1.Em 1215, um rei inglês foi obrigado a assinar um documento em latim que não compreendia bem, que proibia pontes com portagens sobre o rio Tamisa e isentava de impostos as heranças, exceto se estas incluíssem falcões. Fora as bizarrices históricas, este documento lançou o alicerce das constituições modernas e é um dos motivos pelos quais podemos hoje discutir a revisão da Constituição da República Portuguesa.
O documento de 63 cláusulas impunha severas restrições a João I de Inglaterra, rei que reinava quando os reis ainda se achavam ungidos por Deus para comandarem os povos. A Magna Carta foi uma posição da aristocracia inglesa com vários propósitos, mas com um muito em particular: limitar o poder (real).
Mas o documento ia mais longe do que limitar o poder do rei: limitava também o poder judicial das cortes, assegurando que nenhum homem livre poderia ser preso, exilado ou privado dos seus bens sem julgamento justo; e criava um conselho de barões que superintendia a ação régia – um antecedente primitivo do que viria a ser a Câmara dos Lordes.
2.A Magna Carta não é, do ponto de vista político ou até jurídico, uma constituição no sentido moderno. Não o é porque não emanava da vontade do povo — fonte de legitimidade democrática e de soberania —, mas sim dos interesses particulares de uma elite aristocrática. Ou seja, não era universal, não corporizava os interesses mais amplos de todos, incluindo servos, camponeses, mulheres ou crianças. Não o era também porque não definia uma arquitetura institucional, um arranjo entre governo, parlamento, tribunais, reguladores e demais instituições, embora concebesse um conselho de barões que de uma forma muito lata é um esboço de um controlo parlamentar.
Por fim, numa perspetiva mais jurídica, a Magna Carta não tinha supremacia jurídica e era circunstancial, ou seja, era tão somente um conjunto de normas impostas que não se sobrepunha às outras leis e que poderia ser revogável, como aliás foi após recurso ao Papa.
No entanto, no espírito da Magna Carta – porque o que discutimos é política e não somente direito – estavam as raízes de importantes princípios que norteiam quase todas, se não mesmo todas, as constituições das democracias liberais modernas. O primeiro é o da limitação do poder. No caso, o poder régio, mas o princípio aplica-se a qualquer fonte de poder. A Magna Carta limitava este poder absoluto do rei. O espírito de uma constituição é também esse: condicionar o exercício do poder não ao arbítrio de uma entidade divina, real ou até de uma maioria democrática, mas à salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias dos indivíduos enquanto entidades únicas e autónomas.
A forma como a Magna Carta é imposta a João I de Inglaterra também evidencia um outro importante princípio constitucional: os direitos dos sujeitos não são concedidos pelo soberano, são anteriores ao próprio. Não são uma concessão, são um direito natural. O rei, ou qualquer outro titular do poder, deve então reconhecê-los.
Esta perspetiva de que existem direitos naturais inalienáveis que pertencem aos indivíduos e que estes devem ser incondicionalmente respeitados pelos titulares do poder colide com a visão daqueles que, como Thomas Hobbes, acreditavam que os direitos e liberdades eram concedidos pelo soberano. Ver os direitos como concessões abre um perigoso precedente: aquilo que o Estado pode dar também pode retirar.
3. Felizmente para todos nós, aquela que é a primeira grande constituição de um regime democrático moderno, a Constituição dos Estados Unidos da América, não reflete esta visão concessional hobbesiana, mas antes a visão da Magna Carta, de direitos que são naturais e antecedem qualquer arquétipo de poder, seja ele monárquico ou republicano.
Mas antes de irmos à constituição americana, é importante referir outro documento seminal – a ‘Bill of Rights’ que resultou a Revolução Gloriosa de 1688. Este documento não nasce do vazio, é uma iteração política da Magna Carta, e dá mais um passo afirmativo no sentido da constituição tal como hoje a conhecemos.
Se na Magna Carta havia surgido um proto-parlamento, de âmbito limitado, para regular e escrutinar o poder real, agora instituía-se uma soberania parlamentar que o rei teria de respeitar. Mais: esta carta impunha o direito a eleições livres, liberdade de expressão no parlamento, proibição de penas cruéis e injustificadas e a proibição de impostos sem autorização parlamentar. Em suma, cria a figura da monarquia sujeita a pesos e contra-pesos, restrições ao exercício desbragado do poder, limitações ao abuso da autoridade — surge a monarquia constitucional.
