“É indiscutível que a nossa entrada na Europa foi um projeto de sucesso”

O comissário para as comemorações dos 40 anos da adesão de Portugal à UE faz um balanço destas décadas e admite que, mais importante do que olhar para o passado é ter os olhos postos no futuro.

Que balanço faz da adesão de Portugal à União Europeia?

Acho que é evidente que se compararmos todos os dados factuais daquilo que era a realidade portuguesa há 40 anos e aquilo que é Portugal hoje vemos as vantagens de forma clara. E não estou a falar só dos fundos que vieram para Portugal, embora tenham tido consequências positivas, como é o caso da rede de infraestruturas, estradas, hospitais, centros de saúde, escolas passando pela produção científica, pela quantidade de teses de doutoramento – não é comparável as que eram publicadas há 40 anos e aquelas que hoje produzimos – pela capacidade de criação de emprego, pelo rendimento per capita dos portugueses. Se fizermos a comparação entre aquilo que Portugal era há 40 anos e aquilo que Portugal é hoje é indiscutível concluir que a nossa entrada na Europa foi um projeto de sucesso.

Podemos dizer que havia um país antes e um outro depois?

Acho que se pode dizer isso de certa forma.

Portugal teve acesso a fundos que nunca teria, à moeda única mas em termos orçamentais está sujeito a regras mais apertadas. É o reverso da medalha?

Isso vem da nossa existência em sociedade. É assim também no plano nacional com as regras que existem, em que temos direitos mas também temos deveres. Agora, essas regras que nos obrigam a ter contas públicas mais rigorosas não são necessariamente negativas porque um país que se endivida deixa uma pesada herança às gerações vindouras. Se temos limites de endividamento que resultam da nossa participação na União Económica e Monetária não é exatamente uma desvantagem, é a garantia que não estamos a arruinar os jovens portugueses que sem essas regras poderiam nascer num país muito mais endividado e muito mais dependente.

Disse-nos recentemente que cerca de 80% da legislação nacional tem origem em Bruxelas ou em Estrasburgo. É positivo?

É indiscutível que hoje grande parte da legislação tem origem em Bruxelas ou em Estrasburgo e pode ter origem direta ou indireta. Porquê? Porque as normas jurídicas que são aprovadas como regulamento têm aplicação exatamente idêntica em todos os países europeus, são aprovadas como diretivas que estabelecem objetivos e regras, mas depois cada Estado Membro pode adaptar a legislação à sua especificidade nacional, o que significa que há parte da legislação europeia que é adaptada em Portugal através da Lei da Assembleia da República e pode não ser exatamente igual aqui como em Espanha ou em França ou Itália ou em qualquer outro país membro da União Europeia. E nesta negociação das normas jurídicas temos de ter em atenção aquilo que é o interesse comum porque são normas jurídicas europeias, mas também deve acautelar o interesse nacional, isto é, como é que Portugal pode viver bem com essas regras. E sob esse ponto de vista, como o processo legislativo europeu é, na prática, um sistema de duas câmaras, porque passa no Parlamento e passa no Conselho é desejável que haja uma articulação entre o Governo português e os diversos grupos parlamentares que têm representação do Parlamento Europeu. A interpretação do interesse nacional pode variar de bancada para bancada, mas é importante que estejamos articulados até porque, muitas vezes, o interesse nacional só é protegido quando temos portugueses em diversas famílias políticas a remar para o mesmo lado. A cooperação e a colaboração é muito importante nesta decisão.

Pela sua experiência como avalia o peso dos políticos portugueses no Parlamento Europeu?

Em muitas funções não basta só a representação nacional é também necessário ter em conta a dimensão do prestígio que cada um pode ter. Isso acontece em todos os órgãos, há portugueses que se destacam mais e portugueses que se destacam menos. No conjunto dos órgãos europeus, há portugueses que tiveram o maior destaque possível. Por exemplo, José Manuel Durão Barroso que foi presidente da Comissão Europeia durante 10 anos. Em todas as décadas em que existiu a Comunidade Europeia, os presidentes da Comissão Europeia foram sempre dos seus países fundadores. Ou foram italianos, ou foram alemães, ou foram franceses, ou foram belgas, ou foram holandeses. A única exceção tinha sido um presidente britânico e a outra exceção foi o presidente português. Portugal conseguiu algo que a maior parte dos países europeus nunca conseguiu. Hoje, António Costa é presidente do Conselho Europeu, que é um lugar de grande responsabilidade e de grande capacidade no ‘concerto’ das instituições europeias. Tivemos Teresa Anjinho que foi eleita por grande maioria no Parlamento Europeu para Provedora da Justiça Europeia. São três exemplos de portugueses que se destacaram muito no conjunto dos órgãos europeus.

