O Matuto tem um livro novo. É o livro do sociólogo Brasileiro Gilberto Freyre: “Casa Grande e Senzala”. (edição de luxo com gravuras e mapas) Livro sublime e luminoso, onde Freyre defende, com sucesso, que a mestiçagem não causa nenhuma “degeneração”. Muito pelo contrário, o resultado é positivo, como prova a existência belíssima do Povo Brasileiro. Ao arrepio das modas antropológicas marxistas, Freyre afirma que o Brasil colonial gerou uma sociedade responsável por integrar Africanos, Índios e brancos, e que formou uma raça mais forte, mais intelectualmente capaz, e com uma cultura mais elaborada. Sobre o colonizador Português diz ele que é do tipo “contemporizador”. Não é “nem de ideias absolutas nem preconceitos inflexíveis… tendente à miscigenação e ao contacto voluptuoso com a mulher exótica. O Português tem uma plasticidade social, maior no Português que em qualquer outro colonizador europeu”. O Matuto concorda: o Português sempre teve um toque suave. Até na colonização. O Matuto sente-se contemporizador. No plano social, é totalmente plástico. Mais. O Matuto vê-se ao espelho, neste livro.
Na fornalha da euforia, o Matuto partilha estas ideias ao serão, com a gente habitual da “Casa das Pontes”. A gentil esposa do Matuto, Dona Sirlei, reconhece: “É isso aí! Vocês Portugas são suaves. Suave na nave”! A Belinha, a visita conservadora das “Pontes”, dá um sorriso de aprovação, perdida em memórias de namoricos de antanho. É do conhecimento geral que a Belinha perdeu-se de amores por um Português moreno — um tal de Joaquim, que chegou ao Brasil para um estágio em engenharia hidráulica, mas o que acabou engenhado foi o coração da moça. Dona Sirlei lembra bem: “Foi numa noite de forró, lá no salão da Associação dos Produtores de Goiaba. O Joaquim entrou com aquele sotaque de filme de época, camisa de linho que parecia ter saído dum catálogo de fado. A Belinha, que na altura fazia questão de dizer que não dançava com qualquer um, levantou-se da cadeira antes mesmo da sanfona puxar o primeiro suspiro. O namoro durou três meses. Quando o Portuga embarcou de volta prá Terrinha, a Belinha chorou cinco dias seguidos, depois foi à feira, comprou dois pés de coentro e jurou que nunca mais confiava num homem que usasse sapato sem meia”. De chofre, o Matuto embatuca! Essa mania de Português não usar meias vai longe, hem! “Mas até hoje” – continua Dona Sirlei – “quando a Belinha ouve um ‘pois então’, ela solta um queixume”. Num desatino, o Marcello, a visita reacionária das “Pontes”, apenas resmunga um tímido “tolices”!
Entretanto, o Matuto pega num pequeno-grande livro de Afonso Cruz – “O Vício dos Livros”. Na página 68* conta ele que “Num restaurante no centro de São Tomé, enquanto comia uma sopa tradicional, com sabor a coentros, informaram-me que o nome desta erva, em crioulo forro, é selo sum zon maiá, que significa «cheiro do Sr. João Maria». Diz-se, verdade ou mito, que o Sr. João Maria foi um Alentejano por quem uma mulher se apaixonou e que, por este cozinhar com coentros, baptizou assim a erva. «Cheiro do Sr. João Maria.» É muito bonito que, numa colherada de sopa, estejamos a comer uma declaração de amor. Curiosamente, os coentros, depois de florescerem, ganham outro nome, cundu muala vé, que significa «cabelo de mulher velha» (esperemos que não tenha sido o Sr. João Maria a baptizar assim a senescência dos coentros). Ouvi da escritora guineense Odete Costa Semedo alguns exemplos de como a beleza pode esconder-se nas coisas mais triviais, na linguagem de todos os dias. Disse ela que, quando alguém está feliz, quando se sente leve, usa a expressão «os meus pés não alcançam o chão» (n na ianda, ma nha pes ka na iangasa tchon / caminho, mas os meus pés não alcançam o chão)”.
O Matuto acha estes detalhes um regalo. Os Ingleses dizem de alguém feliz que ela tem “a spring in her step” – uma mola nos passos. Saltita. Levita de felicidade. Há palavras e expressões grávidas de abalos sísmicos interiores. A plasticidade colonial dos Portugueses; os pés desnudados dos Portugueses; uns pés Portugueses que não tocam o chão; uma sopa de coentros dum Português do Alentejo… Um Português Suave – conclui o Matuto.
*(in, O Vício dos Livros, de Afonso Cruz. Edição Companhia das Letras, 2021, pg. 68-69)