Por um instante julgámos vê-lo tão solene, a andar como um morto, engastado nos grandes murais, os versos gravados nos vasos dos nossos pequenos templos, tantas vezes em imitações dolorosamente inócuas, e iam saindo os ensaios dos do costume sem ferir nada de profundo, nem exaltar-nos com interpretações selvagens que fossem ao cerne daquele canto desejante. Instalara-se aquele enredo gratuito, em que os pressupostos da grandeza tantas vezes se confundem com um pudor imbecil, próprio de uma ordem funcionária e beata. Desde há uns anos, contudo, fora-nos prometida uma incursão que, com toda a probabilidade, seria algo bem pior que a profanação do túmulo, não uma exumação, mas a restituição dos elementos que nos permitissem compreender a aprendizagem – feita onde?, com quem? e a que custo? –, de modo a não ficarmos submetidos a essa palavra que, hoje, nos começa a soar indigesta: “génio”. Talvez agora esta se reforce, mas não sem nos ser dada a possibilidade de pesar os elementos biográficos e da própria inscrição no ambiente social que Herberto Helder tão cuidadosamente insistiu em manter sob a mais estrita reserva. De João Pedro George, calejado já por anos de embates, e acabado de se lamber todo no fim de mais outra polémica absurda, e que fez bem a prova do tacanho marianismo do nosso meio cultural, tínhamos a promessa de que haveria matéria para o escarmento geral, e depois de lido o cartapácio, tem de reconhecer-se que este será um acontecimento maior e com verdadeiro poder de reverberação, sendo certo que levará algum tempo a ser digerido pela nossa tão frágil constituição cultural. Consegue ser a primeira peça biográfica que não apenas evita enredar-se em subterfúgios entediantes, ou naquela forma de irrealidade por extenso das descrições infindáveis e nauseantes. Esta leva ao limite um propósito de investigação e descoberta, sem quaisquer contemplações em relação ao sentido da decência que a pequena corte gosta de simular em público. Descarrega entre nós a frescura do escândalo, por dar vazão àquilo que já se pressentia: uma enorme ansiedade da parte de muitos em romperem de vez com a lei da rolha que Herberto impôs, numa forma de coação extraordinária e que tão poucos ousaram denunciar. Mesmo agora, nalgumas das reacções, já se percebe a marcha clerical dos que entendem que não havia necessidade de ir tão longe. Ora, poderá haver inúmeras falhas a apontar a este trabalho, mas estas caem para as notas de rodapé perante a obrigação de reconhecer os méritos tanto da fastidiosa pesquisa que ocupou o autor durante oito anos – fornecendo-nos um tesouro de cartas e testemunhos inéditos, além de vestígios incandescentes, das suas próprias análises, sóbrias e informadas, nalguns momentos realmente argutas e penetrantes, mesmo no que toca à leitura crítica da obra do autor. Há uma fenda entre a consciência e a infâmia, a qual é necessário penetrar, e se muitos de nós reconhecemos que a falta de maturidade e encanto da nossa vida literária se prende com a falta de um verdadeiro ânimo, de uma intencionalidade e gozo, esta biografia consegue-o, serve-nos o retrato de uma vida muito avançada, cheia de risco, de um ser que tinha boas razões para se querer ocultar, sendo que quase nunca eram aquelas com que se ia justificando. “Penso que uma pessoa escreve para passar desapercebida, para rodear-se de silêncio, para saber objectivamente que está diferente dos outros, para ocultar-se”, escreve Herberto numa carta a Maria Lúcia Dal Farra. Esta biografia desoculta-o, e pode até dizer-se que é o desafio mais poderoso ao tão obstinado e até maníaco desejo do poeta de orquestrar e controlar todos os aspectos da difusão da sua obra. Durante décadas, Herberto soube cativar e capturar o leitor na sua teia, e num exercício magistral de composição, que ia muito para lá dos efeitos de disposição autoral. Talvez por isso o seu caso seja de tal modo paradigmático e um objecto tão exigente do ponto de vista de uma análise da influência que se pode exercer sobre o meio literário, determinando o enredo na recepção de uma obra. Talvez a reflexão mais profunda que esta biografia permite seja dar-nos as pistas para compreendermos como somos fáceis de deslumbrar e iludir, de cair na teia e ficar subjugados aos caprichos de uma aranha realmente persuasiva, presas demasiado fáceis, que gostam de perder os sentidos no abraço