Tendo em conta o atual contexto geopolítico quais os desafios para a União Europeia. É preciso cuidados redobrados?

Com certeza que é necessário cuidados redobrados. Vivemos num mundo mais instável, com mais violência e em que a perspetiva da guerra está mais próxima do que estava há alguns anos. Portanto, sob esse ponto de vista, nós hoje temos de reforçar a segurança e defesa. E a circunstância de termos um Presidente dos Estados Unidos da América que não parece tão firme na defesa do Ocidente quanto foram os seus antecessores e que põe em causa muitas vezes o papel da Nato e até a aplicação do artigo 5.º que é a garantia da defesa mútua leva a que a Europa tenha de contar menos com os outros para a sua segurança e defesa e mais consigo própria. A responsabilidade da Europa é encontrar respostas próprias para reforçar a sua segurança e defesa. Uma exigência dos novos tempos que não era evidente há alguns anos.

E vimos pela pandemia a importância de dar resposta a uma só voz…

Não tenho dúvidas nenhumas disso. É claro que a união faz a força e que juntos somos mais fortes. E o exemplo da pandemia dá-nos duas lições. A primeira é que a Europa, ao longo da sua história, conseguiu reagir sempre que houve crises. A União quando é confrontada com uma crise parece que encontra respostas que não eram evidentes no momento anterior. Naturalmente isso não nos deve levar a desejar que haja crises permanentes para que a União tenha capacidade de resposta, mas dá-nos, pelo menos, a garantia de que, olhando para a história, não ficamos bloqueados com as crises, que temos soluções mais criativas e tiramos partido das dificuldades com respostas inteligentes. E a segunda é que conseguimos interpretar as normas ao limite. Isto é, se pensarmos bem, os tratados não atribuíam à União Europeia particular competência em matéria de saúde. A matéria de saúde pública era uma competência nacional, mas confrontados com a emergência da covid conseguimos interpretar o direito comunitário de forma que levou a Comissão Europeia a adquirir vacinas e a assegurar a sua distribuição. Se não tivesse havido essa decisão, alguns países, entre eles Portugal, que tinham menos capacidade de negociação no plano internacional não teriam tido a capacidade de imunizar a sua população tão bem e tão rapidamente como o fizemos em Portugal. Essa lição também nos dá uma pista de reflexão para a atualidade, nomeadamente para a segurança e para a defesa. Se na covid e na saúde fomos inteligentes o suficiente para interpretar os tratados de maneira a ter capacidade de resposta, talvez possamos fazer, atualmente, na área da cidadania e da defesa, sem precisarmos necessariamente de abrirmos um processo de revisão dos tratados, o que iria adiar qualquer decisão concreta uns 10 ou 12 anos, na melhor das hipóteses.

Como vê partidos a darem cartão vermelho à Europa e até quererem sair da moeda única?

Vejo isso como um retrocesso. A história que significou e o que significa hoje a nossa participação na Europa teria um amanhã bastante mais amargo se tivéssemos de ceder em tudo aquilo que ganhámos até ao momento e significaria voltar atrás naquilo que, a meu ver, são conquistas positivas para Portugal. Mas, de uma forma geral, não se vê muitos partidos a defender a saída da União Europeia. Há partidos que são um bocadinho mais críticos de alguns instrumentos, incluindo o Euro, mas não vejo que existam em Portugal posições tão radicais como existem em outros países europeus. E nos outros países europeus onde têm havido posturas mais radicais, recordo, por exemplo, o discurso de Marine Le Pen em França relativamente à Europa curiosamente abrandou quando houve proximidade ao poder. Nas últimas eleições presenciais, quando havia hipótese de Le Pen ganhar a segunda volta moderou o discurso e já não defendia nem a saída da França da União Europeia, nem a saída do Euro. Acho que alguns políticos populistas quando fazem um discurso mais radical é quando estão imbuídos daquele registo de partido de protesto, quando sabem que aquilo que dizem não tem consequência e quando percebem que pode ter consequência moderam um bocadinho o seu discurso.

E as consequências estão à vista com o Brexit…

Se se recorda bem da discussão que houve na altura do Brexit havia um grande receio nos comentadores com aquilo a que chamavam de efeito dominó. Há um país a sair, a seguir vai outro. Ora, o que se verificou foi exatamente o contrário, foi um efeito vacina, quando as pessoas se aperceberam das consequências económicas da saída do Reino Unido com o Brexit pensaram duas vezes e, em vez de haver um efeito cumulativo que acelerou ou que poderia acelerar a saída houve exatamente o contrário. Houve um grande reforço da coesão interna dos órgãos e das instituições da União Europeia, em que todos estavam mais unidos nas respostas, mesmo na negociação com o Reino Unido, porque perceberam que só mantendo essa unidade é que conseguiam ter mais força.

