Juan Villoro. “Pertencemos à primeira geração que tem de provar que ainda é humana”

Professor universitário no México, deu aulas em Yale, Princeton e Stanford, mas Villoro é acima de tudo um tremendíssimo escritor, e no seu mais recente livro quis fazer a crónica de um momento de transformação da própria humanidade.

Talvez o momento de euforia e de maior ingenuidade em relação às maravilhas do progresso tecnológico tenha já terminado. Contudo, e mesmo se a melodiosa partitura destes sistemas até deixou já de cantar e cativar-nos com a perspetiva de um amanhã em que o homem se veria libertado das tarefas mais ingratas, vendo as suas necessidades satisfeitas, e ficando apto a gozar ociosamente a sua existência, apontando energias e ambições para o plano criativo, o certo é que a crescente influência do regime algorítmico parece estar a impor sobre a própria palavra “homem” uma depreciação considerável na bolsa dos valores atuais, e o processo de substituição deverá gerar tensões sociais sem antecedentes. Num tempo em que o saber e a política nos surgem desmembrados, resta esperar que o homem seja conduzido pela sua própria miséria a fermentar, a revolver e buscar de novo dirigir o seu destino, e revoltar-se contra um regime de dependência em que, de próteses humanas, as máquinas e o domínio digital vêm condenando o homem a tornar-se um mero suporte para este enredo totalitário. Mesmo os prognósticos mais conservadores são já apavorantes. “Na década de 2030-2040, o desenvolvimento da inteligência artificial coincidirá com o ponto de não retorno na ecologia. No seu momento mais vulnerável, a humanidade confiará inúmeras decisões às máquinas”, escreve Juan Villoro. Em Não Sou um Robô (ed. Zigurate), este escritor e jornalista mexicano investe como um batedor num território que lhe é estranho, tendo um percurso magistral como ensaísta literário. Mas o que nos oferece não é uma análise altamente especulativa, e, sim, uma crónica abrangente e vertiginosa sobre a degradação da realidade à medida que saltamos da galáxia de Gutenberg para a galáxia digital. Villoro promove um diálogo entre diferentes atores e especialistas, servindo-se de pesquisas e dados, mas não se ficando pela visão alarmista, antes desenvolve uma compreensão profunda sobre a própria crise da cultura, recorrendo a instrumentos da sociologia e da história para nos fazer sentir a escala das transformações que estão a ocorrer. Não só demonstra a correlação entre o avanço da inteligência artificial e a decadência do nosso QI, mas assinala como a aniquilação pela IA passa pela perda de habilidades humanas, sendo que a substituição decorre da tentação de delegar cada vez mais tarefas nas máquinas, até ficarmos inteiramente dependentes ou reféns destas.

Tendo lido os seus ensaios como crítico literário, fiquei fulminado com a sua capacidade analítica, a profundidade e desenvoltura destes. Na comparação com este livro, que me parece uma leitura muitíssimo instrutiva e cativante, não deixo, no entanto, de ficar com a sensação de que este o obrigou a mudar a sua forma de escrever. Ou seja, se os ensaios literários são exemplos de extraordinária exegese literária, este livro, sendo muito mais vasto nas referências, torna-se também mais rápido e ligeiro, funcionando quase como um hipertexto, uma reflexão sobre os desafios e as armadilhas da dimensão digital, os quais parecem exigir de si uma outra maneira de escrever. Nesse sentido, pergunto-lhe o que é que a atual transformação da cultura e dos meios de comunicação, de informação tem significado para si como escritor, para a forma como pensa a sua escrita e o seu projeto literário.
Essa é uma boa reflexão. Quando escrevo ensaios literários tento mergulhar na obra de um autor, no momento em que ele escreveu, e os ensaios assumem um tom narrativo porque são, afinal, ensaios de um romancista, que procura compreender o que fez desses autores figuras que continuam a impor-se nos nossos dias. Uma das coisas mais difíceis para um leitor é desenredar criticamente os seus entusiasmos. É mais fácil criticar o que se acha deficiente do que provar que uma obra vale a pena. Nabokov dizia que a maior prova de que gostamos de uma obra estética é o facto de esta nos provocar um arrepio na espinha. E eu creio que escrever ensaios literários é a arte de traduzir racionalmente esses arrepios, ou seja, dar sentido à agitação e comoção que nos provocaram. Mas neste livro, Eu Não Sou um Robô, o que fiz foi outra coisa, uma vez que estou longe de ser um especialista nestes domínios. Este trabalho, está a meio caminho entre um ensaio e uma crónica. É um retrato do nosso tempo, e havendo muitas coisas que, naturalmente, me escapam, tentei relatar o que pessoas de profissões tão diversas como espiões, astronautas, programadores informáticos, teólogos, filósofos, economistas e romancistas pensam sobre o mundo digital. Por isso, o livro tem mais a ver com uma conversa social e, de facto, com a velocidade a que comunicamos hoje em dia. Por essa razão, a forma do livro está muito próxima do tipo de reações velozes e algo impulsivas que temos com as redes, com o que postamos, como se diz na Internet… Assim, de facto, a forma do livro é também um reflexo do tempo em que este ganhou forma. Quis, sem ser um especialista, fazer uma radiografia dos novos hábitos digitais. Como é que isso está a mudar as nossas vidas? Como afetou a relação entre pais e filhos, a forma como lidamos com a política, as novas tramas e laços económicos, as novas fraudes e crimes que ocorrem nas redes. Portanto, toda esta mudança que estamos a viver combina um pouco a memória do jornalista com a análise ensaística. Mas não é um livro que procure esse grau de profundidade sobre um único tema, como quando escrevo ensaios literários.

