Portugal vive hoje uma nova conjuntura política que torna possível, finalmente, a revisão da sua Constituição. Esta oportunidade histórica não deve ser desperdiçada. É esta a oportunidade de maturidade democrática para o país abandonar elementos ideológicos herdados da matriz socialista e estatista da década de 1970, que continuam inscritos na Lei Fundamental, e assumir plenamente a modernidade liberal-democrática.
A Constituição da República Portuguesa, apesar de conter garantias fundamentais compatíveis com as democracias modernas, conserva ainda traços ideológicos ultrapassados e estruturas jurídicas inspiradas em modelos coletivistas que não têm paralelo nas constituições das democracias liberais avançadas. Trata-se de um documento que, em partes significativas, já não reflete a vontade política maioritária da sociedade portuguesa contemporânea, nem os princípios do pluralismo democrático e da economia de mercado mista que definem o espaço europeu.
O cientista político Giovanni Sartori referia que uma constituição deve evitar funções programáticas ideológicas e preservar-se como instrumento jurídico de regulação institucional e de garantia da liberdade política. Se uma constituição se transforma “num programa de governo disfarçado de lei fundamental”, perde a sua função estabilizadora e deforma o princípio da separação entre a política e o direito.
A persistência de uma ideologia datada
O preâmbulo constitucional, frequentemente citado por analistas e juristas, menciona expressamente o objetivo de “abrir caminho para uma sociedade socialista”. Embora o preâmbulo tenha valor sobretudo simbólico, não deixa de ser problemático: a Constituição não é um hino ou uma bandeira — é um documento operativo e normativo. A sua carga ideológica influencia a interpretação dos direitos, das políticas públicas e da organização económica.
É igualmente revelador e até absurdo que, em pleno século XXI, se mantenham expressões como “abolição do imperialismo”, “direito à insurreição”, “eliminação dos latifúndios” e “reorganização do minifúndio”. Estas formulações, herdeiras diretas do contexto revolucionário pós-25 de Abril, são hoje incompatíveis com a neutralidade jurídica e institucional exigida pelas constituições das democracias ocidentais.
Um modelo económico constitucionalizado e centralizador
Vejamos um conjunto de exemplos ilustrativos desse viés que justifica a urgência de uma revisão para não permanecermos reféns de um notório atraso constitucional no século XXI.
O Artigo 80.º estabelece como princípio fundamental a “subordinação do poder económico ao poder político democrático”. Esta expressão, embora compreensível num contexto de controlo democrático do capital, traduz uma visão dirigista e centralizadora do Estado, afastada do equilíbrio entre regulação pública e autonomia do mercado que caracteriza as democracias liberais contemporâneas.
No Artigo 81.º, são listadas incumbências do Estado que incluem a “eliminação dos latifúndios”, a “reordenação do minifúndio” e a promoção da justiça social por via fiscal. Trata-se de uma conceção profundamente intervencionista da economia, mais próxima de uma economia planificada do que de um modelo regulado de economia de mercado.
Além disso, o Artigo 82.º divide a economia nacional em três setores — público, privado e cooperativo/social — de forma rígida e estruturante. Esta setorização é herdeira de uma leitura socialista da organização produtiva e contrasta com o dinamismo e a flexibilidade que caracterizam os sistemas económicos mais bem-sucedidos.
Vejamos um exemplo a título comparativo: a Lei Fundamental alemã (Grundgesetz) estabelece princípios económicos abertos e flexíveis, baseados na economia de mercado social (soziale Marktwirtschaft), sem se comprometer com qualquer modelo ideológico de organização produtiva. A referência ao “bem comum” é feita no âmbito da regulação e não da planificação, garantindo a neutralidade do Estado quanto à estrutura da economia.
O papel desproporcionado dos sindicatos
Um dos aspetos evidentes do anacronismo da Constituição portuguesa encontra-se no domínio laboral. O Artigo 54.º, por exemplo, reconhece às comissões de trabalhadores o direito à intervenção na reestruturação das empresas e no controlo de gestão. Esta forma de representação direta do trabalho dentro da estrutura empresarial reflete uma herança de modelos antigos de inspiração comunista da antiga União Soviética e Jugoslávia, incompatíveis com os princípios de gestão das democracias liberais ocidentais.
Mais grave ainda é o Artigo 56.º, que confere aos sindicatos um poder institucional desproporcionado, como a participação na elaboração da legislação do trabalho, intervenção na gestão das instituições de segurança social e competência exclusiva para a contratação coletiva.
Em vez de serem organizações voluntárias e autónomas de representação dos trabalhadores, como acontece em democracias como os EUA, Reino Unido, Irlanda ou países nórdicos, os sindicatos em Portugal assumem um papel quase cogovernativo, com prerrogativas legislativas e executivas. Não é exagero afirmar que este modelo está mais próximo da realidade venezuelana do que da europeia.
A Constituição não valoriza o papel legítimo e determinante das entidades patronais nos processos negociais, consagrando uma visão assimétrica da relação laboral que já não corresponde à realidade pluralista do mundo do trabalho atual. Hoje, fala-se em parceiros sociais, diálogo social e equilíbrio negocial — termos que estão ausentes do texto constitucional.
O peso político de uma minoria ideológica
A resistência à revisão constitucional por parte da esquerda radical, do Partido Comunista e de setores do Partido Socialista revela o peso desproporcionado de uma minoria ideológica — uma “esquerda de 7% a mandar em 70% das pessoas”. Insistir em manter intocável uma Constituição com fortes marcas ideológicas, em nome de uma pretensa “pureza democrática”, é negar a evolução da sociedade portuguesa e o princípio da soberania popular.
Não existem hoje, na Europa Ocidental, constituições que consagrem formalmente o socialismo como horizonte político do Estado. A manutenção desse referencial numa constituição democrática é uma exceção anacrónica que precisa de ser ultrapassada.
Conclusão: A oportunidade de um consenso reformista
A revisão constitucional não deve ser encarada como um ato de revanche ideológica, mas como um exercício de maturidade democrática e de clarificação institucional. As forças políticas que partilham uma visão liberal, pluralista e moderna da sociedade — PSD, IL, Chega e CDS — têm agora a responsabilidade de se entenderem naquilo que as une: a superação do estatismo constitucionalizado e a afirmação de uma democracia livre, justa e moderna.
As divergências sobre temas pontuais, como a prisão perpétua ou outras questões sensíveis, não devem impedir um compromisso essencial em torno de valores fundamentais: liberdade, responsabilidade, pluralismo e neutralidade institucional. O que está em causa não é apenas mudar leis. É atualizar os fundamentos do regime democrático português para o século XXI.
A mudança da Constituição é agora, finalmente, uma possibilidade real. Portugal deve aproveitar esta oportunidade histórica para romper com os fatores estruturais de atraso que ainda decorrem de modelos socialistas e de um estatismo excessivo, herdados do período revolucionário. É tempo de o país assumir plenamente os valores da modernidade institucional e da democracia liberal. A atual Constituição continua marcada por uma visão marxista-socialista, centrada num Estado centralizador e dirigista, incompatível com os princípios das democracias liberais contemporâneas. Um texto com este grau de carga ideológica seria impensável num país central do Ocidente democrático.