Uma crónica criminal. A história de uma ‘madame’ e de dois polícias

O caso de um esquema de exploração sexual com o alegado envolvimento de dois polícias parece saído de um episódio de Lei & Ordem. Mas aqui, qualquer semelhança com a realidade pode não ser coincidência. A defesa dos agentes diz que é.

Quantas casas de massagens em Portugal escondem bordeis dos tempos modernos? É a esta pergunta que as autoridades procuram responder, com investigações como a que envolve Hérica Duarte, de 45 anos, alegada líder de uma rede de exploração sexual a atuar em Portugal desde 2020 e presa preventivamente em outubro do ano passado. O caso levou também à detenção de dois agentes da autoridade, acusados de tráfico de pessoas, lenocínio e outros crimes.

No centro da investigação está um prédio discreto no Chiado, onde se anunciava um spa. No entanto, segundo a acusação do Ministério Público (MP), com data do mês passado e a que o Nascer do SOL teve acesso, os serviços ali prestados iam muito além de massagens. Na cave, mulheres – na maioria brasileiras e em situação irregular – atendiam clientes sob o olhar atento de uma carismática e autoritária ‘madame’ dos tempos modernos, que teria uma relação próxima com um polícia e namorava com outro.
Hérica Duarte, brasileira com nacionalidade portuguesa, geria a alegada rede e controlava as funcionárias com a ajuda de cúmplices, câmaras de vigilância e subtis – ou não – alusões aos seus contactos policiais. O caso lembra um episódio da série Lei & Ordem, incluindo o suposto envolvimento de dois agentes da PSP, então ao serviço da Polícia Municipal. Mas neste ‘episódio’ não surge o aviso de que ‘qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência’, pois, segundo o MP, não se trata de ficção.
Já o advogado dos dois polícias, Jorge Henriques, de 45 anos, e Joel Lourenço, de 42, considera que as alegações do MP não passam de um mau guião, assente apenas em suposições: Lopes Guerreiro já pediu a nulidade do despacho de acusação e a abertura de instrução, que o próprio requer que resulte «na não pronúncia dos agentes».

O Argumento da Acusação
Segundo o MP, Hérica Duarte recrutava mulheres brasileiras com promessas de emprego em casas de massagens. Ao chegarem, eram incentivadas à prostituição, privadas de documentos e com uma dívida de 5.000€ referente à viagem para Portugal, que teria sido paga pela arguida.
As casas de prostituição operavam com nomes sugestivos como Teilla SPA, Sete Saias ou Nuriah SPA. O caso adensa-se com o alegado envolvimento dos agentes da polícia. O MP afirma que Jorge Henriques e Joel Lourenço «frequentavam o spa do Chiado com a farda», para intimidar e ameaçar as mulheres. «Não obstante serem conhecedores da atividade ilícita desenvolvida no interior do estabelecimento, ainda assim frequentaram o espaço quando estavam de serviço, permanecendo ali a conviver com Hérica Duarte e a consumir bebidas alcoólicas que esta lhes ofereceu e, em algumas ocasiões, o arguido Jorge Henriques usufruiu dos serviços sexuais prestados pelas mulheres contratadas pela arguida Hérica, sem efetuar qualquer pagamento, como contrapartida dos seus serviços», lê-se na acusação.
Em causa estão crimes graves como tráfico de pessoas, lenocínio agravado, ameaça agravada, ameaça com arma e abuso de poder. E do processo constam escutas, vídeos e testemunhos de várias vítimas. O MP refere ainda que Joel Lourenço teria uma «relação amorosa» com Hérica Duarte, que conhecia desde 2023, e que Jorge Henriques era um velho conhecido da arguida.

A Versão da Defesa
Lopes Guerreiro, advogado dos polícias, admite que o caso parece um episódio de série policial, mas diz que a acusação relativa aos agentes não passa disso mesmo: ficção. «Este despacho de Acusação faz lembrar uma pintura pontilhista em que o leitor é confrontado com um disperso conjunto de factos (sem nenhuma ressonância criminal) que, vistos de forma isolada e em atenta proximidade, nada revelam de ilícito. E quando visualizados de forma distante e conjunta são suscetíveis de transmitirem uma imagem grosseiramente inconsistente e turva da prática do que quer que seja de lícito e/ou ilícito», escreve no requerimento de abertura de instrução.
Sobre Joel Lourenço, Lopes Guerreiro afirma que «o agente nunca esteve, fardado ou não fardado, nos espaços em causa», mas reconhece que o agente teve, «numa ocasião», relações sexuais com Hérica Duarte na habitação desta em Sacavém e não na casa do Chiado, como consta na acusação.
Quanto a Jorge Henriques, a defesa admite que o agente esteve no espaço, mas apenas para «urinar» ou «descansar» do turno de trabalho, negando qualquer envolvimento no funcionamento do spa ou nos atos de intimidação. Sobre a alegada ameaça com arma, argumenta que, no vídeo apresentado como prova pelo MP, não é possível identificar nem o agente nem a arma.

Nenhuma vítima reconheceu Jorge Henriques como autor de ameaças, argumenta Lopes Guerreiro, dizendo que tudo é fruto da «imaginação fértil» do acusador, que «misturou factos com meios de prova e meios de obtenção de prova» para sustentar uma narrativa.

Ao contrário de um episódio de Lei & Ordem, este caso não fica resolvido em 45 minutos. Há que esperar pela decisão do juiz de Instrução Criminal sobre a abertura de instrução e, aceitando-a, saber que crimes e que arguidos seguirão para julgamento. Hérica Duarte está presa preventivamente desde outubro de 2024. Jorge Henriques e Joel Lourenço beneficiaram em março passado de uma redução das medidas de coação e estão agora em prisão domiciliária, vigiada por meio eletrónico.

De sublinhar ainda que Lopes Guerreiro é já ‘batido’ em casos mediáticos, sendo advogado de dois dos fugitivos de Vale de Judeus, Rodolfo Lohrmann e Fábio Loureiro, e tendo defendido Rómulo Costa, o português condenado por apoiar o Estado Islâmico.