Depois voltarei a esta questão, mas antes queria tornar mais aguçada a pergunta. Não tem sentido que há um conjunto de intelectuais, filósofos, literatos, como é o caso do Juan, que, precisamente para responder a este tempo fazem as suas incursões num registo de ordem mais magazinesca, crónicas ou ensaios mais difusos, mais leves… Este é certamente um livro de leitura compulsiva, com capítulos breves, pequenas entradas ou vinhetas, e nós mergulhamos nele como num labirinto. Traz-nos uma imensidade de exemplos e dados, estatísticas, e ficamos completamente siderados por esse cenário que conjuga, mas, ao mesmo tempo, este hipertexto é extremamente distrativo, ou seja, são tantas coisas que é difícil chegar a um juízo claro sobre aquilo que nos relata. Já como crítico literário, a excelência do seu exercício liga-se à capacidade de se deter nos detalhes de uma obra e, ao mesmo tempo, fornecer-nos um mapa, uma perspetiva ambiciosa do todo. Lê ao pé da letra, aproxima-se do vigor e do enlevo dessas frases tão poderosas, e ao mesmo produz uma interpretação, com uma fineza analítica, uma clareza e um fulgor raríssimos neste tipo de textos. A natureza de um livro como este, em que a sua análise é mais do tipo panóptico, combinando uma série de aspetos da textura da realidade contemporânea, e que terá maior expressão em termos comercial é o que me leva a interrogar se não receia ser avassalado como escritor pela realidade? Em vez de escrever para assumir uma distância e uma frieza, formulando uma relação de ordem intempestiva, não receia deixar a sua mente ser dominada por esta tendência de aceleração?
São situações muito diferentes, porque eu vivo no mundo dos livros e foi isso o que fez de mim escritor e é o que define a minha vida. Há romancistas, contistas ou poetas que apenas escrevem obras de arte criativas, mas que não refletem necessariamente sobre os livros que os formaram. Eu sempre me interessei muito pelos autores que admiro, pela tentativa de desvelar a linhagem de ordem literária que os tornou possíveis. Porque ninguém escreve na solidão. Todas as literaturas são colectivas, na medida em que emergem no seio de uma família literária. Quando um escritor não escreve ensaios, tento muitas vezes encontrar nas suas entrevistas quais possam ser estes, estes elos e obras que possam ser qualificados como os seus precursores. Portanto, este é um campo em que se retraçam as estirpes, uma zona de investigações em profundidade, digamos assim, de escavação, o que me interessa muito, não só para escrever a minha própria obra criativa, mas também para tentar refletir sobre os autores que me cativam. Ao mesmo tempo, também me pareceu necessário fazer outro tipo de livro que indagasse, embora não segundo este princípio de análise profunda, sobre o próprio objeto livro e sobre ato de ler na sociedade contemporânea. Por outras palavras, o que significa no mundo de hoje ler, e sobretudo ler em papel, perante a emergência da galáxia digital? Assim, comecei por fazer uma leitura de como a tecnologia está a mudar os nossos hábitos. E, por outro lado, propus-me tentar demonstrar como a leitura pode permitir-nos compreender melhor esta realidade. Mas, de facto, é um panopticon. É um panorama alargado de muitas coisas em que não sou especialista, e estou simplesmente interessado em levantar estas questões e operar mais como cronista de costumes. Teria gostado muito de ler um livro de alguém que tivesse testemunhado a invenção da imprensa no século XV e que contasse como ela mudou a vida quotidiana, como mudou a vida da família na sua relação com a Igreja, com a universidade, com o poder. Uma crónica que partisse da invenção do livro impresso e da forma como se popularizou a leitura. Não conheço nenhum livro assim. Conheço livros de historiadores posteriores, mas não de alguém que tenha testemunhado o facto. Foi o que me pareceu que eu poderia fazer hoje, pela perceção que tenho da revolução digital em relação à leitura. Mas de modo algum me estou a propor como um especialista. Digamos que, se houver um congresso mundial sobre Juan Rulfo, e eu não for convidado, vou sentir que fui excluído. Se houver um congresso mundial sobre tecnologia e eu não for convidado, acho normal.