de um hálito realmente poderoso e predador. A este título, não deixa de ser curioso como Herberto sempre foi manipulando a atenção, ferindo-a com mil golpes, insistindo que só queria que o deixassem em paz, enquanto assegurava que não podíamos esquecer-nos dele. Sobre homenagens e enredos admirativos, quando pôde reclamar esse supremo luxo de se considerar farto, fez sair esta nota no JL: “Dizem-me que é difícil ser ingrato com quem mostra querer-nos bem. A mim não me custa nada. (…) Agradeço apenas que me deixem quieto. (…) Agradeço ainda a mim próprio não ser um cadáver, e isto, que é tudo, não agradeço a mais ninguém.” Todos os elementos dessa urdidura quase psicótica estão presentes na sua obra, na qual se entra como num inferno dissimulado, em que o poeta procura dizer como tudo em vez de ser outra coisa apenas serve para sermos absorvidos por ele, pelo seu mito pessoal a partir do qual ergue toda aquela vasta arquitectura. “Não descuido a minha obra. Deve-se velar por aquilo que conseguiu ascender, entre riscos e ameaças, às condições da realidade”, lê-se num dos textos de Os Passos em Volta… E prossegue: “interessa-me a forma acabada das minhas experiências, e suas significações, mantida numa espécie de memória tensa e límpida. Os papéis, esses, (…) encontram-se nas mãos de conhecidos, desconhecidos, amigos inimigos – e cada qual saberá usar deles de modo particular e, suponho, exemplar. Tirarão daí indeclináveis razões para a moralidade dos seus pensamentos com relação a mim e a eles mesmos. Não, não sei de cor as pequenas composições de palavras. Retenho a fantasia, a objectividade delas – ponto onde me apoio para saber que sou sólido, e tenho (ou sou) uma obra.”
Já soubemos pelas outras entrevistas como chegaste a esta biografia, e que foste tu a propô-la à editora e não ao contrário. Reconheces também que sempre foi maior a tua apetência pela prosa do Herberto, e disseste que tinhas alguma dificuldade em mergulhar na poesia, mas que isso, a certa altura, mudou.
Mudou. Contudo, continuo a gostar mais da prosa do Herberto do que da poesia. Mas isso tem mais a ver com um defeito meu. Tendencialmente tenho preferência pela abordagem romanesca, ou pelo enredo ficcional, o que não exclui que possa haver na poesia muito de ficção. Com certeza que tem.
Mas, de certo modo, o regime narrativo corta um pouco com aquele elemento da poesia dele que nos leva a uma suspensão dessa leitura mais analítica e racional.
Sim, chega a ser anti-racional. Até no sentido romântico do termo.
Esse é o grande desafio da poesia do Herberto. E se a prosa, de algum modo, transporta elementos da poesia, e se as narrativas de Os Passos Em Volta permitem seguir o fio narrativo…
Talvez isso seja verdade no caso d’Os Passos em Volta, mas já não se pode dizer o mesmo no caso da Apresentação do Rosto, que de certo modo é prosa, embora se possa dizer que está numa situação intermédia entre a prosa e a poesia, sendo um livro muito onírico, com descrições de sonhos, muitopróximo do momento em que o Herberto começa a fazer psicanálise e grupanálise. Mas aquilo que é importante, tanto na Apresentação do Rosto como na própria poesia, é que os textos do Herberto são sobretudo uma atmosfera, muito mais uma atmosfera do que uma experiência narrativa sequenciada e racional. E o que mais nos cativa ali é como nos deixamos apanhar e acabamos levados no fluxo dessa atmosfera. Eu senti isso sobretudo na pele, já a meio da investigação… Porque o que estava a acontecer, precisamente por esta minha inclinação para a prosa e a narrativa romanesca, que se pressupõe que devem ter um sentido coerente… e pensando que eu vinha da leitura do Fernando Pessoa [de quem publicou uma extensíssima biografia em 2023, O Super-Camões], em que apesar de uma certa desordem íntima ou reflexiva, aquilo obedece a uma lógica clara, com princípio, meio e fim, eu estava a cometer esse erro de olhar para a poesia do Herberto ainda nesses termos. Demorei a desfazer-me desse embalo, e só percebi como era um erro essa tentativa de ler o Herberto da mesma forma certa noite ao ler os poemas dele à minha filha. Como quase todos os pais, costumava ler histórias à minha filha ao deitar-se. Certa vez, tinha estado no computador a trabalhar na biografia do Herberto e lembrei-me que seria curioso fazer a experiência, ler-lhe a poesia do Herberto.
Que idade é que ela tinha?
