A falha de eletricidade a que a Portugal assistiu no mês passado mostrou algumas fragilidades e a prova de que, sem luz, muito pouco funciona. Ou, pelo menos, por muito tempo. Um desses exemplos é a água. O Nascer do SOL falou com Joaquim Poças Martins, especialista em água, para tentar perceber como funciona o abastecimento e a distribuição e quais as consequências de um apagão.
Muitos municípios fazem a gestão de água em baixa e há empresas que a fazem em alta. Como é este processo?
A maior parte dos municípios compra a água já tratada a empresas em alta e os municípios fazem depois a distribuição. Os municipios têm reservatórios de armazenamento que dão para um dia ou dois dias no máximo. Mais que dois dias ninguém tem. A hora a que, desta vez, faltou a água, foi das piores, porque nessa altura os reservatórios estão quase sempre em baixo, depois do pico da manhã, em que toda a gente se levantou e tomou duche. A essa hora, em muitos casos, havia água suficiente para apenas algumas horas de consumo.
E depois há diferença no abastecimento: por bombagem ou gravidade. Todos precisam de luz?
Por gravidade não precisa, mas esta situação é rara, quase sempre é preciso bombagem e certamente as estações de tratamento não funcionam se a energia estiver em baixo. E quase todos os prédios acima de 4 a 5 andares têm bombas próprias, que também não funcionam sem energia. Portanto, se a energia falhar durante muitas horas, acaba a água em todo o lado.
É uma situação normal ou os municípios devem pensar a forma como gerem a água para que situações destas não voltem a acontecer?
A regra é os municípios terem reservatórios para um a dois dias de consumo, de forma que se falhar o abastecimento em alta durante esse período, continuarem a garantir a distribuição. Mas falhar a energia durante um a dois dias é raríssimo, esperemos que não vire moda. Pode ainda acontecer uma avaria grave na estação de tratamento ou um surto de poluição no rio, por exemplo cair um camião com um produto químico muito perigoso no sítio onde é captada a água para a estação de tratamento e durante algum tempo, até a água limpar, não se injeta água nos municípios. Por isso é que as autarquias devem ter alguma capacidade de reserva que é sempre na ordem de algumas horas, desejavelmente, um dia ou dois. Também não pode ser muito mais, porque a água ficaria estragada. Assim, se falhar o abastecimento em alta durante mais de dois dias, toda a gente fica sem água. Nos sistemas há geradores, mas nunca são suficientes. A potência que seria necessária para ter geradores a 100% é muito grande e obrigaria a instalações e custos desproporcionados.
Muitos municípios têm apenas geradores móveis…
Mas os geradores não resolvem, não servem para isso. Servem para manter os hospitais e algumas pequenas coisas a funcionar mas há limites. Não é possível que, no caso de falhar a energia elétrica, tudo continue normal, isso obrigaria a uma quantidade de geradores que é absolutamente desproporcional e impossível.
E a estimativa de reserva tem várias condicionantes.
Sim, verdade. Mas pode ter-se isto como regra: a água precisa de energia para chegar a casa das pessoas. É muito rara a situação em que não acontece isso, por exemplo em que a nascente da água e a estação de tratamento estão no alto do monte, acima das casas, mas quase nunca acontece isso. Depende dos sítios. Mas esta é mesmo a regra: uma falha de energia de algumas horas não deve causar interrupções de abastecimento, entre um e dois dias, os municípios que têm reservatórios maiores aguentam, mas depois de dois dias ficam todos sem água.
Até hoje não tínhamos bem a noção de ligação entre luz e água.
Sem eletridade também não há água em casa. É interessante que há países em que as pessoas têm reservatórios em casa, toda a gente tem um reservatório em casa. E aí, se falhar a água, durante um certo tempo não há problemas. Em muitas cidades de em África, Ásia e América Latina, só há abastecimento durante algumas horas por dia ou mesmo durante alguns dias por semana e, portanto, as casas tem reservatórios, às vezes para 15 dias. Ter em casa um pequeno reservatório, com umas dezenas de litros, pode ser uma boa ideia, mas tem de se ter o cuidado de renovar a água regularmente, porque se estraga.
Certo que alguns municípios tiraram daqui lições…
Sim. Pelo menos aqueles municípios que ficaram sem água vão perceber porquê e vão ver se podem melhorar alguma coisa, em articulação com a respetiva empresa em alta.
Por exemplo, pode gerir-se a alimentação dos reservatórios de forma a que estes nunca fiquem a menos de 50% ou mesmo 75% da capacidade máxima, mas isso obriga a gastar mais em energia: durante a noite a energia é muito mais barata mas para manter os reservatórios “sempre em cima”, tem se bombar também nos períodos em que a energia é mais cara, de facto muito mais cara que durante a noite, a exemplo das tarifas bi-horárias que algumas pessoas têm em casa. O apagão foi um alerta, pode surgir outro e, como está quase todo dependente da energia, todos aprendemos que temos de ter em casa o suficiente para dois a três dias: dinheiro, alimentos, água, lanterna, velas e fogareiro a gás. Mas a probabilidade de nos esquecermos depressa do que aconteceu é grande.