Um dos autores que cita é Paul Virilio, quando ele diz que cada tecnologia produz os seus acidentes. Também fala em Neil Postman, e no livro Amusing Ourselves to Death, e aquilo que nos vai demonstrando é a forma como estas tecnologias, ao mesmo tempo que nos distraem e divertem, estão a subtrair-nos à nossa faculdade de concentração, às nossas funções cognitivas, seja porque delegamos nas máquinas um número cada vez maior de tarefas, seja porque nos deixamos adestrar e capturar pelo lado superficial, em vez de investir tempo no que é mais exigente. Agora que o seu livro tem sido publicado noutros países, e que tem viajado pelo mundo, participando em debates, dando entrevistas, aprofundando estas questões, sente que há uma consciência dos verdadeiros riscos que esta transformação implica? Chega a falar de como, na próxima década, esta crise irá convergir com a crise ambiental dando cabo das possibilidades e dos recursos no planeta, e isto numa altura em que o homem já não será o mesmo. Assim, gostava de saber, do ponto de vista pessoal, como o afeta este cenário, esta substituição do humano pela máquina?
Este livro nasce de uma preocupação com o mundo em que vivemos, da urgência de encontrarmos recursos de resistência. Não é, parece-me, um livro apocalítico no sentido em que não assume uma postura fatalista, não vem adensar as profecias da desgraça, mas é um livro em que se responde a um certo alarme apontando algumas saídas possíveis, que eu entendo precisamente que estão ao nossos dispor no campo da cultura e da leitura. A situação da ecologia, por exemplo, parece-me extremamente importante hoje. Se usarmos o ChatGPT, por cada 100 palavras que usamos, este precisa de uma pequena garrafa de água para arrefecer. E o consumo de energia do ChatGPT é dez vezes superior ao do motor de busca Google. Portanto, a inteligência artificial tem um impacto ecológico brutal. Temos tendência a falar da nuvem como se fosse um espaço etéreo onde se aloja a informação, vamos engolindo e reproduzindo essas noções algo líricas, mas na realidade tudo isso depende de um imenso armazém feito de ferros e cabos. O local onde a informação está alojada é um espaço físico imensamente poluente. Portanto, há um elemento de destruição ecológica na inteligência artificial de que pouco se fala. O segundo aspeto, que também referiu, é a substituição de funções. Hoje em dia, muitos empregos, incluindo o de jornalista, já estão a ser ocupados por máquinas. E penso que não nos organizámos politicamente para reagir. A recente greve dos argumentistas em Hollywood foi uma resposta muito importante, porque 80% deles já são substituíveis. Estou a falar dos argumentistas no cinema de natureza industrial e comercial. Mas o facto de se terem organizado é porque ainda há 20% de qualidade humana que é necessária, e por isso a ação teve um grande impacto político, e evitou que muitos ficassem à mercê da ganância dos estúdios. Temos de nos organizar senão queremos ser reconduzidos a condições de absoluta penúria. Já existem avatares e conteúdos inteiramente gerados por inteligência artificial que estão a conquistar cada vez mais espaço face às nossas criações. Isto para não falar do impacto destas tecnologias em muitos outros domínios. Claro que há utilidades muito boas na medicina, na estatística, na construção, etc., mas estamos no limiar do pós-humano e é importante defender a condição do humano e redefinir ou re-significar o humano, porque nem sequer sabemos já o que isso seja. E penso também que um elemento perturbador da inteligência artificial é o facto de não sabermos muito bem como é que funciona. A inteligência artificial dá resultados com base nos dados que processa, oferece uma solução, mas não sabemos a sequência, os passos para chegar a essa solução. Nesse sentido, não é verdadeiramente uma forma de raciocínio. Acho que a expressão inteligência é falsa. É mais um processador de dados. E o problema é que tu, tendo apenas o resultado, não sabes como se chegou a ele. Lembro-me das antigas aulas de matemática em que nos pediam para resolver uma equação. Não bastava colocar a equação resolvida, era preciso colocar os passos. Tínhamos de mostrar como chegáramos ao resultado. Hoje, com a inteligência artificial, temos a equação resolvida, mas não os passos que levam a ela. E isso é perturbador porque não sabemos como é que ela toma essa decisão. Por isso, torna-se um artigo de fé. Ao depositarmos uma confiança cada vez maior nela, isto leva-nos a um problema que tem mais a ver com teologia do que com filosofia.

