Quando assinou o Tratado de Adesão à União Europeia, Portugal tinha saído recentemente de uma situação de emergência financeira. Dois anos antes assistira-se à segunda intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) no nosso país. Mas em 1985 dá-se uma viragem: “A disciplina das finanças públicas foi restabelecida e fez-se a transição para uma política monetária e cambial gerida pelo banco central através de instrumentos de controlo indireto, criando-se também um efetivo mercado de dívida pública. Foi ainda aprovada uma profunda reforma fiscal que modernizou e racionalizou o sistema fiscal português”, recorda Carlos Tavares num artigo de opinião publicado no Nascer do SOL.
De acordo com o ex-ministro da Economia de Durão Barroso essa altura foi marcada por “uma mudança de grande alcance para a economia portuguesa, em que o Governo usou, consistentemente, todos os instrumentos de política de que dispunha e conseguiu um robusto crescimento, a par de reduções significativas da inflação e do peso do Estado na Economia”.
E acrescentou: “O clima de estabilidade financeira veio a permitir a entrada no primeiro grupo de países da moeda única. Essa foi uma nova e grande mudança de regime económico, pouco mais de uma década depois da anterior que, na verdade, ainda estava em consolidação. O novo regime económico e financeiro, em que a política económica ficava privada de instrumentos que tinham sido fundamentais – a política monetária e cambial e a discricionariedade da política orçamental – exigia que as políticas que permaneciam na esfera nacional – microeconómicas, fiscal e de rendimentos – fossem usadas intensivamente e de forma coerente entre si e com as políticas europeias. Isso incluía a necessidade de um processo de reforma persistente que garantisse, em cada momento, as condições de produtividade e competitividade da economia portuguesa”.
Fundos: salvação ou atraso?
É certo que Portugal com a entrada na União Europeia tem beneficiado de elevados montantes de financiamento, que permitiram a realização de milhares de projetos relacionados, por exemplo, com o desenvolvimento de infraestruturas rodoviárias, ferroviárias, portuárias, modernização da função pública, entre muitas outras apostas.
E os números falam por si. Entre 1986 e 2023, Portugal recebeu mais de 130 mil milhões de euros, tendo sido sempre um beneficiário líquido, isto é, sempre recebeu mais dos fundos europeus do que o montante com que contribuiu para o orçamento da União Europeia.
Mas se, para muitos, os fundos europeus têm contribuído para o desenvolvimento económico e social do país, a permanência das desigualdades leva outros a questionar se têm sido administrados adequadamente. A somar a isso há que contar ainda com as questões de transparência e de responsabilização na sua utilização que estão sempre associados a quem gasta estas verbas.
Ao i, João Duque lembra que “os fundos têm um objetivo que é o de reestruturar e reequilibrar as dinâmicas dentro da União Europeia”, referindo que, apesar de se querer que a União Europeia seja um espaço comum, “não é de facto um espaço comum em termos de decisão política, em termos de decisão económica e, por isso, mesmo, os fundos funcionam como uma tentativa de reequilibrar essas dinâmicas”.
O economista não hesita: “Os fundos estruturais para mim não são um mal. Vejo isso como uma necessidade. Não os diabolizo. Foram essenciais para apoiar o desenvolvimento infraestrutural que depois permitiu naturalmente que os negócios se instalassem e que evoluíssem naturalmente. Não compro essa tese de que os fundos estruturais são negativos. Aliás, se não fossem os fundos estruturais não tínhamos as cidades como temos e não tínhamos provavelmente a atratividade que temos para o turismo”.
E acrescenta: “Não beneficiámos apenas das infraestruturas associadas às autoestradas. As cidades, as vilas, a administração pública, nomeadamente autárquica, tiveram acesso a fundos. Qualquer pessoa que vai a uma pequena cidade, a uma vila de Portugal vê que as coisas estão arranjadinhas, limpinhas e muito disto é contributo de um investimento, o que permitiu depois que os nossos fundos fossem canalizados para outras áreas”.
Ainda assim, admite que a sua utilização, em determinados momentos, poderia ter sido diferente. “Os fundos podiam ser calhar serem mais canalizados para outras áreas. Mas estávamos muito carentes e essa dinâmica de infraestruturação permitiu depois, acompanhada com algumas reformas, por exemplo, que a iniciativa privada se dirigisse bastante para o imobiliário. E Portugal só é atrativo se tiver condições de infraestrutura, porque se não houver estradas, se não houver portos, se não houver aeroportos ninguém quer vir para cá. As infraestruturas foram muito importantes para se poder desenvolver atividade económica”, refere ao nosso jornal.
