dos bandidos. Estas informações, contidas num relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E o cronista Ruy Castro lembra o primeiro filme da saga O Padrinho, em que Don Vito Corleone explica os motivos porque quer que Michael se mantenha longe dos negócios da família, de todas as atividades criminosas, que se forme em direito e faça o seu percurso como advogado para, se for o caso, um dia vir a defender a família na Justiça. Para aquele escritor, que conhece tão bem a realidade brasileira, e que combateu ele mesmo a dependência química, não faz o menor sentido a polícia continuar a trocar tiros nos morros, quando, hoje, «o criminoso pode estar no escritório vizinho ao nosso». Mas a guerra ao narcotráfico tornou-se em si mesma uma forma de enraizamento mitológico, uma épica distrativa ou tão-só uma telenovela que continua a iludir muitos em relação à verdadeira dimensão do crime, que aprendeu com o capitalismo a desmultiplicar-se. Enquanto isso, a mortífera saga prossegue nas favelas brasileiras. Morto na última operação do Bope (Batalhão de Operações Especiais) no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, na manhã do passado dia 13, Daniel Falcão dos Santos, o ‘Gotinha’, braço direito do traficante TH, ganhou mais de 110 mil seguidores na sua antiga página no Instagram em apenas uma semana. Já são 230 mil seguidores idolatrando o criminoso. A página continua bastante ativa, sendo utilizada para divulgar propaganda do “jogo do tigrinho”. Trata-se de um jogo de apostas da PG Soft, empresa criadora do Fortune Tiger e que está sediada em Malta, este jogo para o telemóvel é conhecido como Jogo do Tigrinho no Brasil, e tornou-se uma verdadeira febre, prometendo somas avultadas, mas estando no centro de dezenas de investigações sobre uma série de fraudes.
Segundo as autoridades, Gotinha era um dos seguranças pessoais de Thiago da Silva Folly, o ‘TH da Maré’, chefe do tráfico de drogas na região, que também foi morto. Os dois estavam no Morro do Timbau, local que utilizavam como esconderijo, com mais um dos membros do gangue. Quando o pelotão do Bope os confrontou, terá havido uma troca de tiros, e os três foram mortos. O grupo era procurado desde as mortes do cabo do Exército Michel Augusto Mikami, assassinado em 2014, e do soldado da Força Nacional Hélio Messias Andrade, baleado em 2016 ao entrar por engano no Complexo da Maré. Por seu lado, Gotinha tinha um mandado de prisão em aberto pelos crimes de tráfico de drogas, associação para o tráfico e porte ilegal de arma de fogo de uso restrito. Além de segurança pessoal de TH. Gotinha agia como intermediário para o cumprimento de ordens entre os integrantes da fação, todo a recolha de dinheiro dentro das favelas da Maré.

O seu perfil era o de uma lenda na região do Complexo da Maré. Nas redes sociais, ostentava o estilo de vida, com carros de alta cilindrada, as notas e os cordões de ouro, muitas vezes com armas de alto calibre. Em reação à sua morte, houve desfiles e corridas, vários muros no morro foram grafitados com o seu nome, e ainda surgiram 74 perfis em suas homenagem em diferentes redes sociais.


O traficante foi velado e enterrado no dia seguinte, ao lado de TH da Maré. Nas redes sociais, os amigos lamentavam o facto de o seu caixão ter sido ‘lacrado’, o que impediu de o verem por uma última vez. Mas logo circularam algumas fotos que deixavam claro o motivo que levou a que a urna funerária tenha permanecido fechada ao longo da cerimónia fúnebre. No assalto do Bope ao bunker, da cabeça de Gotinha não sobrou muito, depois de ser atingido pelos disparos dos militares.