Nesse sentido, mesmo a passagem do motor de pesquisa, que nos oferece uma série de possibilidades, nos deixa perante um bosque ou o labirinto de várias possibilidades de escolha, estes regimes de inteligência artificial o que fornecem são sínteses devastadoras, esquemas que alisam toda a rugosidade do pensamento e do conhecimento. Não lhe parece ser este precisamente o mecanismo inverso ao da literatura? Se esta expande o significado, o chatGPT e a inteligência artificial afunila-o, força um funcionalismo do conhecimento ao ponto de, às tantas, deste só restar um imperativo, um comando que nos dita: faz assim, eis o resumo da matéria, eis o que importa. Torna-se uma vida programada.
Esse é um ponto crucial neste processo, porque a inteligência artificial, através dos algoritmos, rege-se pela semelhança, ou seja, procura responder a algo com base em dados que já possui, e desse modo, faz abater a realidade a partir dos elementos de coincidência. Quando estamos a pesquisar, tendemos a expressar os nossos desejos, as nossas tentações. E a inteligência artificial responde remetendo-nos para o que ecoa aquilo que lhe pedimos. Abre-se um alçapão, um labirinto de espelhos. Estamos no mundo da semelhança, e depressa se coloca diante de nós uma tirania do mesmo. Esse beco em que cada coisa é reconduzida a si mesma. Se formos adeptos de um determinado clube de futebol, por hipótese – eu, por exemplo, do Barcelona – recebemos todo o tipo de informações sobre o Barcelona. E isso pode começar por nos parecer aliciante, porque focaliza os resultados num mundo que nos cativa, mas coloca-me precisamente nesse campo da semelhança, quando a cultura o que nos promete é o universo do desconhecido. Quando abro um livro, descubro coisas de que não sabia que podia gostar. Um livro, na verdade, diz-nos mais sobre o leitor do que sobre o autor, porque é o leitor que o completa e faz a exploração por si próprio, e até daquilo que não sabia sobre si mesmo. Não há mundo mais interativo que o da leitura. O mesmo já não acontece quando lidamos com algoritmos, que nos entregam uma e outra vez àquilo que já somos, ou acirram os nossos preconceitos, transformando em réplicas cada vez mais caducas de nós próprios. Portanto, preservar o pensamento complexo, o multiculturalismo, é um dos grandes objetivos da cultura do livro. E parece-me que é isso que temos de defender. Defendia há pouco que isto é o que identificamos como humano, o que nos torna dignos, porque, por outro ângulo, se olharmos para a situação do planeta, por toda a devastação que decorre da ação humana, de certa forma somos levados a concluir que o melhor seria que a nossa espécie desaparecesse, não apenas por causa da injustiça social, da discriminação, do genocídio em Gaza, da guerra na Ucrânia, do totalitarismo, dos novos populismos, enfim, da injustiça económica, mas ainda para dar uma oportunidade ao planeta e aos ecossistemas de se reequilibrarem. Hoje, basta qualquer análise das condições de vida no planeta para ficarmos com uma imagem muito negativa da espécie humana. E, no entanto, acredito que podemos lutar por atribuir um novo significado ao que é verdadeiramente humano através da cultura. E isso tem a ver precisamente com o pensamento complexo, com a transferência do sofrimento e da emoção para formas de arte e beleza, com a inovação. Porque as máquinas funcionam com base no pré-concebido, no que receberam, mas não com base no que não conhecem. Ora, os seres humanos movem-se em direção ao que não conhecem. E se a cultura é o domínio do que existe, é também o domínio do que é possível. E creio que é isso que está em causa no nosso tempo, e foi por isso que escrevi este livro.

É curioso levar em conta que o termos “robô” nasce para designar um escravo inorgânico. O robô é o escravo que substituía o homem no cumprimento de uma tarefa penosa. Mas muitas das tarefas mais árduas acabam por ser essenciais ao desenvolvimento das nossas faculdades críticas, e até de uma capacidade de transformar o mundo. Por outro lado, se as máquinas ocupam essas funções, ao sermos substituídos vemo-nos encerrados num devir-máquina, ou seja, a adaptação do homem para se sujeitar aos critérios da máquina. Isto significa que, ao mesmo tempo que se liberta o homem das funções ingratas, este condena-se não há posição de um mestre, mas de um inábil, passando a ser uma espécie de substrato da realidade para exploração robótica, ou seja, escravos que se veem dominados pelos processos da máquina. Se a máquina tem uma função definida, o que fica de fora é o desconhecido, o acidente, que passa a ser intolerável. Por não corresponder à expectativa é ignorado. Ou seja, é uma luta entre a humanidade, que sempre teve esse desejo pelo desconhecido e a possibilidade de conquistar um outro planalto, um ponto já não de evolução mas de devolução. Tudo apenas se expande para que as periferias sejam engolidas pelo centro. Neste sentido, gostava de lhe perguntar o que é que mais o preocupa no desaparecimento da experiência sensorial, ou seja, dos elementos que nos dão a textura da própria realidade, e face a esta substituição, virtualização ou transferência, quase como se nos estivéssemos a adaptar a um mundo invertido, uma miragem que apenas nos coloca diante de sínteses. Degradada, frágil, em que o que se perde é precisamente a experiência, o elemento em nós que investiga a estranheza.
Nos últimos tempos temos vivido processos muito interessantes e muito preocupantes ao nível de transformação dos comportamentos. O facto de os aparelhos se terem tornado próteses do nosso corpo, extensões dos nossos membros. Hoje em dia, se perdermos o telemóvel, ficamos nervosos, mesmo que não estejamos à espera de uma chamada. E mesmo que não seja muito importante tê-lo à mão nesse momento…

