Relatos de um pesadelo sem fim na ‘Riviera do Médio Oriente’

A fome leva ao desespero: milhares de palestinianos assaltaram um armazém de comida e dezenas de camiões com ajuda humanitária. No Dia da Criança, a UNICEF afirmou que mais de 50 mil crianças palestinianas poderão ter sido mortas ou feridas desde a ofensiva israelita. Eis a Riviera do Médio Oriente.

Os recortes que nos chegam da realidade de Gaza – imagens, vídeos, relatórios e redes sociais – mostram que no seu horizonte há tons de cinza e preto, pó, fumo, medo. As ruas, ou o que resta delas, estão pintadas agressivamente, diariamente, com explosões atrás de expulsões, bombardeamentos atrás de bombardeamentos, mortos atrás de mortos. Há escombros por todo o lado, e por todo o lado há fragmentos de uma vida passada que, se já era difícil, agora é infernal. A Faixa de Gaza ainda se encontra muito longe de ser uma “Riviera do Médio Oriente”, tal como referiu o Presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, e pelo meio há morte, caos e milhares de crianças palestinianas desnutridas e em risco de vida pela fome extrema e pelas doenças.

Gaza, uma Riviera de destroços

É difícil saber ao pormenor o dia-a-dia dentro da Faixa de Gaza. Israel proibiu qualquer repórter internacional de cobrir a guerra. O Supremo Tribunal israelita adiou em março, pela terceira vez, uma audiência sobre a petição da Associação de Imprensa Estrangeira em Israel e nos Territórios Palestinianos (FPA) para impedir a entrada de jornalistas independentes no enclave. Os que lá se encontram, palestinianos, já poucos, estão a ser mortos. De acordo com os últimos números avançados pelo gabinete de imprensa do Governo de Gaza, sob controlo do Hamas, são ao todo 221, o número de repórteres que morreram no enclave palestiniano, desde o 7 de outubro de 2023. Ao mesmo tempo, Ajith Sunghay, diretor do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (ACNUDH) em Gaza, uma célula da ONU, também dava, no mês de maio, conta de que pelo menos 209 jornalistas perderam a vida desde a ofensiva israelita. Os números de vítimas mortais, feridos e deslocados, que amedrontam qualquer pessoa, são sempre estimativas, os relatos que nos chegam são sempre incompletos, a informação é sempre escassa, quase nunca fiel à realidade de quem lá vive, quase nunca suficiente para reportar ao mundo as histórias e vivências de uma guerra sem fim. Os últimos balanços do Ministério da Saúde, no final de maio, elevam para mais de 53.900 o número de pessoas mortas em Gaza.

Onde está a comida? Onde estão os medicamentos?

No dia 28 de maio, a aflição falou mais alto. Foi um dos momentos mais chocantes dos últimos dias, partilhado nas redes sociais e nos media, que nos dá pistas de como a fome extrema se alastra cada vez mais no enclave: centenas, talvez milhares, de palestinianos invadiram um armazém de alimentos da ONU, localizado no centro de Gaza, em Deir al-Balah. Nos vídeos filmados e partilhados, ouve-se gritos de desespero, vê-se pessoas a quebrarem as paredes de metal da estrutura, e muitos a tentarem entrar para agarrarem no máximo de alimentos possíveis com baldes brancos. No meio da confusão, quatro pessoas morreram: duas foram esmagadas pela multidão em aflição, enquanto as outras duas morreram baleadas, segundo as autoridades hospitalares locais. As Nações Unidas acusam Israel de atingir a tiro a multidão. Mas onde está a comida e a ajuda humanitária para os mais de dois milhões de palestinianos?