Em contrapartida assistimos aos ‘pulos’ que alguns países deram com a entrada na Europa, como é o caso dos países do Leste…

Sim, com certeza. É indiscutível que tiraram partido da União Europeia, alguns deles até nos ultrapassaram em termos de PIB per capita, o que significa que aceleraram bem e é isso que justifica o chamado efeito de chamada que a União Europeia tem. Neste momento temos 10 países, o mais falado é a Ucrânia, mas não foi o primeiro, a bater à porta a quererem ser membros do clube. Só quer entrar num clube quem percebe que há vantagens nisso, que o clube é um bom sítio para estar e que ajuda o desenvolvimento dos países. Se fosse mau estar na União Europeia íamos ver mais Brexits, eram mais os países a quererem sair do que a quererem entrar. Esta política de alargamento e esta tentativa de outros serem membros da União Europeia prova bem o sucesso que é este projeto.

Falou no caso da Ucrânia, mas a entrada será mais demorada do que a que Zelensky pedia…

Acho que já demonstramos claramente a nossa solidariedade com a Ucrânia e continuamos a demonstrar todos os dias na ajuda que damos a esse país e na pressão internacional que fazemos para que a Rússia, que foi a potência invasora e agressora, não saia vencedora deste conflito. Agora, relativamente à participação no clube há regras e essas regras estão fixadas nos chamados critérios de Copenhaga que são sobretudo três. E o que se exige aos países candidatos é que provem que estão em condições de entrar respeitando esses três critérios. Isso é um processo que não se faz de um dia para o outro, é um processo que tem o seu caminho e que não é tão rápido quanto aquilo que desejávamos. Em qualquer circunstância, já chamamos à Ucrânia estatuto de país candidato a par de outros que já tinham feito o pedido muito antes. Já acelerámos o que podíamos acelerar. Agora, não pode haver entradas por favores. Isto é, não podemos deixar entrar na União Europeia países que não cumpram os três critérios de Copenhaga, cabe à Ucrânia provar e temos de acabar com o quadro de guerra porque é muito complicado entrar na União Europeia um país que está em guerra aberta com o outro, embora com a consciência de que a Ucrânia foi invadida, não foi o invasor.

Qual a importância das cerimónias dos 40 anos da assinatura da adesão de Portugal?

40 anos são quatro décadas. Nestas 4 décadas já é possível fazer uma avaliação desta história de sucesso. E é bom tirar daqui conclusões para o futuro. O que me parece importante é não tanto olhar para o passado, embora seja sempre útil fazê-lo, mas sobretudo ter os olhos postos no futuro. E creio que junto dos jovens, junto da opinião pública, junto das escolas há uma história da nossa participação na Europa que tem de ser contada porque é uma história que nos deixa bem, porque enche Portugal de orgulho, mas é uma história que também fica bem na Europa. A Europa não nos bateu com a porta na cara, permitiu-nos entrar e nós hoje somos parte integrante desta grande família. E os jovens portugueses são parte fundamental deste processo, porque aquilo que a Europa e Portugal vai ser amanhã será relevantíssimo para o seu nível e qualidade de vida.

Tem memórias dessa altura?

Recordo-me bem das dificuldades que tínhamos em Portugal, na altura. E não é só com base nas estatísticas é também com base nas nossas memórias. Vemos das coisas mais pequenas às coisas mais relevantes o que era Portugal há 40 anos e o que é Portugal hoje.

Como, por exemplo?

Das coisas mais pequenas e mais ridículas lembro-me de quando vínhamos de Espanha e tínhamos de parar na fronteira éramos autuados se trouxéssemos mais do que dois pacotes de caramelos e mais do que uma garrafa de Gin Gordon’s porque não só havia controlo na fronteira como havia taxas aduaneiras para quem trazia mais do que os bens autorizados. Hoje, não é só com Espanha é com qualquer país em que podemos circular livremente. Há livre circulação de pessoas, há livre circulação de mercadorias, não há taxas aduaneiras. Temos a capacidade de nos estabelecer. Qualquer português nestes países não é tratado como imigrante, é tratado como cidadão. Tem direitos próprios, tem direitos laborais, tem direitos políticos. O português a residir nesses países pode votar e pode ser eleito para uma autarquia local no país em que reside. O estatuto que os portugueses têm hoje na Europa não tem nada a ver com aquele que tinham há 40 anos.