A guerra civil no Sudão arrasta-se há mais de dois anos. O mediatismo dos conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente tem ofuscado uma das piores crises humanitárias da história recente. Mais de 150 mil mortos, 14 milhões de deslocados e mais de 30 milhões de pessoas a necessitar de ajuda humanitária são os números da catástrofe.
«Um ano após o início da guerra no Sudão», declarou Will Carter, diretor nacional do Conselho Norueguês para os Refugiados no país, em abril do ano passado, «a população civil está a passar fome, a sofrer violência sexual em massa, a ser vítima de assassínios étnicos em grande escala e a ser executada. Outros milhões de pessoas estão deslocadas e, no entanto, o mundo continua a olhar para o outro lado».
Contexto histórico
Não é possível compreender este conflito sem olhar, mesmo que de forma breve, para a história da jovem nação sudanesa. Por cerca de seis décadas, de 1899 a 1956, o que conhecemos hoje como Sudão era o Anglo-Egypcian Condominium (Condomínio Anglo-Egípcio, traduzindo à letra para português), um protetorado partilhado entre o Reino Unido e o Egito.
Mas, mesmo tendo conseguido a independência em 1956, foi no ano anterior que a primeira guerra civil eclodiu, opondo o Sul ao Norte principalmente por «divisões étnicas, religiosas e culturais profundamente enraizadas, com o Norte, predominantemente muçulmano e de língua árabe, em confronto com o Sul, diverso, multiétnico e maioritariamente cristão», relata a EBSCO.
Assim, o desejo de independência do Sul ficou bem patente desde o início – algo que se concretizaria definitivamente apenas em 2011, com «os sulistas de todos os quadrantes políticos (…) a tentar formar o seu próprio bloco sulista no parlamento, defendendo uma constituição federal com alguma autonomia para o Sul. O governo tentou, de forma bastante desajeitada, impedir que isso acontecesse e, em julho, mandou prender um deputado sulista e cinco outros homens, que foram condenados a penas de prisão, após um julgamento mais tarde descrito como “farsa” por uma comissão de inquérito». Estima-se que ao longo dos 17 anos de conflito, que se estendeu de 1955 até 1972, faleceram de 500 mil a 1 milhão de pessoas.
Foi no seio da segunda guerra civil – que durou 23 anos (de 1982 a 2005), matou cerca de 2 milhões de pessoas e cuja documentação aponta para graves episódios de «fome e atrocidades», como é referido pelo Council on Foreign Relations (CFR) – e na sequência de um golpe de Estado em 1989, que surgiu um dos nomes mais marcantes do Sudão pós-colonial: Omar al-Bashir.
Foi sob o regime de Bashir que, em 2003, eclodiu a famosa guerra do Darfour, «mais tarde condenada pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) como um genocídio contra populações não árabes, incluindo os povos Fur, Zaghawa e Masalit, no Sudão ocidental». Mas Bashir foi ainda mais longe. Ainda segundo o CFR, «durante o seu regime, Bashir aplicou uma interpretação estrita da sharia, empregou milícias privadas e a polícia da moralidade para fazer cumprir os seus decretos e perseguiu o cristianismo, a apostasia sunita, o xiismo e outras atividades religiosas minoritárias».
Foi ainda no seu mandato, em 2011, que o Sudão do Sul conseguiu, por fim, a sua independência. Bashir manter-se-ia no poder por mais oito anos, quando foi afastado através de um golpe em abril de 2019, «realizado conjuntamente pelas Forças Armadas do Sudão (SAF) – lideradas pelo General Abdel Fattah al-Burhan – e pelas Forças de Segurança Rápida (RSF), uma milícia liderada por Mohamed Hamdan “Hemedti” Dagalo». Estas últimas, que são uma evolução «da milícia Janjaweed, um grupo armado de maioria árabe financiado por Bashir», acrescenta o CFR, foram responsáveis por «ataques e crimes brutais em toda a região do Darfur, incluindo deslocações em massa, violência sexual e raptos».
Da esperança à catástrofe
No final de 2022, após um período de impasse e de mais um golpe de Estado em 2021, parecia haver uma luz ao fundo do túnel para o Sudão. Como reportou à data a Reuters, «os partidos políticos sudaneses e os militares assinaram um acordo que, segundo eles, abrirá o caminho para uma transição de dois anos liderada por civis para eleições». «O acordo poderá marcar uma nova fase para o Sudão», chegou a escrever a agência de notícias, mesmo reconhecendo que o pacto encontrou, desde logo, «a resistência de grupos de protesto» que se opunham «às negociações com os militares e de fações islamistas leais ao regime do líder deposto Omar al-Bashir».
Em 2023, no início de abril, explica o CFR, «as tropas da SAF alinharam-se nas ruas de Cartum e os soldados da RSF foram destacados para todo o Sudão» e, «no dia 15 de abril, uma série de explosões abalou Cartum, juntamente com um intenso tiroteio. Os líderes das SAF e das RSF acusaram-se mutuamente de terem disparado primeiro». É destacado ainda o envolvimento de grupos externos, como o Grupo Wagner, da Rússia, «e a influência militar estrangeira, nomeadamente dos Emirados Árabes Unidos », algo que aprofundou «a rivalidade que está no centro da crise sudanesa».
Desde então, o Sudão mergulhou num conflito civil mais uma vez com consequências catastróficas, de acordo com a ONG Human Rights Watch (HRW): «O conflito provocou uma das maiores catástrofes humanitárias do mundo, com a fome confirmada no maior campo de deslocados do Darfur, em agosto [de 2024], e a ameaça de fome noutras regiões. O Sudão atingiu o nível mais elevado de deslocação interna do mundo, com mais de 10,8 milhões de pessoas em setembro, incluindo 8,1 milhões de deslocados desde 2023. Em setembro, mais de 25 milhões de pessoas enfrentavam uma insegurança alimentar aguda, mas apenas cerca de metade do plano de resposta humanitária foi financiado. Mais de 17 milhões de crianças não frequentam a escola.»
Para além dos flagelos humanitários reportados pela HRW, chegou, durante esta semana, a notícia sobre um surto de cólera que já «matou 172 pessoas e deixou mais de 2 mil e 500 doentes (…), informaram as autoridades na terça-feira, enquanto um importante grupo médico alertava para o facto de as instalações de saúde existentes no país não conseguirem dar resposta ao aumento do número de doentes», noticiou a Associated Press. A agência americana menciona ainda um comunicado onde o ministro da Saúde sudanês, Haitham Mohamed Ibrahim, «atribuiu o aumento da cólera ao regresso de muitos sudaneses à região de Khartoum (…). Segundo o ministro, o regresso destes sudaneses tem afetado os escassos recursos hídricos da cidade».
Assim, o Sudão representa a pior crise humanitária da atualidade, com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) a «apelar urgentemente à comunidade internacional para que disponibilize fundos para responder à crise crescente», apesar da negligência mediática.