Diz no livro que a relação que mantemos com os telemóveis é uma relação de amor, segundo a atividade neurológica que tem sido registada.
Isso mesmo. Portanto, há uma relação de dependência muito semelhante à do amor, que em certos casos é uma relação neurótica, porque não é um amor correspondido, é um amor por um aparelho que conhece a nossa vida íntima, porque ninguém sabe mais sobre nós do que o nosso telemóvel. Ora, esta primeira função da prótese parece-me preocupante. Outro problema que temos tido é a automatização da vida social. Hoje em dia, quando temos de ir a uma empresa, a um gabinete governamental, muitas vezes temos de fazer tudo online. Temos de o fazer com máquinas. Não há uma pessoa para nos ajudar. Não há critérios. Somos todos diferentes e não reagimos necessariamente da mesma forma aos formulários eletrónicos. Mas perdemos esse valor comunitário de resolver as coisas em conjunto. Cada um se vê empurrado, obrigado a resolver tudo sozinho. Por isso, a automatização isolou-nos muito. Por exemplo, se falarmos com uma empresa e esperarmos que uma pessoa nos atenda o telefone, podemos passar meia hora a ser transferidos de um robô para outro robô, e isto leva-nos à sensação de estarmos mergulhados num pesadelo pós-humano, em que mergulhamos num buraco na Web e ficamos logo apreensivos quando nos pedem para assinalarmos uma caixa que diz “não sou um robô”. Este é o título do meu livro porque pertencemos à primeira geração que tem de provar que ainda é humana. O paradoxo é que a prova é feita perante um robô. É a máquina que nos reconhece como humanos. Depois vem esta trama ainda se torna mais aflitiva se pensarmos nesse aspeto da substituição. Ou seja, passamos da tecnologia como prótese, do vício e do amor pela tecnologia, da automatização das relações sociais para a possível substituição dos seres humanos e, muitas vezes, o que se diz é que o problema não são os robôs, são os seus mestres. Mas quem controla Elon Musk, Mark Zuckerberg ou Jeff Bezos? Os mestres dos robôs respondem perante quem? Não nos organizámos. Não existe legislação internacional para proteção contra o tráfico de dados pessoais. Não existe uma polícia cibernética que nos ajude realmente com todas as fraudes que estão a ocorrer nas redes. Muitas das mensagens que recebemos são tentativas de phishing. São tentativas de tirar partido dos nossos dados para nos roubarem dinheiro. Portanto, neste mundo, penso que é muito importante ver como a nossa relação com o tecnopólio, como lhe chamou Neil Postman na segunda metade do século passado, é uma condição hegemónica e que nos domina, e está longe ainda de se saber aonde nos irá levar. Devemos, por isso, indagar quais as formas de resistência que podemos organizar. A mim parece-me que, do ponto de vista intelectual, essa resistência passa pela ressignificação do humano, pelo pensar sobre o que é, o que é devemos preservar de nós mesmos. E creio que essa batalha deve ser travada no campo da cultura.

Nalgumas das investigações que têm sido feitas pelo The New York Times e outros jornais tem-se revelado como os cartéis mexicanos já extraem, hoje, mais receitas das fraudes na Internet do que do narcotráfico. Desse ponto de vista, vivendo no México, andando entre lá e a Europa, entre outros lugares, num momento em que muitos veem o seu país como uma imagem do futuro, um lugar sem lei, uma realidade tão complexa e em que nada parece ser certo (às tantas diz que é mais perigoso investigar a morte de um jornalista do que matá-lo…), gostava de perceber que leitura é que faz destes elementos de integração deste território sem lei do mundo virtual com essa violência que determina a vida no México.
O México é um país que está a passar por uma situação muito contraditória, porque, por um lado, está parcialmente tomado pelos narcotraficantes, e podemos dizer que 30% do país está nas mãos destes, estando infiltrados na economia, na política, na religião, em todas as instituições sociais. Nas últimas eleições, mais de 40 candidatos a cargos eletivos foram assassinados pelo crime organizado. Por outras palavras, temos eleições onde as balas votam, e isso é terrível. A violência é real. Temos mais de 130 mil desaparecidos, o que é um número próprio de uma guerra civil. E esta é uma questão difícil de resolver, desde logo porque partilhamos a fronteira mais atravessada do mundo com os EUA, que é o principal consumidor de drogas e o principal vendedor de armas do planeta. Trata-se, portanto, de um problema bilateral, não apenas mexicano, mas de uma situação crítica do ponto de vista da violência. Ao mesmo tempo, temos uma sociedade muito ativa, criativa, solidária, com gosto pela festa, pela cerimónia que improvisa a vida e continua a resistir. Digamos que as imagens dos dois extremos da vida mexicana seriam, por um lado, o Apocalipse e, por outro, o Carnaval. E o mais estranho é que às vezes ocorrem em simultâneo, o Carnaval no Apocalipse, ou seja, há mortes e ao mesmo tempo há festa. É uma situação muito complexa, e o país tem sofrido uma enorme devastação, mas acredito nas redes de resistência, nos atos solidários, nas pessoas que todos os dias mostram que o México é o país do inesperado. No México tudo nos pode surpreender, se o inesperado é tantas vezes mau, outras é positivo. Ou seja, é um país onde a realidade é improvisada todos os dias e não sabemos bem para onde vai, mas há estas energias de transformação, de improvisação que são encorajadoras. Neste momento, inclusivamente, temos uma presidente que é uma pessoa muito capaz, mas que tem um desafio enorme pela frente.