Seis a sete anos, e então fui buscar um livro do Herberto e comecei a lê-lo em voz alta. Ela estava deitada, e eu estava em pé e comecei… Para meu grande espanto, por um lado, ela não só não me disse para eu parar, como também não adormeceu. Embora a poesia do Herberto tenha algo de hipnótico… mais do que esse espanto em relação ao interesse que a minha filha demonstrou, mantendo sempre os olhos bem abertos e nunca me interrompendo, não parecendo aborrecida, mas cativada, pensei que, de repente, estava a ser confrontada com uma tonalidade e com uma linguagem diferentes, com uma fonética e jogos de palavras diferentes, coisas que seriam estranhas para ela. Ela ficou como um desenho do espanto, abrindo muito os olhos, esse ar de quem está a tomar contacto pela primeira vez com uma coisa nova. Mas, na verdade, o maior espanto foi meu. Foi quando, de repente, ao ler pela primeira vez a poesia do Herberto em voz alta, em vez de o fazer apenas com os olhos, eu estava a ler com os ouvidos, com o corpo, sentindo a vibração daquela sintaxe, daquela fonética. E isso, de repente, para mim, foi como uma espécie de revelação.
Consciente, ao mesmo tempo de que o estavas a ler a uma criança, e atento também ao efeito que tinha nela…
Sim. E aí percebi, de facto, que ali o importante não era entender claramente o que estava a ler, mas era essa vibração, esse galope do ritmo, o ser absorvido naquela atmosfera, numa sintaxe rugosa, que a todo o momento impõe atritos, sobressaltos ou enlevos. Não é aquele enredo intelectual que é próprio do Pessoa. Ao ler à minha filha dei-me conta de que a revolução daquela poesia era a sua capacidade de se dirigir e enredar os outros sentidos. Essa é a ruptura que ele introduz face à poesia do Pessoa, que também começou por ser uma influência importante dele.
Naquela conhecida carta do Joaquim Manuel Magalhães, que tu demonstras como é meio untuosa, de quem se espoja num tom algo patético…
É alguém que surge a furar uma multidão de admiradores e começa a afastá-los, como a dizer: chega para lá que eu quero chegar-me à frente.
Nessa altura, é muito interessante também como demonstras que, no processo da Maria Estela Guedes, que foi talvez o momento mais danoso para a imagem pública do Herberto, o JMM surge numa postura servil, fazendo a defesa do Herberto e colhendo as suas orientações. Ora, tu acabas por assumir a posição contrária, e vens fazer uma defesa muito forte da Estela Guedes, mostrando a forma como ela foi absolutamente arrasada e desconsiderada.
Eu tenho flutuações na forma como trato o caso da Estela Guedes. Ou seja, houve momentos inicialmente em que estava um bocado reticente, e mesmo desconfiado, mas acabei por me dar conta de que ela foi um elemento essencial naquele ambiente cultural e progressivamente vim a sentir cada vez mais empatia por ela, por aquilo que ela terá passado, tendo em conta que era muito mais nova que o Herberto. Estava a começar no jornalismo cultural. Ela, no fundo, lança-se nas páginas do Diário Popular na mesma altura em que inicia a relação com o Herberto.
Dá a sensação de que os editores também a deixaram numa situação um tanto vulnerável, mas permitiram-lhe que viesse lavar roupa suja, isto porque aqueles textos fizeram esgotar a tiragem do jornal.
Dei-me conta de que os primeiros textos dela vieram trazer uma inesperada leitura sobre a obra do Herberto, e provocaram alguma perplexidade mesmo entre os leitores dele. Perceberam que havia ali uma leitura nova. E terão ficado ainda mais surpreendidos por vir de uma pessoa de quem nada se sabia, alguém que não fazia parte do meio cultural.
E que deu relevo aos aspectos místicos, herméticos da obra.
Sim, o dito hermetismo e o ocultismo, a questão daalquimia. Já não sei onde é que eu li isto, não sei se foi no Herberto ou não, mas aquela ideia de que a alquimia é uma espécie de poesia da ciência. Mas à medida que foi reconstituindo o que se passara, tentei colocar-me no papel daquela jovem mulher que tem um caso com um poeta que, à época, era já bastante prestigiado, e até, de certo modo, idolatrado, e percebi como todos tomaram a posição do Herberto, talvez até com receio, julgo eu, de perder também o contacto e o convívio com ele.
Esse parece ter sido um elemento constante, essa espécie de coação do Herberto, pois se raramente tinha atitudes irascíveis presencialmente, depois era bem capaz de intrigalhar, e servia-se dessa questão do acesso, do corte de relações quando alguma coisa não o agradava.
