David de Witt. ‘Os últimos dez anos de vida de Rembrandt são muito produtivos, mas muito tristes’

Como é possível que um artista que ganhou rios de dinheiro tenha ficado insolvente? À boleia de uma palestra que deu em Lisboa, o conservador da Casa Rembrandt em Amesterdão fala-nos sobre a vida e a arte do mestre. E revela o significado das descobertas mais recentes

Como conservador da Rembrandthuis (Casa-Museu Rembrandt) em Amesterdão, David de Witt é requisitado para fazer peritagens e avaliações de obras em todo o mundo, da América ao Japão. Quando nos encontramos, acaba de chegar do Rio de Janeiro, onde um particular lhe pediu para avaliar uma pintura holandesa do século XVII herdada do pai, um colecionador que fugiu da Alemanha nazi e se fixou no Brasil.

Muitos dos que o contactam acreditam ter na sua posse um Rembrandt original. «Tenho a certeza de que é um Rembrandt. Vi um igual no Hermitage», dizem-lhe. Mas o historiador de arte raramente tem boas notícias para dar. «É precisamente por isso que sei que se trata de uma cópia», explica-nos com um sorriso. «Rembrandt não pintou dois quadros iguais. Se o original está no Hermitage, não pode estar numa casa particular. Lamento».

De Witt esteve em Lisboa para dar uma palestra centrada na pintura Tocador de Alaúde (1631), obra de um discípulo de Rembrandt, Jacques des Rousseaux, que pertence à coleção da Fundação Gaudium Magnum – Maria e João Cortez de Lobão.

A palestra que vai dar hoje ao final da tarde intitula-se ‘Caravaggio em Leiden’. Uma das questões interessantes que esse título levanta são as trocas artísticas entre Itália e os Países Baixos.

No caso desta pintura em particular as influências vão num só sentido, de Itália para Utrecht, e, num segundo momento, de Utrecht para Leiden, porque os artistas de Leiden não viajam para Itália. Rembrandt e Jan Lievens são encorajados a ir a Itália pelo secretário do stadtholder [governador e chefe militar de cada província nos Países Baixos], Constantijn Huijgens. Este diz-lhes que devem ir a Itália ver os vestígios da antiguidade e a grande arte mais recente, mas eles recusam. ‘A arte de Itália podemos vê-la nas coleções daqui’.

Não tinham curiosidade?

Essencialmente não queriam roubar tempo ao trabalho. Rembrandt foi conhecido toda a vida por trabalhar obsessivamente. A ideia dessa viagem não o seduzia, até porque era arriscado viajar. Willem Drost, que mais tarde vai ser seu discípulo, morre muito jovem em Itália. E há todo o tipo de perigos à espreita. Jan Linsen é capturado por piratas berberes mas acaba por ser libertado. Claro que há holandeses que viajam para Itália. O mestre com quem Rembrandt começa, Pieter Lastman, tinha estado em Itália e levado para os Países Baixos um estilo próximo de Carracci. Depois temos de esperar por artistas como Hendrik Ter Bruggen, Gerrit van Honthorst e Dirck van Baburen para a influência de Caravaggio chegar aos Países Baixos. Jan Lievens vai para Utrecht estudar estes artistas e regressa a Leiden já a pintar obras muito caravagistas por volta de 1625. Rembrandt acaba por receber esse estilo de Lievens. Portanto há toda uma cadeia que começa com Caravaggio, passa por Ter Bruggen, van Honthorst e Lievens, e termina em Rembrandt.

Falou nas influências italianas nos Países Baixos. E no sentido contrário, não há?

As influências em sentido contrário só se verificam mais tarde, quando Rembrandt se torna famoso e a sua fama chega a Itália. Já no final da vida recebe uma encomenda da família Sauli, de Génova. Depois é referido por Baldinucci e outros.

Mas muito antes disso, no final da Idade Média, início do Renascimento, já tinha havido uma invenção que viajou da Flandres para Itália: a pintura a óleo.

Sim. Uma invenção de Jan van Eyck, provavelmente, embora possa ter havido outras experiências: grandes painéis de carvalho com pintura a óleo. E há pintores que visitam Itália, como Quentin Metsys e Rogier van der Weyden, que está lá em 1450. As obras de Hans Memling também são avidamente colecionadas em Itália, o que faz com que artistas como Rafael já sejam influenciados pela arte da Europa do Norte.

