Conto da vida real: ‘O João e a Maria votaram no Chega’

Desde a troika que nunca mais foram os mesmos. A sova do Pedro, a emigração da Vanessa e as dificuldades com os pais deixaram-nos menos doces…

O João nasceu onde quase todos os lisboetas nasciam, na maternidade Alfredo da Costa, em 1973, vésperas da revolução. Cresceu em Santo António dos Cavaleiros, filho de alentejanos de Beja, que vieram para Lisboa na década de 1960. O pai era trolha, a mãe trabalhava a dias. A Maria conheceu o João na escola. Eram quase vizinhos. Filha de pais da Beira Baixa, operários, nasceu na mesma maternidade, em 1975.

Ambos terminaram o 12.° ano, ela primeiro, ele nas novas oportunidades. Vivem nas Mercês, em Sintra. Compraram um T3 em 1998, quando nasceu a filha mais nova, a Vanessa. O T2 em Odivelas, era já pequeno para a família que crescera. O filho mais velho, o Pedro, nasceu em 1996, um ano depois de se casarem. A mudança de casa deu-se porque o João começou a trabalhar numa empresa de logística no Cacém. A Maria iria de transportes até Lisboa, sede da empresa de produtos farmacêuticos onde trabalha, desde que terminou o liceu.

Quando foram para as Mercês era uma zona nova. Quem diria que o urbanizador não terminaria nunca os passeios e que as garagens não seriam suficientes para tantos carros. Já para não falar das pessoas. Primeiro eram os ‘pretos’, depois os ‘ucranianos’ (que desapareceram), agora vieram os ‘monhés’, os ‘ramallas’ e os ‘zucas’. Tirando estes últimos, mal se ouve português. Os ‘pretos’ ainda assim eram os menos maus, percebemos o que dizem, são próximos e partilhamos a mesma religião. Os ‘zucas’ igual, mas são muitos. Já são demais!

Jardins nunca houve. A escola dos miúdos tinha mais de 30 alunos por sala, médico de família não têm há mais de 15 anos.

Ainda assim, a muito sacrifício, o Pedro licenciou-se em História e a Vanessa em Enfermagem. O Pedro, coitado, é professor. Foi assaltado duas vezes no comboio durante o tempo em que ia para a faculdade. Quando crescia era um rapaz tolerante. Depois da sova que levou no segundo assalto, nunca mais foi o mesmo. Tornou-se mais fechado e começou a falar de patriotismo e nacionalismo. Parece que veio do tempo da ‘outra senhora’. Parece que já nem conhecemos o nosso filho.

A Vanessa é uma menina doce. Quem dera aos pais poder estar com ela. Emigrou para Inglaterra há 4 anos. Aqui ganhava muito mal. Menos que os pais.

O João e a Maria ainda têm ambos os pais vivos. O João ganha 1300 euros líquidos, a Maria 1100. Ganham o mesmo há quase 20 anos. Depois de terem criado os filhos, agora ajudam os pais, com o nada que sobra.

Durante muitos anos votaram PS. O João ao início votava PCP, a costela alentejana falava mais alto. Mas a Maria, mais moderada, levou o marido para o PS.

Desde a troika que nunca mais foram os mesmos. A sova do Pedro, a emigração da Vanessa e as dificuldades com os pais deixaram-nos menos doces. Estão mais amargos, às vezes zangados. Nada funciona e ninguém ouve. Em 2011 ainda votaram no Passos Coelho, o Sócrates tinha levado o país à falência, mas o Passos mandou emigrar e a Vanessa foi.

Ainda acreditaram no Costa, foi nele que votaram em 2015 e 2019. Há muitos anos que esperam soluções.

Vêm os garotos que protestam contra as alterações climáticas. Até lhes dão alguma razão, mas e o pão, o médico de família e os passeios à porta do nosso prédio? O lar dos nossos pais? E o que vai ser de nós, quando formos nós os velhos?

Sentem-se abandonados por quem governa. ‘Isto é tudo uma corja. Anda tudo a roubar!’.

‘Este Ventura é um tretas’, é o que dizem quando falam com os amigos: ‘andou metido no PSD’. O João tem um colega que foi da Junta da Estrela e sabe que o Ventura andava lá metido, com um tal de Sérgio Azevedo. ‘Foi um ‘tutti-frutti’ que mudou de camisa’. ‘Ele é um oportunista, mas também não temos em quem votar’.

O João e a Maria votaram no Chega.