Isso vê-se muito claramente naquele documentário dos anos 2000 e tal [Herberto Helder: Meu Deus Faz Com Que Eu Seja Sempre um Poeta Obscuro], não é? E se percebe que é ele quem não deixa ninguém falar. Há até uma cena, não sei se com o João Vieira, que recebe uma chamada do Herberto quando está a ser filmado a pedir-lhe que não colabore. Ou seja, isto também serve para referir que, se o Herberto fosse vivo, esta biografia nunca teria existido, ou, pelo menos, não nestes termos. E até julgo que houve pessoas que estavam ansiosas por falar, que queriam falar, e que não tinham podido fazê-lo.
No caso da Olga, cujo testemunho é central, já contaste que foi preciso um ano de conversas antes que ela aceitasse. E um dos argumentos que usaste e que me parece decisivo é que uma biografia acabaria por surgir, e a questão era saber se o testemunho dela seria considerado, tendo sido a pessoa que mais conviveu com o Herberto, mas que se sentiu sempre algo secundarizada.
Nem é secundarizada, ela nunca foi ouvida. Por outro lado, o certo é que com o Herberto vivo ela nunca o daria. Mas mais até do que ouvir o testemunho dela, o que me parece é que nunca foi considerado o convívio entre eles.
Por outro lado, ela foi muito desbragada nas confissões que fez tanto à Ângela, mulher do Carlos Oliveira, como ao Vitor Silva Tavares e à Manuela Santos…
Mas a Olga é uma mulher excessiva, e se calhar é por o ser que havia essa compreensão e intimidade entre eles. Há um ponto importante nesta biografia, e não sei se o esclareci suficientemente, que é o quanto esta biografia é devedora da minha formação em Sociologia, e entra a pé juntos contra a ideia de que a obra e o autor são duas coisas que podem separar-se. Ora, eu sou totalmente contra essa leitura subjectivista e até elitista da literatura. Julgo que esta biografia nos permite perceber que um grande autor ou uma grande obra não se constroem só a partir do texto. Esta biografia mostra-nos as condições sociais da construção da figura de um autor e da ideia de uma grande obra. Ou seja, eu acho que nos dá uma espécie de infância, adolescência e idade adulta desse processo de construção de um grande autor, de uma grande obra.
Sim, tu pegas numa figura que seria entre nós aquilo que lá fora conhecemos de casos como o de um Thomas Pynchon, uma Elena Ferrante e um Salinger, que rejeitaram por todos os meios o aparato mediático…
Mas o Herberto não é tão radical como esses.
Sim, mas mostras o que já revelaram outras biografias sobre grandes autores, como o Philip Roth, que embora tivesse também uma certa suspeita das mundanidades literárias, sendo muito selecto nas ocasiões em que prestava declarações, na verdade, depois, ele como o Saul Bellow passavam a vida a cartear-se com os críticos e os estudiosos das suas obras, não deixando a compreensão de elementos cruciais das obras por mãos alheias.
Mas o Thomas Pynchon jamais faria o género de coisas que o Herberto fez, como, por exemplo, escrever várias cartas para o JL, a justificar e a reclamar com o que se ia dizendo sobre ele.
Sim, e depois andou ao colo com os académicosque estavam a trabalhar a obra dele.
Sobretudo as académicas. Porque o Manuel Frias Martins escreveu aquele livro sobre ele e queixa-se que ele nunca lhe deu cavaco.
Mas essa questão parece-me ser relevante porque tu pegas no grande mito da literatura portuguesa do último século, pelo menos, uma figura que claramente elegeu como ficção essencial da sua obra esse pendor romântico e obscuro do poeta, e quis preservar os elementos da sua biografia, precisamente porque entendia que isso seria um ruído que degradaria o confronto com a obra, sendo no seio desta e dominado pela sua força encantatória que o poeta e o leitor devem comparecer. Ou seja, aquilo que é a radicalidade do Herberto é a forma como ele propõe a poesia como um acto genesíaco, elemental e da ordem das magias, que retira a poesia do campo da modernidade…
Da origem, da ideia dos enigmas, dos mistérios…
Ou seja, tem uma função religiosa profundíssima.
O que ele diz é que a evolução das sociedades ocidentais, sobretudo com o triunfo da ciência e no plano da racionalidade instrumental, nos tem afastado cada vez mais desse momento original ou dessa inocência original, onde ainda é possível uma relação directa, não mediada pela ciência, com os mistérios da natureza, da Terra. Daí também o interesse dele pela “mulher” por esta estar ainda ligada aos ciclos… A fertilidade, os filhos, enquanto o homem vai perdendo essa ligação à medida que cresce e deixa de ser criança.
E depois há ainda toda a alienação, cinismo e desafectação que os avanços técnicos e da tecnologia…
E que nos afastam cada vez mais da natureza.