Havia portanto um interesse e uma admiração mútua.

Sem dúvida, não uma espécie de oposição, como se poderia esperar, mas interesse e curiosidade por outra tradição que merece ser admirada. Os artistas viajam de um lado para o outro desde muito cedo. E no século XVII era muito comum os jovens artistas dos Países Baixos viajarem para Itália para estudarem os monumentos da antiguidade e a arte italiana.

Havia mesmo uma pequena comunidade holandesa em Roma, não era?

Sim, e até uma espécie de anti-academia, chamada ‘Os Bentvueghels’. Os artistas flamengos sentiam que não eram muito bem-vindos por parte dos outros artistas.

Por lhes fazerem concorrência?

Muitos deles eram protestantes, o que os tornava suspeitos. Ao mesmo tempo, roubavam o negócio aos italianos – não por pintarem os mesmos temas, mas por pintarem temas que os italianos não pintavam, e que eram muito populares.

Como paisagens? 

Paisagens e cenas do quotidiano. Temos um artista irascível, Pieter van Laer, a quem chamavam ‘Il Bamboccio’, que é conhecido por se embebedar. Laer era um pouco disforme e detestava a sua aparência. Tinha claramente uma personalidade maníaco-depressiva. Mas deve ter sido muito carismático porque tinha um grupo de seguidores. E muitos imitavam o seu estilo. Há relativamente poucas obras dele e um oceano de obras à maneira dele. Os seguidores de Laer faziam cerimónias a parodiar os rituais da academia que metiam obscenidades e disparates. Essa é provavelmente outra das razões por que Lievens e Rembrandt não quiseram ir para Itália, que era vista como um sítio onde um jovem se podia meter por maus caminhos. O próprio Caravaggio não era a pessoa mais pacífica. Quem se cruzasse com ele num bar podia acabar a noite espancado. Portanto Itália tinha má reputação, embora os artistas holandeses que lá estavam fossem muito bem-sucedidos e procurados. E bastava pintarem qualquer coisa para cobrirem as despesas da viagem.

Jacques des Rousseaux, o autor do quadro que temos aqui no Museu de Arte Antiga, é um dos artistas que passam por lá. Qual é o seu percurso?

Rousseaux era um artista sólido e consistente que deverá ter aprendido a pintar com Rembrandt e Lievens. Depois provavelmente continuou nesse ateliê como assistente ou já como artista independente. Tinha viajado antes de se tornar um artista sério, e talvez fosse abastado, como o próprio Rembrandt. A família de Rembrandt tinha um moinho, o que era equivalente na altura a ter uma pequena fábrica. Rembrandt era o filho mais novo, e era habitual os filhos mais novos terem oportunidade de estudar, enquanto os filhos mais velhos ficavam a gerir o negócio da família.

Os mais novos podiam fazer o que quisessem?

Ou preencher outras ambições. Rembrandt foi para a universidade. E recentemente descobriu-se que se matriculou uma segunda vez na Universidade de Leiden, em 1622. Portanto passa mais tempo a estudar do que pensávamos até aqui. E no seu inventário há cerca de 12 bustos de imperadores, dispostos por ordem cronológica. Isto reflete que se orgulhava dos seus estudos.

O que estudou ele na universidade? Humanidades?

Letras. No cerne dos estudos estaria o Latim. Rousseaux pode ter estudado também, mas não sabemos. É normal não termos muita informação sobre a vida dos artistas. Parte do problema, claro, é que ele morre muito novo. A sua última pintura datada é de 1636.

Que idade tinha?

Ele nasce em 1600, em Torcoing, no Norte de França, portanto estaria na casa dos trinta. E morre logo a seguir a casar-se. No regresso de Itália passa primeiro por Torcoing, e depois segue para Leiden, onde a família se tinha fixado. É muito provável que tenha começado os seus estudos logo a seguir. Naquela época quatro anos era o tempo normal para um jovem artista se formar, do princípio ao fim. Rousseaux pinta tecnicamente muito bem. Esta [que está no MNAA] é uma das suas primeiras pinturas conhecidas e já demonstra um domínio perfeito, tanto na construção da pintura como nas texturas e nos pormenores.