 E o desafio de lidar com Trump, que é uma figura que corrói os pressupostos, sendo um acelerador da história, e em sentidos tão contraditórios… Que vizinhança é esta que vos faz os EUA?
A única vantagem de Trump é que os mexicanos já têm anticorpos contra as políticas dos EUA. Porquê? Percorremos um longo caminho em relação a eles desde 1847. Ainda não há muito tempo, perdemos 55% do nosso território para uma invasão norte-americana. Atualmente, a invasão russa da Ucrânia é criticada, e com razão, mas os EUA tomaram 55% do nosso território há um século e meio. Desde então, temos tido uma relação complexa e houve políticos que tiveram uma retórica progressista e liberal interessante, como Barack Obama, ao mesmo tempo que deportava 3,3 milhões de mexicanos, muitos deles crianças não acompanhadas. Obama é o presidente que deportou mais mexicanos. Por isso, ele era o rosto sorridente por trás da mesma política que Trump está agora a exercer brutalmente. Assim, é algo a que estamos habituados. E penso que a nossa presidente está a saber reagir bem às tropelias dele. Ao mesmo tempo, houve efeitos colaterais positivos, porque, se um dos chavões de Trump, que ele exagera e distorce, é a cumplicidade do governo mexicano com o narcotráfico, isso só é parcialmente verdade. O governo mexicano tem de fazer um esforço maior de aprofundar o seu conhecimento sobre estas redes de tráfico, e Claudia Sheinbaum, a nossa presidente, tem-no feito, mas há um défice na política interna do México em relação a esse problema e, nesse sentido, e apenas nesse sentido, a presença de Trump ajuda a organizar a casa por dentro.

Há um momento particularmente forte no seu livro [Não Sou um Robô] em que nos fala dos hikikomori, que compara à figura do samurai e dá a entender que há algo de virtuoso na atitude destas pessoas que se retiram do mundo, num corte e numa rejeição muito categórica deste, nessa sua subtração a uma realidade que se tornou banal, onde os caracteres da épica estão de todo ausentes. Aproxima, assim, a alienação de alguns nativos digitais à postura do monge encerrado num templo, indiferente ao mundo terreno. Porque, no fundo, ao mesmo tempo que se fala contra o digital, dá-se a entender que a realidade é algo de irrecusável, de imensamente cativante. Mas é-o cada vez para menos pessoas. Para a maioria, a experiência no mundo real é cada vez mais uma experiência de violência, de degradação e de servidão. Num momento em que o sistema económico se atravessou em tudo, impondo o quadro da competição e da luta ou o elemento transacional nas nossas interações, e que tudo passou a funcionar para promover a desigualdade, parece-me que essa sua forma de resgatar os hikikomori, vendo na postura deles uma rejeição visceral e, ao mesmo tempo, ascética, é uma perspetiva muitíssimo poderosa.
Tenho uma filha de 25 anos e queixo-me muitas vezes de que a minha relação com ela é inteiramente mediada pela tecnologia; falo com ela e não me responde, mas mando-lhe um whatsapp e, por essa via, já me dá retorno. E ela responde-me isso mesmo, diz-me: “Pai, porque é que queres que eu esteja na realidade? Vê como é o mundo para o qual me trouxeste?” Em certo sentido ela culpa-me por a ter trazido para uma realidade horrível. E tem razão. Na minha geração, costumávamos agradecer aos nossos pais por nos terem dado a vida. Agora temos de pedir desculpa por termos dado a vida num planeta que está à beira do colapso. A natureza sobreviverá sem nós, quase se poderia dizer que anseia por se livrar de nós, mas nós lamentamos por tudo o que nos diz que a nossa espécie está em risco. Por isso, de facto, é perfeitamente compreensível que os jovens queiram evadir-se para uma realidade paralela que seja, pelo menos, mais divertida do que a que têm nas ruas. Assim, podem estar num transe no TikTok e a ouvir reggaeton, e mesmo que essas não nos pareçam ser as formas mais elevadas de cultura, trata-se de uma espécie de anestesia contemporânea, uma espécie de ansiolítico contemporâneo face a uma realidade que não lhes dá trabalho nem estímulos, que é insegura, que é martirizante. Portanto, o que estamos a tentar fazer não é apenas controlar a sobredeterminação da tecnologia, mas também melhorar a realidade que existe na terceira dimensão para que se torne um mundo mais habitável. Aqui, na Península Ibérica, acabámos de passar por um apagão sem precedentes. Eu estava em Madrid e, no início, houve uma onda de alarme quanto ao que poderia estar a acontecer, suspeitando-se de um ciberataque russo. Em suma, instalou-se a paranoia. Houve também desgraças reais de pessoas que ficaram presas nos metros, nos elevadores, etc. Mas uma vez superados ou contornados estes problemas, as pessoas recuperaram um dia que me pareceu extraordinário, porque as vimos juntarem-se nas ruas para ouvir rádio, partilhar as notícias e discuti-las. Nos parques, os livros tiveram um dia em grande, as pessoas conversavam com quem tinham diante de si, jogavam às cartas, faziam exercício. É possível um outro mundo paralelo. É um mundo analógico, que neste momento está sufocado debaixo do digital. Mas não basta dizer que a solução passa por desligar os aparelhos, porque as pessoas procuram estar junto umas das outras, e há uma promessa ou até uma coação constante para a conexão digital. Por isso, o que temos de criar é um mundo analógico que seja suficientemente atrativo para que os jovens desliguem o computador e prefiram passar ali períodos cada vez mais longos. Há um desejo de uma espécie de intervalo, de períodos de apagão, nem que seja para sermos sacudidos do estupor que este universo digital produz. Se aquelas oito ou dez horas foram importantes, e tanta gente manifestou essa espécie de alívio, por ter sido libertada das obrigações e do acosso que este mundo gera, depois seguimos como se nada fosse, porque o ser humano é especialista em alhear-se das lições que recebe.

