O Céu Pode Esperar

Somos ambiciosos e estratégicos no LinkedIn, felizes e bem-sucedidos no Instagram, indignados e certeiros no X e ainda melancólicos e profundos no Spotify. Não mentimos, fragmentamo-nos. Como Joe, habitamos corpos que não são nossos, mas tendemos a esquecer qual era o original.

Morremos várias vezes antes de morrer. A primeira é quando deixamos de surgir no Google. A segunda, quando a nossa última mensagem diz “vista pela última vez”. A terceira, talvez a mais cruel, é quando a nossa voz, recriada por inteligência artificial, diz coisas que nunca diríamos, mas que soam melhores do que nós próprios. E há ainda uma quarta, silenciosa e devastadora, quando nos tornamos irreconhecíveis até para quem fomos.

Em 1978, Warren Beatty fez um filme que colocava uma pergunta simples: o que permanece quando tudo muda? “O Céu Pode Esperar” contava a história de Joe Pendleton, um jogador de futebol americano que morre prematuramente por causa de um erro burocrático celestial. É-lhe dada então uma segunda oportunidade, mas tem de habitar o corpo de um milionário corrupto. A questão central não é se ele consegue adaptar-se à nova vida, mas se consegue manter a sua identidade moral, a sua bondade, justiça e lealdade, num corpo e numa realidade completamente diferentes da sua. Joe conserva a sua alma, justa, bondosa e profundamente teimosa que sempre teve. O corpo era emprestado, o carácter, não.

Nós, fizemos precisamente o contrário, guardámos o corpo e alugámos a alma a cada aplicação que abrimos diariamente.

Somos ambiciosos e estratégicos no LinkedIn, felizes e bem-sucedidos no Instagram, indignados e certeiros no X e ainda melancólicos e profundos no Spotify. Não mentimos, fragmentamo-nos. Como Joe, habitamos corpos que não são nossos, mas tendemos a esquecer qual era o original.

E, no entanto, continuamos online muito depois de desaparecermos. As contas respiram sozinhas, os álbuns permanecem, as mensagens ecoam no vazio. Podemos ser recordados sem ser lembrados, presentes sem presença, como se fôssemos uma espécie de fantasmas digitais.

Há quem fale com um pai falecido através de um chatbot. Há quem mantenha o número do avô só para ver o nome surgir quando o telemóvel vibra. E há também quem publique todos os dias como se isso bastasse para existir. A tecnologia promete-nos a imortalidade mas entrega-nos uma sobrevida desumanizada.

E o amor resiste a esta fragmentação? No filme, Betty apaixona-se pelo milionário, mas está realmente a apaixonar-se por Joe que habita esse corpo. Reconhece a pessoa verdadeira por detrás da máscara social tal como Romeu, que reconheceu Julieta através das máscaras do baile de Verona. Hoje, apaixonamo-nos por versões editadas e ficamos desapontados quando surge o humano real, sem filtro nem roteiro pré-definido. O amor tornou-se content, o desejo, algoritmo e a intimidade, engagement.

Mas o amor, tal como a verdade, exige autenticidade. Sócrates amou a verdade mais do que a vida, escolhendo a cicuta em vez de trair os seus princípios. A sua integridade era inegociável, um farol de coerência num mundo de pressões.

E nós, onde ficamos? Como escolhemos manter-nos íntegros numa época que nos recompensa pela fragmentação? Todo o edifício ético que construímos desde o Iluminismo, a dignidade da pessoa humana, a importância da razão, a busca da verdade, não se baseia precisamente na ideia de que existe alguém lá dentro, coerente e responsável pelos seus actos? Se nos fragmentamos até ao infinito, quem responde por nós? Quem ama? Quem é amado? Quem procura a verdade?

As gerações anteriores enfrentaram crises existenciais profundas, guerras, totalitarismos, o absurdo da condição humana. Albert Camus, o filósofo do absurdo, falava da necessidade de encontrar sentido num mundo que não o oferece. Viktor Frankl, psiquiatra e sobrevivente de Auschwitz, descobriu que mesmo nos campos de concentração era possível preservar um núcleo irredutível de humanidade. Mas em ambos os casos, havia sempre alguém lá dentro, um “eu” inteiro, a enfrentar a crise.  E se essa pessoa já não existir? Como encontrar sentido quando somos fantasmas de nós próprios? Para que serve uma vida perfeitamente documentada mas não vivida?

Mas o pior não é o que fingimos ser, é o que deixámos de conseguir sentir. Já não temos tempo para a dúvida, para a hesitação, para o erro. Vivemos em modo optimizado, sem espaço para a vulnerabilidade que nos faz reais, e tornamo-nos, assim, eficientes mas vazios, conectados mas sós.

E neste ruído permanente, vamos morrendo devagar, like após like, swipe após swipe, versão após versão.

Não podemos voltar atrás, nem devemos. A evolução digital é irreversível, e seria ingénuo romantizar um passado que também fragmentava, só que de forma diferente. A questão não é rejeitar a tecnologia, mas recusar que ela nos rejeite a nós. Podemos aprender a diferença entre usar a rede e ser usados por ela. Entre estar conectados e estar ligados. Entre sermos encontrados online e encontrarmo-nos a nós próprios. O risco não está em nos tornarmos máquinas, está em nos tornarmos humanos perfeitamente optimizados mas completamente vazios. Se não distinguirmos entre os momentos em que escolhemos ser múltiplos e aqueles em que precisamos de ser inteiros, corremos o risco de ficar perfeitamente visíveis, completamente rastreáveis e eternamente ausentes.

O céu pode esperar, mas conseguiremos esperar por nós? Parar para sermos verdadeiros, sem máscaras, diante de alguém? A eternidade talvez não esteja no futuro, mas no instante em que alguém nos vê sem scroll. Quando ouvimos sem preparar a resposta, quando o toque é real e o silêncio basta. Se ainda conseguirmos isso, nem que seja uma vez, o céu já cá está e, tal como Joe, podemos teimar em sermos nós próprios, inteiros, até ao fim!