Lei dos Solos: Alterações para aumentar oferta

É uma exigência antiga dos autarcas, o Governo mudou e Marcelo Rebelo de Sousa aprovou. Mas nem todos estão de acordo com as alterações à legislação e alertam para riscos.

A alteração à Lei dos Solos que causou fortes polémicas e até baixas do Governo – o ex-secretário de Estado, Hernâni Dias, acabou por pedir a demissão na sequência do escândalo de alegado conflito de interesses por ter criado duas empresas que pudessem vir a beneficiar desta alteração legislativa, na qual ele próprio participou – já entrou em vigor, depois de o Presidente da República ter promulgado o decreto, após alterações no Parlamento. É certo que o chefe de Estado deixou alguns reparos quanto a estas modificações.

De acordo com Marcelo Rebelo de Sousa, o diploma mantém «derrogações ao regime geral e de matérias que aflora sobre combate à corrupção carecerem de maior substância e desenvolvimento». No entanto, esclareceu que deu luz verde «atendendo às profundas alterações introduzidas por iniciativa do Partido Socialista, com apoio do Partido Social Democrata, que afastam objeções suscitadas sobre o diploma anterior».

Mas ainda antes de aprovar, o Presidente da República chegou a questionar quem era o autarca que se sentia «muito à vontade para tomar decisões sobre a utilização dos solos, na sua autarquia, no município, na assembleia municipal, a meses da realização de eleições autárquicas».

Entre as principais propostas de alteração aprovadas está a substituição do conceito de habitação de ‘valor moderado’ – utilizado pelo Governo – por ‘arrendamento acessível’ ou ‘a custos controlados’. Outra das mudanças diz respeito ao facto de que para requalificar o terreno terá de comunicar à câmara municipal se a propriedade rústica tem potencial para vir a ser um espaço de construção. No entanto, as autarquias só o podem permitir se a reclassificação de solos rústicos em urbanos tiver como finalidade construção habitacional e que um mínimo de 70% da área total de construção será destinada a habitação pública, arrendamento acessível ou habitação a custos controlados.

Fonte ligada ao processo recorda ao Nascer do SOL que «a Lei está totalmente em vigor com as alterações que foram introduzidas na Assembleia da República, daí fazer sentido que o Presidente da República tenha promulgado», recordando, no entanto, que o poder de decisão cabe sempre às câmaras municipais.

«O Plano Diretor Municipal [PDM] estabelece quais são os terrenos urbanos e quais são os rústicos. Dentro dos rústicos, os terrenos podem pertencer à RAN [Reserva Agrícola Nacional], à REN [Reserva Ecológica Nacional] ou à área florestal e se até aqui só se podia construir nos terrenos urbanos com esta lei é permitido fazer uma revisão expedita do PDM por parte da Câmara e da Assembleia Municipal, de forma a permitir que em terrenos rústicos possam ser construída habitação que tem de respeitar critérios: as casas têm de ser vendidas a preços máximos e 70% tem de respeitar o regime de rendas controladas ou de renda acessível».

A ideia, segundo a mesma fonte é simples: «Ao se construir em terrenos mais baratos iremos automaticamente assistir a uma diminuição do preço, o que será vantajoso para o comprador da casa e não para o promotor imobiliário», referindo que «o que torna as casas caras é o terreno onde são construídas, já que o cimento, as portas, o ferro, o aço e os vidros têm praticamente o mesmo preço em Oeiras ou em Cascais como em Mirandela ou na Lousã».
E não hesita: «O que distingue o preço das casas é o terreno, não é o valor da construção, logo se aumentarmos a oferta de terrenos estamos a fazer baixar o preço dos terrenos e consequentemente o preço das casas».

Mas apesar de reconhecer que esta alteração à Lei dos Solos não irá resolver o problema da habitação admite que irá contribuir para atenuar. «Não é a solução para todos os males, mas vai ajudar a resolver, isso não tenho dúvidas, até porque vários presidentes de Câmara têm vindo a referir que vão utilizar esta alteração à legislação para aumentar a oferta de terrenos para a construção, o que naturalmente irá contribuir para baixar os preços» e para evitar desagradáveis surpresas por parte das autarquias «por cautela estão fixados os preços máximos das casas que irão ser construídas nesses terrenos e que estarão abaixo do preço do mercado atual», salienta ao nosso jornal.