Mas aí o que me parece o elemento crucial e que transtorna inteiramente a poesia, é a reacção ao cinismo. É uma poesia cuja radicalidade está na forma como se opõe a este elemento, hoje, transversal à cultura.
Aquilo a que Max Weber, o sociólogo alemão, chamava o desencantamento do mundo. No fundo, ele é o herdeiro que reage contra o desencantamento do mundo e contra aquilo a que chamava a jaula de ferro da racionalidade. E julgo que o Herberto encarava a poesia como o último reduto onde ainda era possível criar cosmogonias e onde ainda podíamos ter contacto com esse ambiente originário, que nos remete para as profundezas, para os elementos mais obscuros, os enigmas, os mistérios que nos ligam aos nossos instintos primordiais. Um quadro que não está sujeito nem foi subjugado pela obsessão de tudo explicar, de tudo compreender da forma mais fria e clínica. A poesia ainda é uma espécie de aldeia gaulesa nestas sociedades ocidentais e daí a necessidade que ele sentia de defender a poesia e de tantas vezes reflectir sobre o próprio acto poético e sobre a função social da poesia.
Até como antídoto a uma espécie de desespero que é próprio dos nossos tempos. Mas, por isso mesmo, a obra dele, na sua imanência, na sua força, na sua proposição, depende desse carácter, do que avassala e não se deixa dominar pelas teorias explicativas gerais. A tua biografia mostra como, por baixo de todo este fulgor, debaixo desta majestosa arquitectura, o arquitecto, em tantos passos, parecia muitíssimo inseguro, passava por períodos de grande crise anímica e mesmo de perda de fé na sua obra, no seu projecto, nas suas capacidades
A grande âncora da vida do Herberto é a poesia e é a obra dele, a escrita é a sua âncora. É como se ele recuperasse o cordão umbilical que o liga à mãe e que mantém essa continuidade mais vasta, e que o vai orientando e acompanhando ao longo da vida, sendo refortalecido nas ligações com outras pessoas, particularmente com as mulheres. Embora haja alguns homens que, de certo modo, ocupam até a figura do pai, como a certa altura acontece com o Edmundo Bettencourt e, depois, particularmente com o Carlos de Oliveira, que tem esta curiosidade de conter no nome o nome do pai dele, que era Romano Carlos de Oliveira. Não sei se isso foi uma coisa inconsciente ou consciente, mas o Herberto tinha uma grande reverência por ele. Ele e o Edmundo Bettencourt e o António José Forte pareciam ser dos poucos que ele realmente respeitava
Depois tens uma interpretação, que não sei se é completamente original, em que nos dizes que toda a obra dele, num certo sentido, pode ser lida como um luto mal resolvido pela perda da mãe quando tinha oito anos.
Há vários críticos da obra do Herberto que chamam a atenção para essa chave interpretativa.
Sim, porque ele próprio convoca a figura da mãe, e a sua mãe em particular ao longo da obra, mas o ponto aqui é essa forma de luto.
De qualquer modo há que fazer um ponto prévio que será notar que esta biografia não compreende um estudo aprofundado da obra do Herberto, mas é apenas uma biografia do Herberto, e sublinho o “apenas”. E isto porque a quis dirigir sobretudo aos leitores em geral e não apenas para os especialistas na obra do Herberto.
Sem poder realmente ser posta em causa a legitimidade da biografia que tu fazes, como tu sabes, um dos elementos centrais do fascínio por esta figura e esta obra é a capacidade de preservar esse corte entre a obra poética e os elementos biográficos. Ora, esta biografia corresponde de tal modo aos anseios dessa curiosidade mundana, nalguns aspectos, sórdida, voyeurista dos leitores do Herberto, vindo dar-nos todos os elementos que nunca nos fora dada a possibilidade de conhecer. Ora, de repente, o autor surge-nos exposto de forma quase pornográfica num cartapácio de 900 páginas e que cicatriza essa ferida. Já não se pode esconder. A figura ou o mito do poeta obscuro vê-se assim devassado.
Mas posso garantir-te que deixei muita coisa de fora. Em primeiro lugar, esta ideia do mito que está presente na própria poesia do Herberto, penso que já várias pessoas desvendaram, digamos assim, esse mito através da análise dos poemas. Portanto, aqui estamos a falar apenas do mito que o próprio Herberto criou, criou ou fez com que os outros criassem sobre ele, porque as suas escolhas e a sua postura tudo fizeram para alimentar esse mito ou essa ficção. Ele alimentou essa ideia de que o mito nasce como essa função cujo apelo é de tal modo profundo que se torna incapturável, indizível. Por isso é que me parece uma ficção. Ninguém é um mito. Nenhum ser humano pode ser um mito.
