Na página 98 da minha edição de Art & Illusion (Arte e Ilusão), o historiador de arte Ernst Gombrich conta um pequeno episódio passado no ateliê de Henri Matisse. Uma senhora que ali estava de visita, possivelmente uma cliente, olhando para uma das pinturas, comentou: «Certamente reconhecerá que o braço desta mulher está demasiado longo…». O pintor não se atrapalhou minimamente. «Minha senhora, deve estar equivocada. Isto não é uma mulher, é uma pintura». E, como pintura que era, o criador podia conceder-se a liberdade de fazer o braço com o comprimento que bem entendesse.
A arte – pelo menos a figurativa – moveu-se sempre numa espécie de jogo de escondidas com a vida. O pintor romântico suíço Johann Heinrich Füssli também brincou com esta confusão entre arte e realidade quando notou que só de olhar para as paisagens de John Constable – que adorava pintar os campos húmidos de Inglaterra – ficava com uma enorme vontade de ir buscar o sobretudo e o guarda-chuva.
O caso de Constable merece especial atenção por parte de Gombrich, pois trata-se de alguém que conseguiu nas suas telas levar a sensação de ilusão muito longe . Essa ilusão, como meditou o artista, decorria não de enganar o olho do espectador, mas de pôr a sua memória a trabalhar. A arte, acrescenta Gombrich, deve ser ‘sugestiva’, ou ‘evocativa’, despertando algo que já trazemos no nosso interior.
«Ler a pintura do artista é mobilizar as nossas memórias e a nossa experiência do mundo visível e testar essa imagem através de projecções provisórias», escreve o historiador de arte. Ou seja, interpretamos uma pintura comparando-o com as nossas impressões do mundo lá fora.
Embora Constable trabalhasse ao ar livre, desenhando diretamente a partir da natureza, as suas paisagens, nota Gombrich, não são uma mera ‘transcrição’ do que viu. Para elas contribuíram também outras pinturas que o artista trazia na sua bagagem mental. Constable não se limitava a observar os campos, usava sem cerimónia as descobertas feitas pelos seus colegas pintores. O que leva o historiador a concluir, numa frase que resume a sua tese: «Todas as pinturas, como disse Wölfflin, devem mais a outras pinturas do que devem à observação direta».
Depois de se atingir o cúmulo da verosimilhança na pintura, os artistas começaram a desconfiar da parecença e a afastar-se do ‘naturalismo’. Já não lhes interessava imitar a realidade de uma forma, digamos assim, fotográfica, mas antes criar uma realidade nova, com regras próprias. Picasso é disso um bom exemplo: «Quando Picasso diz ‘Eu não procuro, encontro’, quer dizer, assumo eu, que passou a dar por adquirido que a criação em si é exploração. Ele não planeia, vê os seres mais estranhos erguerem-se às suas mãos e assumirem uma vida própria». Uma vida independente da realidade que nos rodeia.
Como se percebe, Gombrich não morria de amores pela arte moderna, e também não fazia por disfarçar. Considerações deste género – «os seres mais estranhos» – não agradaram aos entusiastas da arte moderna. Mas isso não o apoquentou por aí além. Fora sempre um livre-pensador. Em jovem, rebelara-se contra a pesada tradição académica germânica dedicando-se a estudar a caricatura e a cultura popular; na idade madura, resistia àquilo que via como uma moda passageira. E não ia ser a opinião de uns quantos a impedi-lo de pensar pela sua própria cabeça.
A arte a jogar às escondidas com a vida
Füssli dizia que só de olhar para os campos húmidos pintados por Constable ficava com uma enorme vontade de ir buscar o sobretudo e o guarda-chuva.