4. Voltemos então à constituição americana. Entrou em vigor em 1789 e assim permanece até aos dias de hoje. Tal só foi possível porque a visão dos pais fundadores era a de que este documento deveria atravessar – e unir – gerações, pelo que deveria ser tão universal quanto possível e nunca um documento conjuntural. Por este motivo, é uma constituição enxuta, com 7 artigos e 27 emendas, sendo que as dez primeiras plasmam a Bill of Rights – a exigência feita pelos cidadãos e estados americanos ao novo governo federal americano.
Os valores fundacionais da constituição americana, e do próprio país, refletem o contratualismo de John Locke, em que a lei e o contrato social subjacente protege o indivíduo do Estado, em oposição a outras formas contratuais, como de Rousseau, em que o contrato transforma o indivíduo através do Estado; ou de Hobbes, em que o Estado impõe a ordem e concede os direitos. A visão lockeana é simples e clara: a constituição deve ser a definição do arranjo democrático e da arquitetura institucional, mas sobretudo a salvaguarda dos indivíduos perante o Estado.
A Constituição dos EUA é assim um denominador comum com que todos, ou quase todos, concordam, com amplitude suficiente para diferentes arranjos conjunturais, e tão universal e abrangente quanto possível. Mas é mais do que isso. A constituição americana é também um pacto intergeracional que plasma bem a visão societária de outro grande pensador, Edmund Burke: um pacto entre os mortos, os vivos e os que estão por nascer.
5. Creio que por esta altura perdi metade dos leitores e terei maçado a outra metade, mas não é possível ter uma discussão séria sem este preâmbulo. Esta nota introdutória é importante para que possamos alcançar um chão comum no espírito que deve nortear uma constituição: 1) deve proteger os indivíduos do uso arbitrário do poder, consagrando os direitos e liberdades que são seus por natureza; 2) deve definir a arquitetura institucional, assegurando a separação e equilíbrio entre poderes; 3) deve ser um quadro estável e duradouro, que não reflita e até que sobreviva às diferentes conjunturas.
Se isto é o que uma constituição deve ser, então, por exclusão de partes, uma constituição não pode ser «uma arma contra a direita», excrescência de um ex-dirigente de extrema-esquerda. A constituição não é uma arma contra a esquerda ou contra a direita, mas sim um garante dos direitos, liberdades e garantidas de todos – todos – os indivíduos, protegendo-os dos abusos de poder, provenham eles do governo ou de uma maioria. Deve ser universal, nunca sectária ou ideológica.
6. O que finalmente nos remete para a Constituição da República Portuguesa e para a sua revisão. Comecemos pelo início, pelo seu preâmbulo, redigido fruto de um momento histórico – o 25 de Abril – e por atores políticos sujeitos a uma dada conjuntura. No quarto parágrafo surge então o desiderato de «abrir caminho para uma sociedade socialista».
Antes da matéria de facto, a forma. Refutam alguns: o preâmbulo não tem valor jurídico, é letra morta, é um naco meramente histórico. Em política, nenhuma palavra é acessória, inerte ou destituída de significado. Em política, o simbolismo importa. A constituição não é apenas um documento técnico-jurídico; é um documento político que usa o direito como instrumento, da mesma forma que a física usa a matemática. São, portanto, despiciendas as críticas de que o preâmbulo da atual constituição não tem valor jurídico e, por conseguinte, é irrelevante – o seu valor é eminentemente político, não jurídico.
E este simbolismo tem implicações. Primeiro, porque destrói o caráter de universalidade – no sentido de procurar granjear o máximo denominador comum, a mais ampla aceitação – de uma constituição, excluindo aqueles que não se revêm num determinado projeto económico-social ou, mais grave ainda, impondo-lhes uma visão ideológica, violando a sua autonomia, liberdade de pensamento e ação. Escrever rumo ao socialismo é tão errado como seria escrever rumo ao capitalismo. O mandato do povo não lhes outorga tamanha ousadia.
Por outro lado, o simbolismo do preâmbulo tem implicações práticas. A constituição é um documento lido e estudado nas escolas, sendo que os alunos terão de se deparar – os mais críticos com desconfiança, os mais atentos com perplexidade e os restantes com bonomia – com tamanha proclamação.
Perante isto, há vários caminhos possíveis. Um, talvez o mais simples, seria o de suprimir essa frase do preâmbulo. Os críticos desta alteração dirão que é reescrever a história, mas nesse caso os críticos terão de se decidir: ou o preâmbulo é inerte e, portanto, a sua alteração é inócua; ou é mesmo importante, pelo que o seu substrato importa. Não sendo relevante, pode ser suprimido. Se é relevante, então a sua carga ideológica não é despicienda. Seja como for, o preâmbulo pode ser transferido para a Casa do Parlamento como registo histórico do progresso e evolução da constituição, onde poderá jazer. Paz à sua alma.