Mas a cultura não foi sempre o que é hoje. Antes a cultura participava das coisas a partir do elemento fulgurante, a forma de narrar as histórias servia-se de um fio mitológico. Os gregos não levavam à letra os seus mitos, mas aquilo era um processo cultural. Era assim que contavam as histórias, cheias de ar e fogo. E tu vens arrancar aquele homem à sua ficção, à condição que ele quis resgatar.
Sim, mas isso era um processo inevitável, não é? Se não fosse eu, seria outro. Achas que o Herberto não sabia e não tinha a certeza que quando morresse alguém iria fazer a biografia dele?
Acho que ficaria estarrecido se imaginasse que seria logo e de uma vez um túmulo biográfico destes. Acho que nunca imaginou que fosse surgir uma obra de 900 páginas cumulando tantas cartas e outros documentos, a partir de 70 entrevistas, com testemunhos tão desabridos de pessoas que lhe foram tão próximas como a Olga, como a Linda, como o Aníbal Fernandes. Acho que esperaria outra reserva, que não viessem expô-lo daquela maneira.
Mas estamos a falar de testemunhos de uma força extraordinária. Acho que o testemunho da Olga mostram uma mulher rara, e, em si mesma, com uma nobreza invulgaríssima.
Sim, mas não deixo de sentir que houve uma certa vingança sobre a obra, sobre toda aquela premeditação do Herberto. Como a Linda diz às tantas, a propósito daquelas fotografias pavorosas do Alfredo Cunha para o Expresso, tiradas um mês antes da morte do Herberto, tudo isso foi a vingança face à imagem que se criara dele, aparecendo no fim o velhinho de fato de treino, numa imagem em que, como tu dizes, só falta um cobertor no colo.
Eu não digo que foi uma vingança da Olga. Acho que a decisão do Herberto de ir para a Porto Editora e de se mostrar, de gravar cinco poemas distribuídos num CD com A Morte Sem Mestre foi algo que fez para retribuir todo o cuidado que a Olga teve com ele, dando-lhe condições que ela nunca teve. Creio que ele desconfiava que estaria próximo da morte e queria garantir que ela viveria com algum conforto. Repara que durante muitos anos foi o ordenado dela que lhes serviu de sustento, e que foi o próprio esteio do Herberto, permitindo-lhe dedicar-se inteiramente à sua obra. E acho que o Herberto, de certo modo, quis recompensá-la, e não há nada mais digno do que essa decisão, considerando como foi o ordenado da Olga que aguentou aquela casa.
Mas esse é talvez o elemento mais pavoroso que a biografia revela. Esse contrato absurdo que ele faz para a trazer de Angola, casando para ela o poder justificar perante a mãe, que depois quando se junta a eles ele vai hostilizar, e dando a sensação de que, ao casar-se, ele não fez mais que contratar uma empregada doméstica.
Não digas isso.
Ela parece estar muito consciente do seu sacrifício, reconhecendo que foi o grande serviço que prestou à literatura portuguesa, que assim lhe fica eternamente endividada. E não deixa de dizer que se havia uma imagem romântica do poeta, e se as mulheres não o largavam, poucas aguentariam como ela cortar-lhe as unhas dos pés, passar-lhe as camisas e deixar todos os dias o almoço feito antes de saírem para ir trabalhar, enquanto ele dormia até tarde.
Isso é uma decisão dela e ninguém pode criticar, porque ela fez isso de livre vontade.
Tu várias vezes mostras através de testemunhos diversos e coincidentes nesse aspecto, a forma como, em público, ele nem a reconhecia. Não só não a apresentava como nem contava que ela era mulher dele, parecia antes escondê-la. E se ela tantas vezes fazia questão de estar nos espaços que ele frequentava, ele fingia que não a conhecia. Isto parece-me uma desconsideração inqualificável.
Mas eu julgo que havia ali um elemento (e nós não podemos saber isso, pois não conhecíamos as regras da intimidade deles)… O Herberto era uma pessoa que gostava muito de jogos eróticos, gostava de preservar a sua intimidade…
Esse lado da vida do Herberto parece de tal forma inconveniente que muitas pessoas põem em causa a lucidez da Olga…
Mas isso não é verdade. Isso é um seu, isso é uma vil mentira, porque se ela aí está, e agora tem 90 anos, e pode ter algumas falhas de memória, não está senil. A Olga sempre foi assim, sempre foi uma pessoa excessiva, uma pessoa com o coração na garganta.
Mas tu mostras as cartas, através das cartas do Herberto vemos como ele quis afastar-se da Olga e não teve é escolha, pois não tinha quem lhe aturasse as manias, quem fizesse por ele o que ela estava disposta a fazer. E ela orgulha-se disso, diz que ninguém sabia o que lhe custava fazer tudo por aquele homem.