Ajuda mas não resolve problema
Ao Nascer do SOL, o presidente da Câmara de Oeiras já veio reconhecer que esta alteração à Lei dos Solos pode dar uma ajuda mas não irá resolver o problema da crise da habitação. «Disse há 12 anos que se não houvesse uma mudança política ia haver barracas, outra vez. E esta Lei dos Solos com os moldes em que o regime foi alterado não resolve o problema». E dá exemplos: «Para afetar, por hipótese, 20 hectares de reconversão do terreno rústico para solo urbano temos de ter uns 100 hectares, porque nuns casos é reserva ecológica, noutros é reserva agrícola classe A e B, etc. Esta alteração da lei permite, realmente, a reconversão do terreno rústico para solo urbano, mas só permite para arrendamento acessível. Não permite, por exemplo, habitação pública para venda».

Isaltino Morais recorda que, em Oeiras, em 2012, comprava prédios degradados por 400 euros o metro quadrado de potencial construtivo e atualmente custa quatro vezes mais: 1.600 euros e justifica esta subida com o desaparecimento de solos urbanizáveis. «Quando se faz uma lei restritiva depois é muito difícil de alterar e quem alterar e volte a criar solos urbanizáveis vão dizer que é um negacionista das alterações climáticas. Quando debaixo das pontes estiver tudo cheio de tendas e barracas já é tarde».

Posições contrárias
Alterações que não convencem, no entanto, Helena Roseta, uma das subscritoras de uma carta aberta que chegou a ser enviada ao Governo contra estas alterações. «O mal está feito. Estamos a tentar endireitar a sombra de uma vara torta. É um controle de danos. Trata-se de um mal menor e ficou menos mal do que estava. Tirou-se o valor moderado que claramente servia para inflacionar os preços, fizeram-se mais umas pequenas alterações, mas são pequenas salvaguardas, protegeu-se um bocadinho melhor da Reserva Ecológica Nacional, mas não da Reserva Agrícola Nacional, em que uma parte substancial não fica protegida, o que é mau», referiu ao nosso jornal.

De acordo com Roseta, uma das soluções para resolver o problema passaria por disponibilizar no mercado as mais de 700 mil casas que se encontram vazias em Portugal. «Estamos a falar de casas que não são ocupadas por ninguém, então por que é não se pode fazer medidas para incentivar o seu uso?», pergunta, afirmando que a maior parte desses imóveis é privado e não se encontra localizado apenas em aldeias. «Há também nas grandes cidades. Só em Lisboa há quarenta e tal mil casas vazias, quando os imóveis públicos rondam os 26 mil. Isso é escandaloso quando há tanta a gente a precisar de casa e quando não há medidas para isso, pagam um IMI mais caro, mas nem sempre as câmaras o cobram. É uma medida que não tem sido eficaz. Por isso, é que é necessário avançar com outras soluções».

Também Pedro Bingre do Amaral, presidente da Liga para a Proteção da Natureza (LPN), que assinou a mesma carta aberta chegou a elogiar a redução do preço máximo autorizado para a venda dos imóveis, mas lamentou o resultado final. Ao Nascer do SOL, afirmou que «nada garante que se consiga baixar os preços porque falam numa redução de 25% relativamente à média nacional» e diz que, do ponto de vista estatístico, não fica garantido que os preços fiquem controlados. «Quem garante que um imóvel que seja construído nessas condições não possa depois ser convertido em alojamento local ou ser arrendado?», questiona. E nesse caso, de acordo com o mesmo, na prática vai valorizar o imóvel de seguida, neutralizando os seus efeitos.

Os problemas não ficam por aqui. Segundo Pedro Bingre do Amaral, independentemente do valor bruto do imóvel acredita que vamos continuar a ter um problema porque entende que estas alterações autorizam a construção fora dos atuais perímetros urbanos. «Esta lei inequivocamente vai aumentar a dispersão. Este Governo optou por criar um mecanismo que forçasse a entrada no mercado dos terrenos expectantes em redor das cidades. Não vai resolver rigorosamente nada», salienta.

A par disso, diz também que gostaria de ver, desde que a lei foi foi aprovada a 29 de janeiro até esta revisão, quantos loteamentos já foram aprovados. «Quantos projetos entraram por esta via? E quantos projetos entraram com ligações aos autores da lei? Esta lei tinha sido anunciada em final de novembro. Em início de dezembro, já as agências imobiliárias anunciavam nos seus sites como converter solo rústico em solo urbano. Quem tenha estado bem preparado, no primeiro dia que a lei entrou em vigor pôde pôr os projetos. Se estiver politicamente bem colocado junto da autarquia conseguiu aprovar os seus loteamentos», acusou.