7. Mas a atual constituição portuguesa vai muito para lá de proclamações ideológicas grandiloquentes e da consagração dos direitos, liberdades e garantias dos indivíduos. É possível nela ainda encontrar autênticas ossadas políticas.
A título de exemplo, veja-se o n.º 2 do Artigo 7.º, que pede «a dissolução de blocos político-militares». Blocos político-militares, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte a que Portugal pertence e que continua a ser um dos garantes da sua soberania num mundo em sobressalto e com ameaças geopolíticas.
Perante isto, das duas, uma: ou a constituição é para ser levada a sério e a saída da NATO e a sua dissolução é um desiderato da República Portuguesa; ou a constituição é uma peça jurídica para ser consumida à la carte. Qualquer uma das opções é má: a primeira é um desastre político; a segunda é uma catástrofe jurídica. Urge resolver.
Outro exemplo igualmente destemperado: a alínea h) do Artigo 81.º, que almeja «eliminar os latifúndios». Desconsideremos o absurdo prático desta medida, que condenaria a agricultura em escala em Portugal, e foquemo-nos no princípio: extravasa mormente aquilo que uma constituição deve ser, confundindo a conjuntura de um dado momento histórico (os excessos do pós-25 de Abril, em particular o Processo Revolucionário em Curso e a reforma agrária) com os alicerces políticos de uma nação soberana.
Finalmente, não exaurindo todos os exemplos abstrusos, a «subordinação do poder económico ao poder político democrático», constante na alínea a) do Artigo 80.º. Tal artigo mistura uma norma constitucional com um programa político, este último que será sempre resultado de uma dada conjuntura, ao contrário do que uma constituição deve ser. A constituição deve garantir um quadro neutro em que uma determinada geração possa, num dado momento, optar pelo programa político que lhe aprouver, desde que em respeito com as normas constitucionais basilares. Ou seja, no limite não deve inviabilizar a dissolução de blocos político-militares, a eliminação de latifúndios ou o forte intervencionismo estatal — mas também não os deve promover.
8. A disposição e a hierarquia das normas constitucionais é também, em si, politicamente relevante. Na sua redação atual, os direitos de propriedade estão relegados para o capítulo «Direitos e deveres económicos, sociais e culturais», quando devem constar do capítulo 2.º, «Direitos, liberdades e garantias».
Isto é importante por dois motivos: primeiro, porque reconhece que a propriedade é condição para exercer os demais direitos, em particular a liberdade; segundo, confere legitimidade acrescida a um combate rápido e eficaz a tentativas de violar esse direito, como é o caso das ocupações ilegítimas de imóveis, vulgo ‘okupas’. Ao elevar a propriedade ao estatuto dos direitos, liberdades e garantias, o Estado fica constitucionalmente obrigado a agir rapidamente, sendo juridicamente inadmissível qualquer complacência perante a ocupação ilegal. Não resolve o problema per se, mas deixa claro que é para ser resolvido.
9. Muito mais haveria a acrescentar, desde o caráter demasiado prescritivo na Saúde e na Educação, em que, para além de consagrar o direito, a constituição parece impor – em bom rigor não sabemos, o texto não é suficientemente claro – a prestação pública (novamente, a forma de organização é uma decisão conjuntural); ou a nomeação política de entidades que se querem independentes, como os reguladores (como assegurar independência quando existe dependência política?); ou até reforçar a importância da proporcionalidade no sistema eleitoral, abrindo caminho para o círculo de compensação (que não requer alterações à atual redação, mas que beneficiaria do seu aclaramento).
Enfim, essa é matéria para a própria revisão constitucional, sendo que o exercício que aqui me dispus a fazer era o de enunciar o espírito que deve nortear esse processo. E o espírito é este: elaborar um documento que granjeie a máxima aceitação e abrangência, subordinando o Estado ao indivíduo e nunca o seu contrário, e evitando formulações conjunturais ou programáticas.
No fundo, teremos de ser capazes de restituir o caráter, seja mais personalista ou mais individualista, da centralidade da pessoa humana. Recordando Lucas Pires, «Ao princípio não era o Estado mas o Homem – ‘era’ o Homem, o espírito e o barro… É esta uma verdade em função da qual será o Estado a ter de se humanizar – não o Homem quem tem de se estadualizar».
A constituição não é uma trincheira ideológica: é o alicerce comum de uma nação livre. Se a quisermos duradoura, temos de a construir para todos, não apenas para alguns. Que a revisão constitucional seja uma oportunidade para repor no centro aquilo que é mais importante: o cidadão. Não são as pessoas que existem em função do Estado, é o Estado que existe em função das pessoas, e a constituição deve refletir isso.
Deputado da Iniciativa Liberal