Mas aí a fraqueza é do Herberto.
Claro, claro. Não estou a pôr a fraqueza na Olga. Tudo bem que estamos a falar de um outro tempo, de uma diferença na forma como se olhava estas questões, mas parece me um caso bastante perverso de um homem que…
Mas o Herberto de certo modo seria um homem perverso. E eu acho que digo isso a certa altura, que, se calhar foi preciso ele ser assim, foi preciso que ele errasse e estivesse disposto a fazer o que outros não fariam por educação ou por rebuço, foi preciso que ele fosse perverso para ser um grande escritor. Mas voltando à questão das biografias, a partir de que momento é que nós consideramos legítimo fazer uma biografia sobre ela? Quantos anos depois da morte de uma pessoa é que se torna legítimo biografá-la?
Não acho que seja uma questão de legitimidade, o que estou a falar é do lado simbólico e da violência que uma biografia pode significar contra uma obra que rejeitou de forma peremptória essa abordagem.
Repara, eu sou um investigador. O meu trabalho é fazer este levantamento, descobrir estas coisas. Não é o meu papel estar a censurar ou a esconder. E em nome do que o faria? Para preservar o quê? Para criar um santo?Como se fazia antigamente, quando as biografias tinham que nos dar o retrato de indivíduos supostamente exemplares, cheios de virtudes. Queriam um santo de altar, era? Porque esta questão levanta muitos problemas. Repara, saíram recentemente várias biografias. A Maria Teresa Horta ainda estava viva quando foi biografada. O Luiz Pacheco também foi biografado por mim três anos depois da morte dele.
Mas o Luiz Pacheco sempre alinhou nesse lado autobiográfico, e até fornecendo os elementos mais sórdidos. Pode-se dizer que à volta dele se criou um folclorismo parolo, mas nunca se criou um mito.
Havia muitas lendas que corriam à volta do Pacheco, ainda há muitas coisas que se dizem sobre ele e que são mais do domínio da lenda.
Mas não é umalenda grandiosa, é até algo humilhante, do ponto de vista da moral que nos domina.
Está bem, mas é uma lenda, uma lenda pícara. Não faltam por aí exemplos de histórias sobre ele que foram inventadas e que não correspondem de nenhum modo à verdade.
Mas lá está, o Pacheco é abrangido por esse enredo que se liga intimamente à modernidade, que são os malditos, não é? Enquanto que o Herberto…
Mas o Herberto também navegou por esse rio acima, também mergulhou nesse imaginário. As grandes referências dele são todos dessa tradição.
Um dos exemplos mais férteis para comparar com a tua biografia é Saint Genet, que começou por ser um preâmbulo às obras do Genet, e que veio a ser para muitos a obra mais arrebatadora e perversa do Sartre. É exactamente o que ele fez. Ele pegou numa figura que se tinha tornado esse mito de agressão aos valores burgueses e através de uma compreensão psicologizante, daquela parafernália das noções do existencialismo, tornou-o bom para consumo burguês, servindo-se das lógicas da psicanálise e tal. Tu não entrar por aí, mas serves-te do teu balanço de análise sociológica para investigar os parâmetros da recepção da obra, os elementos daquilo que se pode saber sobre a vida do Herberto, com particular atenção para o enredo cultural e social da época. Mas o efeito acaba por ser o mesmo. Não é que tornes o Herberto bom para consumo, mas demonstras tudo o que está por trás daquela lascívia meio desesperada, a de um homem que balançava entre a megalomania e uma necessidade absoluta de se afirmar e provar… Mas o que nos permites é mergulhar na densidade do perfil dele, ter acesso aos elementos escondidos, espreitar pelo buraco da fechadura…
Repara, ele é que criou o buraco da fechadura…
Mas não achas que é legítimo ele querer preservar essa reserva?
Acho que é legítimo enquanto ele é vivo. A partir do momento em que ele morre… Ele é uma figura pública, não é?
Já o era antes de morrer.