Leiden, onde trabalhavam Rembrandt, Lievens e Rousseaux, era um centro artístico importante?

Curiosamente não. Leiden nem sequer tinha uma corporação de pintores, porque não havia artistas suficientes. Era uma pequena cidade universitária com alguma indústria têxtil. Os melhores clientes seriam académicos, e provavelmente é por isso que os livros têm tanto protagonismo nas pinturas tanto de Rembrandt como de Lievens. Esse seria o mercado de elite. Mas Rembrandt tinha clientes em Haarlem e Amesterdão. Quanto a Rousseaux, provavelmente nessa altura já teria a sua clientela em Leiden, mas as pinturas maiores, mais caras e mais ambiciosas seriam vendidas fora de Leiden.

É verdade que na Holanda as pinturas eram vendidas no mercado, ao lado das galinhas, dos queijos, da fruta e das hortaliças?

Provavelmente não. Havia regulamentos das guildas que determinavam que a única forma de vender estas pinturas fora da cidade era em mercados que se realizavam em alturas específicas do ano. Temos alguns desenhos de pessoas a venderem pinturas em mercados, e não vemos galinhas, nem gado, nem couves. Talvez houvesse ao virar da esquina, mas nos desenhos só se vê uma enorme banca com pinturas. E as pessoas sabiam que tinham de ter cuidado com os quadros. Claro que era mais informal do que ir ao ateliê do artista. Muitos artistas eram também marchands. Aliás são eles que fazem os restauros das pinturas, são eles que negoceiam, são eles que avaliam. Mas o negócio da avaliação começa a estender-se também às mulheres. Muitas vezes elas é que geriam os bens, até porque sabiam os preços de tudo o que havia em casa. Recentemente o papel das mulheres como compradoras de arte e o seu peso na escolha das pinturas têm sido objeto de reavaliação. Mas, na maior parte das vezes, ia-se ter com o artista e via-se o que ele tinha na parede – dele ou de outros artistas. E era ele que sabia dizer se se tratava de um original, de uma cópia ou de um trabalho de oficina.

É curador na Casa de Rembrandt em Amesterdão. Esta é a casa elegante que ele vendeu quando foi à falência ou a casa ‘pobre’ para onde se mudou no fim da vida?

Esta é a casa elegante. Ambas sobreviveram até ao século XIX mas a de Rosengracht, para onde se mudou, foi demolida e deu lugar a um prédio sem graça. Esta sobreviveu até 1907, ano em que foi comprada pela cidade, e convertida em museu para mostrar as gravuras de Rembrandt. Em 1990 surgiu a oportunidade de comprar o edifício ao lado, e aí foi construída uma nova ala com climatização, segurança e elevador. As obras de arte foram colocadas na nova ala e a casa em si foi devolvida ao que seria no tempo de Rembrandt.

Chegaram até nós alguns objetos pessoais?

Quando Rembrandt ficou insolvente foi tudo vendido. As únicas coisas que sobreviveram foram para um anexo. Quando se escavou a fossa, onde estava o anexo, encontraram um estrato de objetos do tempo de Rembrandt. 

E o que continha?

Vários potes com tinta. Esses potes foram analisados e continham a preparação, uma subcamada, igual à que encontramos n’A Ronda da Noite. Era um preparado específico que Rembrandt desenvolveu. Servia para criar uma camada lisa e uniforme, ideal para receber a pintura a óleo.

O museu tem uma coleção própria de pintura?

Ao longo dos anos fomos adquirindo algumas pinturas. Mas as pinturas são muito caras. A coleção que reunimos desde o início é de gravuras. E no verão temos apenas águas-fortes [gravuras feitas com uma matriz de metal] em exposição. São todas de Rembrandt e são de alta qualidade.

Ver uma gravura ao vivo não é igual a vê-la num livro?

Uma boa impressão é muito diferente. E algumas das melhores gravuras hoje valem tanto como as pinturas.

As que são feitas em papel japonês?

Temos sempre uma ou duas dessas em exposição. Têm um tom amarelado, o papel é superliso e as fibras têm uma qualidade translúcida. Na verdade, os japoneses colocavam uma camada finíssima de barro no papel para que a tinta não fosse logo sugada.