Ajuda Humanitária em falta

Foram quase três meses o tempo que Israel barrou ajuda humanitária para o enclave, desde o início de março. Agora, no final de maio, poucas dezenas de camiões conseguiram entrar em Gaza, através da passagem Kerem Shalom, disse Jens Laerke, um porta-voz do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários em Genebra, na Suíça. Do total, 90 já terão sido recolhidos por associações e organizações, para que os alimentos e medicamentos sejam distribuídos entre os civis. Este fim de semana, porém, milhares de palestinianos esfomeados bloquearam e descarregaram 77 camiões com alimentos, relatou, no sábado, o Programa Alimentar Mundial (PAM) das Nações Unidas. Ainda assim, não só a quantidade de ajuda continua a ser pouca, como a sua distribuição enfrenta dificuldades. “Persistem desafios significativos no carregamento e distribuição de carga devido à insegurança, ao risco de pilhagens e às rotas fornecidas pelas forças israelitas, que são inadequadas para o movimento de carga”, salientou Laerke. A ‘luz verde’ dada pelo primeiro-ministro israelita para retomar as entregas de alimentos e medicamentos em Gaza não veio, contudo, por boa vontade, mas pela pressão internacional. De acordo com o próprio Benjamin Netanyahu, a entrada de alimentos só foi possível na sequência da pressão exercida pelos seus aliados, que afirmaram não poderem apoiar uma nova ofensiva militar de Israel em Gaza, anunciada pelo próprio no meio de maio, se houver “imagens de fome” na palestina. “Por recomendação das IDF e por necessidades operacionais de permitir a expansão dos combates intensos para derrotar o Hamas, Israel vai permitir uma quantidade básica de alimentos para a população, para garantir que não se desenvolve uma crise de fome na Faixa de Gaza”, lê-se num comunicado do seu gabinete, citado pela Reuters.

Relatos do inferno na primeira pessoa

No mesmo dia em que os palestinianos assaltaram o armazém de comida, Feroze Sidhwa, um médico cirurgião norte-americano que trabalhou voluntariamente no sul da Faixa de Gaza, entre março e abril deste ano, no hospital de Kahn Younis, prestou um depoimento durante o Conselho de Segurança da ONU. Relatou isto:” Não vi ou tratei um único combatente do Hamas nas cinco semanas em que lá estive, os meus pacientes eram crianças de seis anos, com estilhaços no coração e balas nos cérebros”. Além das feridas no corpo, o médico também refere outro tipo de estragos, mais profundos, nascidos nos cumes do desespero. “As crianças perguntavam-me: «porque eu não morri com a minha irmã, mãe e pai?» Não por extremismo, mas pelo luto insuportável que estavam a sentir. Eu pergunto se algum membro deste Conselho já conheceu alguma criança com cinco anos de idade que não quer mais viver”. Já aos jornalistas da ABC News, após a audiência, Feroze Sidhwa criticou o papel central que o governo norte-americano tem nesta guerra. “É devastador o que eu vi ali, mas é ainda pior saber, enquanto cidadão dos EUA, que o meu próprio governo está a financiar e estimular isto”.

Um outro momento marcante durante o conselho de Segurança da ONU envolveu o embaixador palestiniano nas Nações Unidas Riyad Mansour que, perante as imagens chocantes da fome extrema em Gaza, não conseguiu segurar a raiva e as lágrimas, enquanto discursava. “Milhares de crianças estão a morrer de fome. As imagens de mães a abraçarem os seus corpos imóveis, a acariciar os seus cabelos, a falar com elas e a pedir desculpa. É insuportável. Como é que isto pôde acontecer?” questionou Mansour, emocionado, ao falar sobre as crianças palestinianas.

Crianças mortas

De acordo com o diretor-geral do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) para o Médio Oriente e Norte de África, Edouard Beigbeder, mais de 50 mil crianças palestinianas poderão ter sido mortas ou feridas desde a ofensiva israelita. “Quantos mais corpos de crianças serão necessários? Que nível de horror é necessário transmitir em direto até a comunidade internacional atuar, usar a sua influência e tomar medidas ousadas e decisivas para pôr fim a este massacre implacável de crianças?”, questionou o responsável da ONU, acrescentando que, pelo menos desde 18 de março deste ano – dia que Israel quebrou o cessar-fogo com o Hamas, que estava em vigor desde janeiro, morreram 1.309 crianças e outras 3.738 ficaram feridas. “Na sexta-feira, vimos vídeos dos corpos queimados e desmembrados dos filhos da família Al Najar enquanto eram retirados dos escombros da sua casa em Khan Yunis. De dez irmãos com menos de 12 anos, apenas um sobreviveu, sofrendo ferimentos graves”, disse Beigbeder, que referia o caso da morte dos nove filhos de um médico palestiniano, Hamdi al-Najjar, num bombardeamento que atingiu a casa do profissional de saúde.

Estes são alguns dos relatos, fragmentos e recortes que nos vão chegando da Faixa de Gaza, de quem lá vive e de quem lá ainda tenta respirar, e resistir.