E provavelmente seria possível também escrever uma biografia sobre o Herberto, embora ele em vida estivesse mais protegido e a sua privacidade ficasse selada. Agora, a partir do momento em que ele morre, e se consideramos que é uma figura pública, com a importância que ele ocupa na história da literatura, na história da cultura do nosso país, o conhecimento sobre a vida dele não ficar sob um absoluto zelo, que caberia aos herdeiros policiar. Com a morte, deve assumir-se que passa a ser parte da memória colectiva. Senão às tantas até pode passar a ideia de que só são admissíveis as biografias autorizadas, e que todo este género literário fica condenado a partir do momento em que não haja consentimento do próprio e da família. O que seria uma compreensão perigosíssima. A biografia tem de ser considerada um ramo da história e, portanto, se estivesse sujeita a autorização prévia dos herdeiros, nós correríamos o risco de a história do país passar toda ela a ser contada por via oficial ou oficiosa. Imagina o que seria se precisássemos da autorização prévia dos herdeiros ou dos descendentes do Salazar? Ou do Hitler ou do Trump ou do Putin para fazermos biografias deste tipo?
Concordo inteiramente. Não faz sentido. Mas se já te disse que a biografia me parece perfeitamente legítima, estou a passar à frente. Se a biografia fosse má, acho até que não se colocavam estas questões, o que me parece interessante é discutir a inflexão que esta provoca do ponto de vista literário na leitura da obra e na forma como encaramos o autor.
Com esta biografia não quis beatificar o Herberto, mas também não quis demonizá-lo. Procurei fazer um retrato do homem. É importante trazê-lo de volta à terra, porque ele, de facto, estava a ser mitificado de uma forma absurda. E eu nem estou a falar da mitificação para a qual ele próprio contribuiu, mas da mitificação dos admiradores e dos ídolos e fãs da poesia do Herberto, como, de resto, se viu nos obituários que lhe fizeram. Sinto que aqueles obituários são a demonstração cabal de que havia não só havia uma espécie de discurso abastecido sempre nos mesmos lugares comuns, mas havia uma narrativa que era transversal a todas aquelas pessoas relativamente à ideia de que o Herberto era um ser que pairava acima de todos nós. E tudo aquilo fazia-o como um ser no centro de um culto, algo da ordem do sagrado. E, portanto, quando falo de humanizá-lo é também cortar com toda essa conversa enfatuada.
E aí entendes que o papel da biografia pode operar como uma forma específica da leitura crítica…
É obrigação de qualquer investigador questionar o modo como os biografados se pensavam a si mesmos, pôr em causa a imagem satisfatória que retiravam de si próprios. Todo o meu trabalho de construção de uma biografia parte da ideia de que não devo reproduzir e repetir o ponto de vista do biografado sobre si mesmo. Os biógrafos devem fazer o esforço de se descentrarem da imagem que os biografados queriam dar de si próprios. Como é que se consegue isso? Colocando o biografado na teia de relações em que decorreu a sua vida, cruzando os testemunhos individuais, confrontando-os com outros pontos de vista, quer para os confirmar, quer para os questionar. O mesmo se aplica a esses testemunhos individuais e a todos os documentos ou fontes. Todos os documentos e testemunhos são produzidos a partir de um lugar de interesse. Logo, devemos ler os documentos e os testemunhos interrogando criticamente os propósitos de quem os produziu, cruzando, novamente, os pontos de vista dos testemunhos. É evidente que, ao cruzar testemunhos, vou contra a imagem, por exemplo, que a própria Olga queria dar da sua relação com o Herberto. Ela sentir-se-á desagradada e outras pessoas sentir-se-ão desagradadas. Porquê? Porque ao cruzar os testemunhos, descentrei-me dos pontos de vista individuais, colocando no centro a ideia de acção relacional. De resto, os familiares e amigos gostariam sempre que a vida do Herberto fosse exemplar, um poço de virtudes e de valores heroicos.
E quais te parecem os melhores frutos dessa abordagem?
Este método permitiu-me fazer algumas descobertas fundamentais. Por exemplo, a imagem de um poeta indiferente ou descontraído relativamente ao que se dizia sobre a sua obra, que desprezava a prescindível raça dos críticos literários, não é confirmada nesta biografia. O que se percebe é que ele se serviu dos críticos e dos académicos para esculpir a sua estátua e preparar a posteridade. Ao contrário do que se pensa, Herberto tentou influenciar a imagem que os críticos ergueram dele. Isso permitiu-me mostrar um Herberto muito mais complexo e ainda mais secreto, onde se vislumbram, intermitentemente, sinais de uma vulnerabilidade ou fragilidade psicológicas profundamente enraizadas no seu íntimo, nomeadamente uma certa incerteza relativamente ao valor da sua obra.
E o que dirias àqueles que sentem que a biografia abriu margem a uma espécie de devassa da vida íntima?
Ao reinscrever a obra na sua vida e a vida na sua obra, ao acompanhar a trajetória dele através de várias épocas, percebi que a experiência amorosa e sexual do Herberto é uma das chaves para desbloquear a obra. Assim sendo, fui obviamente levado a dar um grande destaque à história das suas relações amorosas.