Desse ponto de vista, parece haver uma possibilidade de a libido reemergir, e o que se coloca como obstáculo é esse devir máquina. Ou seja, a tecnologia parece estar a dar cabo do desejo, dar cabo da imaginação, suplantando-a, impondo-se a ela. Don DeLillo diz-nos que o escritor perdeu protagonismo para o terrorista, pela capacidade deste de abalar conceções, fazer estremecer a realidade. O apagão foi uma coisa acidental. Se nos fosse dado mais tempo para contrariar o atual estado de coisas talvez, então, pudessem emergir dessa consciência propostas para nos furtarmos ao enredo das tecnologias, e para haver margem para o reforço da libido e a reunião, uma espécie de prática conspirativa. Às tantas cita Walter Benjamin quando este nos diz que cada documento de cultura é também um documento de barbárie… Ora, o excesso de cultura nos nossos dias tende a tornar-se uma condição de impotência. As pessoas simplesmente decidem não fazer nada. E isto quando parece que a única forma de resistir ao avanço das máquinas seria um ataque deliberado a estes sistemas que estão a lançar-nos nesse limbo.
Sim, há muitas reações, muitas delas extremas, mas compreensivas, mesmo se autodestrutivas. Como a de Luigi Mangione, por exemplo. Todos estamos fartos de seguros de saúde que exploram os clientes e não cumprem as suas obrigações. Mas, obviamente, a solução não é o assassinato de um diretor de uma empresa. Agora, a questão para mim é como criar alternativas. Existe a não-conformidade, mas como criar alternativas produtivas? E obviamente parece-me que uma das mais importantes é a cultura, porque a cultura é um reservatório de sensualidade, de hedonismo, de contacto com os outros. O teatro e a dança têm muito a ver com cerimónias, rituais e encontros presenciais. Experimentámos isso durante a pandemia, quando não podíamos ir ao teatro e, de repente, dois anos depois, voltámos. O simples facto de estarmos juntos numa sala para ver um espetáculo chegou a ser arrebatador, fomos lembrados do quanto nos comove estarmos juntos, mesmo entre estranhos. Por isso, o que precisamos é de potenciar alternativas socialmente válidas para contrariar o domínio tecnológico. Se alguém não tem melhor alternativa do que passar os dias em frente ao ecrã, sabemos já onde isso nos leva. É o mesmo que acontece no México com narcotráfico. Se um rapaz não tem alternativas desportivas, culturais, religiosas, educativas, a sua melhor opção será tentar ganhar dinheiro como passador ou até como sicário. Para mim, esse é o segredo da capacidade de ultrapassar o domínio tecnológico, não apenas na crítica e no inconformismo com a tecnologia ou na rejeição pura e simples, mas na criação de alternativas.

Falou numa espécie de hedonismo cultural, mas no nosso país, com a erosão dos hábitos de leitura, e com todas as campanhas e promoções do livro, também tem vindo a surgir uma espécie de onanismo cultural. Ou seja, nas últimas décadas também se tem feito passar a ideia de que os livros e a leitura, seja de que modo for, essa defesa deste objeto independentemente dos seus méritos específicos, se tornou a solução para tudo, uma espécie de panaceia. Ora, confrontados com anos de políticas áulicas que servem a todo esse tráfico a favor dos egos de uns tantos, como a proliferação dos eventos à volta dos livros e toda a obesidade editorial, muitas vezes a sensação que dá é que tudo se perde, e que apenas se criou mais um espaço para a complacência de uns quantos que andam em romaria, fazem os seus discursos uns para os outros, se enaltecem e aos seus leitores por lerem os tais livros, e com isso apenas se constrói mais um regime anémico. De resto, e trabalhando como jornalista, sabe como hoje abundam os diagnósticos, e há uma série de autores que vivem de traçar grandes cenários, figuras célebres como Yuval Noah Harari e Byung-Chul Han, os especialistas das crises, desses conceitos rebarbativos. E às tantas um gajo diz: porra, mas esta gente da cultura só sabe enredar-nos em diagnósticos, mas parecem ir a todas, tornou-se tudo muito cerimonial, e não apenas parecem alimentar a convicção de que não há propriamente uma saída. Isto ao mesmo tempo que, politicamente, as figuras que assumem protagonismo são cada vez mais rematadamente ignorantes e estúpidas. Ou seja, a cultura acaba por ser uma forma de se retirar para um lugar confortável em que estes autores parecem enamorados dos seus poderes de análise. Mas nunca assumem propriamente causas nem se tornam atores decisivos. Enquanto isso, nos últimos 30, 40 anos, o discurso crítico e à volta da literatura degradou-se imensamente. Mas não faltam pessoas que continuam a falar nos livros como um antídoto, quando, na verdade, este se parece cada vez mais com um placebo.
Bem, há muitas camadas nessa análise, o que não a torna menos interessante. Marx disse na última tese sobre Feuerbach que os filósofos se limitam a interpretar o mundo de maneiras diferentes, e no entanto, o que é preciso é transformá-lo. Esta frase serve como seu epitáfio no cemitério de Highgate, em Londres. Por outras palavras, ele está a dizer que não basta interpretar a realidade, é preciso transformá-la. Voltemos ao primeiro ponto que referiu. De facto, tenho escrito muito sobre livros. Escrevi livros sobre livros e também tive a sensação de estar numa bolha, numa elite onde discutimos os nossos autores preferidos, Robert Louis Stevenson, Vladimir Nabokov, Jorge Luis Borges, etc., o que acho muito produtivo. Mas também senti a necessidade de sair desta esfera, desta zona de conforto de discussão intelectual, para tentar questionar o meu tempo de outra forma. E foi por isso que escrevi Não Sou um Robô. Como referiu, trata-se de um livro que assume essa forma que, em certos aspetos, espelha a modernidade tecnológica: textos curtos, um entramado de muitas referências, um pouco como um hipertexto que se gera ao ritmo daquilo que lemos hoje em dia entre o ecrã e o livro. Portanto, esta é uma forma de sair desta concha e tentar tocar noutras realidades. Mas isso também não muda o mundo, nem o transforma. Seria muito ingénuo pensar que este diagnóstico vai transformar a realidade, ou sequer que as pessoas se possam alcançar um esclarecimento definitivo ao ler um livro. Poderá tocar algumas pessoas? Espero que sim, e que as faça pensar de forma diferente. Mas o exercício de transformação é político e coletivo. Na próxima semana, quando voltar ao México, tenho de estar no Senado porque há uma iniciativa de direito tecnológico e pediram-me para intervir porque escrevi este livro. É aí que as coisas começam a mudar. Mas nem todos os intelectuais são obrigados a juntar-se à luta política. É uma escolha pessoal, uma questão de ética individual. Mas creio que devemos fazer a transformação mais numa arena política, ou seja, passar do jornalismo e da literatura para a ação política. Faço parte de um coletivo que apoia os povos indígenas no México. Tentámos lançar a candidatura de uma mulher indígena à presidência. Não conseguimos, mas temos essa luta paralela à dominação tecnológica. Porque o Instituto Eleitoral Mexicano pediu que as assinaturas dos cidadãos para um candidato independente fossem dadas num telemóvel de gama média. Por outras palavras, estão a pedir aos indígenas que tenham um iPhone para poderem votar no México. Portanto, trata-se de uma medida democrática que faz sentido para a Suécia, não para o México. Havia uma discriminação tecnológica que nos impedia de avançar. Podes dizer-me que isto não passa de bla-bla-blá. Mas a transformação da realidade tem de começar por algum lado. Os livros não mudam tudo, mas podem ajudar a combater a indiferença. Portanto, é um percurso que se faz por etapas.