Opinião diferente tem Nuno Palma, autor do livro As Causas do Atraso Português que diz que os fundos europeus são como o ouro que vinha do Brasil e que só contribuem para o atraso do país. Em entrevista ao Nascer do SOL_chegou a explicar o seu argumento: “Os fundos europeus distorcem a economia e o processo político. Em Portugal têm efeitos particularmente negativos, por comparação com alguns outros países. Primeiro porque Portugal foi o país que mais recebeu destes fundos em relação ao tamanho da sua economia. Segundo, porque em Portugal eles chegaram num contexto de instituições fracas, de capital humano particularmente baixo (por contraste com o que aconteceu a partir do início do século XXI na Europa do Leste), e com um ambiente cultural criado pela atmosfera do pós 25 de Abril, que tornou Portugal num país mais à esquerda e mais estatista do que os seus congéneres europeus. Esta explicação cultural não tem uma raiz histórica profunda, mas é simplesmente resultado da história da segunda metade do século XX, e em particular do ambiente sociocultural que a transição para a democracia causou, até por ter sido uma verdadeira revolução (ao contrário do que aconteceu em Espanha). Portugal não tem capital humano, nem instituições suficientemente fortes, para que seja possível uma aplicação eficiente dos fundos europeus. O melhor é acabarem”.
Já quando questionado se a Europa deveria repensar a distribuição de fundos, o economista lembra que no livro considera alguns cenários, incluindo esse. “Os fundos Europeus infantilizam o país. Portugal é um adulto de 40 anos a receber mesada da mãe Europa. Acabar com os fundos teria benefícios grandes para a população, mas principalmente a prazo, enquanto os custos estariam concentrados em quem deles hoje beneficia. Logo, estes últimos têm o incentivo a fazer muito barulho para manter tudo como está. É natural, ainda que míope e egoísta. A solução terá de vir de fora. Internamente, a única decisão responsável seria um pacto de regime em que os maiores partidos acordassem rejeitar mais fundos Europeus. Infelizmente, isso não parece provável. Aproveito para notar que outros países da Europa, incluindo vários países da Europa do Leste, receberam fundos europeus e convergiram, ainda que não seja por enquanto claro qual o efeito líquido dos fundos. Mas os fundos só por si não podem ser uma boa explicação para o atraso. Precisam de interagir com a natureza das instituições, mas também precisamos de compreender porque é que as instituições portuguesas são tão fracas, e não se reformam”.
Maior fundo de sempre
Portugal está atualmente a aplicar o maior fundo de sempre que recebeu. Foi apresentado como uma ‘bazuca’ por António Costa que estava, na altura, do Governo e, no entender, de João Duque o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) “é importante e não se deve desperdiçar”, apesar de reconhecer poderia ter sido aplicado num outro tipo de atividades. “Foi muito canalizado, mais uma vez, para obras públicas quando poderia ter sido aplicado mais em empresas e em investimento mais seletivo. Posso criticar algum excesso em determinadas áreas, mas se calhar isso não teria dado a António Costa a maioria absoluta. Quem tem o dinheiro na mão começa a distribuir, em vez de fazer uso do dinheiro para o que deve ser, mas isso é outra história. Agora é tarde para mexer, agora é hora de executar”.
É certo que estes atrasos já levaram a Comissão Europeia a pedir a Portugal para acelerar a execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). O executivo comunitário recorda que o país já recebeu 51,3% do seu envelope financeiro, numa altura em que falta menos de um ano e meio para o fim do prazo. Caso contrário, de acordo com o comissário europeu Valdis Dombrovskis, Portugal corre o risco de perder as verbas ainda não executadas.
De acordo com os dados da Comissão Nacional de Acompanhamento (CNA), 33% das medidas da bazuca europeia estão em estado crítico (20%) ou preocupante (13%), com destaque para as áreas da habitação, saúde e digitalização de empresas. A avaliação qualitativa do organismo liderado por Pedro Dominguinhos acrescenta que 35% dos 119 investimentos ou medidas analisados pela CNA precisam de acompanhamento.
Ao todo, a ‘bazuca’ tem um valor de 22,2 mil milhões de euros, com 16,3 mil milhões de euros em subvenções e 5,9 mil milhões de euros em empréstimos do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, que dizem respeito a 376 investimentos e a 87 reformas.