O presidente da Liga para a Proteção da Natureza afasta que haja qualquer consequência na redução de preços e acena com as declarações das próprias agências imobiliárias que já afastaram esse cenário. «O Governo e os seus assessores são os únicos que dizem que vai baixar, não há rigorosamente nenhum consenso a não ser junto de alguns promotores imobiliários que dizem que vai ser muito bom porque vão poder vender terrenos a loteadores a um preço inflacionado», disse.

Baixar preços?
Apesar do argumento do Governo que diz que estas modificações vão contribuir para baixar preços, a Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII) já alertou para os impactos negativos das recentes alterações à Lei dos Solos, discutidas e aprovadas no Parlamento.
Segundo a associação, as mudanças introduzidas podem inviabilizar a aplicabilidade prática da Lei e afastar soluções efetivas para a crise habitacional que se faz sentir no país. «A Lei dos Solos, inicialmente vista pelo setor como uma medida positiva dentro de um pacote mais amplo – que incluía o Simplex e ajustes no IVA da construção – foi alterada de forma significativa, gerando grande preocupação entre os promotores e investidores imobiliários. O que ontem parecia ser um avanço, hoje corre o risco de se tornar uma medida sem impacto real. Com as mudanças propostas no Parlamento, a lei pode perder qualquer efeito prático na dinamização da oferta habitacional», afirmou Hugo Santos Ferreira, presidente da entidade.

E identificou três obstáculos críticos à aplicação da nova Lei dos Solos: «Mais burocracia na reclassificação do solo, regresso ao regime de habitação a custos controlados – a substituição do conceito de ‘habitação de custos moderados’ pelo regime de ‘habitação a custos controlados’ traz desafios adicionais. Este modelo já se revelou burocrático e ineficaz no passado, dificultando a promoção de novos projetos habitacionais – exigências financeiras desajustadas à realidade do setor: a nova exigência de comprovação de viabilidade económica e fontes de financiamento antes mesmo da existência de um projeto concreto cria um entrave adicional. Que banco aprovará um financiamento sem sequer haver um projeto definido?».
De acordo com a APPII, o setor imobiliário «tem sido alvo de críticas injustas e não pode continuar a ser tratado como ‘o vilão’ do problema da habitação», lembrando que representa 15% do valor do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e, apesar de defender que quer ser parte da solução, diz que é essencial que o Parlamento crie condições viáveis para aumentar a oferta habitacional.

Resposta do Governo
Na altura, o Executivo disse que o objetivo da alteração desta lei «é disponibilizar mais terrenos para construção de habitação acessível, especialmente para a classe média, garantindo que o crescimento urbano ocorre de forma ordenada» e que «a nova legislação não compromete a proteção ambiental e agrícola e mantém a decisão sobre a reclassificação dos solos nas mãos dos municípios, assegurando um processo transparente e controlado».

E justificou esta decisão com a crise da habitação em Portugal, que «tem origem, essencialmente, no desequilíbrio entre a crescente procura e a limitada oferta, que tem tornado os preços das casas inacessíveis para a grande maioria dos portugueses» referindo que a «alteração à Lei dos Solos é uma resposta estruturada a este problema, equilibrando o aumento da oferta de terrenos com a necessidade de um crescimento urbano sustentável».

Com estas novas regras, defende, há «o compromisso de tornar a habitação mais acessível, garantindo que os terrenos disponíveis são utilizados de forma equilibrada, sem comprometer a proteção ambiental e sem incentivar a especulação imobiliária».

Raio-x
De acordo com os últimos dados divulgados pelo idealista, Portugal conta com mais de 27 mil terrenos urbanos à venda dispersos por todo o país e é o Porto que tem mais terrenos urbanos para venda (4.403), seguido de Lisboa (4.137), Setúbal (3.045) e Faro (2.437). Só estes quatro distritos reúnem mais de metade da oferta de solos urbanos para comprar no país.

Ao nível das capitais de distrito, a distribuição geográfica da oferta de terrenos urbanos à venda é bem diferente: é em Leiria onde há mais (327), seguida de Coimbra (304) e de Braga (294), mostram os mesmos dados. E é em Beja (19), Évora (38) e na Guarda (41) onde há menos.