Para terminar, gostava de saber mais sobre a sua vida literária, ou seja, o que é que o Juan tem escrito para além destes livros. Que autores mexicanos ou sul-americanos e que nós não conhecemos é que nos incitaria a descobrirmos?
Sou um autor muito disperso porque escrevo em diferentes géneros. Acabo de terminar um romance para jovens, ligado à descoberta da música e da arte para parar, para encontrar mensagens secretas na nossa própria vida. Estou a fazer uma peça de teatro que tem a ver com a guerrilha urbana no México nos anos 70 e com a psicanálise. Está a ser publicada como uma espécie de folhetim na Argentina, na revista Orsai. E quanto aos escritores mexicanos, recomendo vivamente romancistas como David Toscana, Enrique Serna, Fabio Morábito, que é de ascendência italiana, mas escreve no México. Na Argentina, Mariana Enríquez. Gosto muito de uma jovem escritora mexicana, Aura García-Junco. Há uma grande proliferação de escritores na América Latina, muito ricos na crónica, como Martín Caparrós e Leila Guerriero, ambos da Argentina. Acho que são imbatíveis. É preciso prestar atenção a Benjamín Labatut, escritor chileno que mergulha na ciência e na neurose relacionada com a ciência. A equatoriana Mónica Ojeda… Em suma, acho que estamos num momento muito bom para a literatura latino-americana. O que acontece é que há uma grande dispersão.

 A morte de Vargas Llosa significou de certo uma leitura do testamento da geração do Boom latino-americano… Em que ponto é que lhe parece que está esse diálogo entre a literatura latino-americana e o mundo?
Quando eu era jovem, a geração do boom era a geração dominante. E era uma geração muito mediática, também muito ligada às discussões políticas e a discussão sobre os grandes caudilhos que marcaram as formas de repressão no século passado. A verdade é que me interessam mais os autores anteriores o Boom, como Borges, Rulfo, Onetti, Bioy Casares, Silvina Ocampo… Talvez com a exceção de García Márquez, que é o que mais me interessou, sobretudo pela sua faceta jornalística e pela combinação de jornalismo e ficção em romances como Crónica de uma Morte Anunciada, que eu acho extraordinário.  Mas a visão do escritor como uma espécie de oráculo que fala sobre todos os assuntos possíveis, como Carlos Fuentes ou Vargas Llosa foram, por vezes, acho pouco interessante. Acho que o escritor deveria operar mais a partir da dúvida, da autocrítica, não se levar tão a sério, e exercitar o humor, que é algo que está praticamente ausente da geração do boom, exceto no caso das crónicas de García Márquez. Então, acho que a figura do escritor hoje é mais saudável na medida em que não busca afirmar-se e fazer campanha para se tornar presidente de um país, não busca interpretar a realidade como um todo, mas ser testemunha e não protagonista.