Se eu visitar a casa-museu o que poderei ver?

Na cozinha, por exemplo, há várias pinturas. É uma reconstituição, com um lava-loiça da época e os objetos que foram recuperados da fossa, alguns potes e brinquedos de criança. Depois sobe-se para o andar principal, que era a parte ‘nobre’ da casa.

Onde se recebia os convidados?

Havia uma pequena sala que era um espaço de negócios, uma espécie de loja. No caso de Rembrandt, as paredes estavam cheias de pinturas, não apenas dele, mas também dos amigos e dos artistas que admirava.

Para venda?

Sim, podemos dizer que era uma galeria. Na verdade havia duas salas, uma antecâmara que também estava cheia de pinturas. E havia um refrescador de vinho. Era onde o visitante se sentava para tomar um copo com Rembrandt – embora ele não fosse conhecido por beber muito, estava sempre a trabalhar. Depois está o escritório e uma sala que usamos como espaço didático. E o salão, que seria a parte mais bonita da casa. Aí estariam as melhores pinturas, de Rembrandt, dos seus amigos e dos artistas que ele admirava. Talvez não fossem tanto para vender, embora ele pudesse vender uma ou outra. Sobe-se as escadas e podemos visitar o estúdio.

Ele não tinha um ateliê com outros artistas?

Isso era em Leiden. Em 1631 ele começa a trabalhar em Amesterdão, a pintar retratos como um louco, quase de certeza porque precisa de dinheiro para se casar. Casa-se com a prima do patrão, que quer ter a certeza de que ele ganha o suficiente para tomar bem conta da prima.

Saskia.

Ambos os pais de Saskia tinham morrido. Ela vivia sobretudo com outros familiares. E um deles era o patrão de Rembrandt, e pô-lo a pintar retratos. Mas ele não gostava.

Pintava por obrigação, só para ganhar dinheiro?

Os retratos eram considerados arte de baixo nível. Os períodos em que Rembrandt pinta retratos correspondem quase exatamente aos períodos da sua vida em que precisa de ganhar dinheiro. Seja para se casar, seja para comprar a sua casa. Por volta de 1637 a 1642, pinta retratos. E de 1650 a 1656, para evitar a falência, volta a pintar retratos. Depois disso, vê-se aparecer um retrato de quando em vez. Parece que quando precisa de dinheiro, pinta retratos, porque é relativamente bem pago e recebe logo. Todos querem ter o seu retrato imediatamente. Numa semana ou duas, ganha 100, 150 ou 200 florins. É muito dinheiro.

Por isso para mim sempre foi um mistério como Rembrandt ficou insolvente.

Quando compra a casa da Breestraat, começa a ter mais discípulos. E dizia-se que ganhava mil florins por ano por discípulo, o que é uma soma considerável. Mas por volta de 1649, 1650, começam os problemas financeiros. Chega Hendrickje [Stoffels, sua modelo e companheira] e expulsa Geertje, que quer mais dinheiro – no fundo é o que ela sempre quis. Em 1656 ele é forçado a declarar insolvência. E começa a vender os seus bens. Tinha todo o tipo de conchas, esculturas, gastou imenso dinheiro com gravuras e desenhos. Isto agora é uma descoberta recente:o caso acaba por chegar a um tribunal superior, o Tribunal da Holanda, e a sentença do tribunal conta-nos o que está a acontecer. Rembrandt contrai empréstimos rápidos para pagar a hipoteca e põe a casa em nome do filho, Titus. Mas estas pessoas a quem deve dinheiro vêm cobrar as dívidas e obrigam-no a vender a casa. Rembrandt tem de se mudar, e dá o dinheiro da casa a Titus, que recebe os seus 12 mil florins.

Torna-se um homem rico.

Abastado. Hendrickje e Titus formam uma empresa, e Rembrandt trabalha para essa empresa e recebe um salário de 1700 florins por ano, o que era muito dinheiro. Portanto fica tudo resolvido. Mas tem de se mudar para Rosengracht, em 1658. Vive ainda dez anos muito brilhantes e produtivos, mas muito tristes, porque a sua mulher, Hendrikje, morre em 1663, de peste, e Titus morre em 1668. Aí Rembrandt deve ter tido um grande desgosto, porque morre cerca de um ano depois, em 1669.