A propósito do ralhete que peritos deram a Portugal acerca da violência doméstica, várias coisas vieram à baila. Algumas delas mereciam um texto, a começar pelos efeitos do ralhete, que, como é costume, teve o poderoso resultado que sempre tem entre nós o que vem de fora, e pôs tudo em sobressalto, reflexão e contrição. E também merecia um texto a questão de saber qual é o critério usado pelos peritos para a ‘brandura’ das penas, bem como qual o universo de amostras e de base de análise, e como ponderaram, ou não, as circunstâncias dos casos concretos. Igualmente importava analisar melhor os possíveis vieses cognitivos que atravessam decisões sobre violência doméstica (e muitas outras decisões sobre outros temas), e que vão para lá da dita visão patriarcal. Importava também levar em conta o que – contribuindo para as estatísticas impressionantes – é verdadeira violência doméstica e o que não é, nomeadamente o que – sem desvalorizar, antes pelo contrário, a questão da violência doméstica – é arma de arremesso ou luta em conflitos conjugais ou efeito da passagem do oito ao oitenta, que nos levou rapidamente da ‘normalidade da violência’ até ao ‘tudo é violência’. Et cetera, temas e temas, vários e importantes. Mas aqui vamos a outro, que é o das elevadas pendências quanto a processos-crime relativos a violência doméstica.
Começando pelo princípio, elevadas pendências, não só não é novidade em Portugal, como não é um exclusivo da violência doméstica. Há-as por aí aos pontapés, e as causas são várias, desde um eventual excesso de litigância até ao estafado bordão da falta de meios (que é verdadeiro, mas só em parte). Estou, porém, em crer que, mais do que essas, avultam outras três, as primeiras duas comuns a muitos processos, a terceira particular da violência doméstica. Por um lado, temos a costumada ausência de gestão processual (pelas hierarquias e pelos próprios titulares dos processos), em que tudo é tratado da mesma maneira, ao mesmo tempo, sem escolher e priorizar, e sobretudo com papel para lá e para cá, página depois de página, despacho a despacho, cota depois de cota, ofício sobre ofício; e assim passam os dias.
Claro que é preciso registar e deixar formalizado, mas um pouco mais de espírito de gestão e de eficiência não era mal pensado. Por outro lado, continuamos, década após década, presos a uma legalidade a outrance, em que tudo se investiga, em que até se procura debaixo das pedras mesmo depois de já se ter encontrado em cima delas, sem critérios de oportunidade, sem escolher (e justificar a escolha, claro) e sem adequar os meios às necessidades, atados a um tabu que no século XXI é catastrófico. Quando é que em Portugal se enfrenta de vez a questão do princípio da oportunidade, que exige três coisas: coragem, transparência e prestação de contas. Finalmente, mas não menos importante, uma particularidade da violência doméstica, que é daqueles tiros no pé que o legislador apressado, bem-intencionado e aturdido pelo ruído da opinião publicada e pública dá amiúde nos seus pés: os processos de violência doméstica são, por força de Lei, urgentes. Todos, sem distinção, só porque são de violência doméstica, seja ela do tipo A, B, C ou de tipo nenhum. Ora, onde tudo é urgente, nada é urgente, já se sabe. Tudo se equivale. E, portanto, tudo se arrasta. Não é? É mais uma vez a nossa crendice em que tudo se resolve com uma leizinha, conjugada com a nossa pressa (e alguma inabilidade) em fazê-las.
Advogado