Los Angeles. Demónios à solta

A segunda maior cidade dos Estados Unidos tem sido palco de intensas manifestações ao longo da última semana. Trump enviou tropas nacionais e entrou em conflito direto com Gavin Newsom.

Na passada sexta-feira, dia 6 de junho, o caos tomou conta das ruas e praças de Los Angeles, no Estado da Califórnia. Os protestos devem-se sobretudo à linha dura seguida pelo Presidente norte-americano, Donald Trump, no que diz respeito à imigração. De acordo com a ABC, a gota de água foi uma série de rusgas levadas a cabo pelo U.S. Immigration and Customs Enforcement (ICE) numa cidade em que, importa destacar, 33% da população é imigrante.

Alguns dos protestos foram efetuados de forma pacífica, mas, como as imagens que nos chegam de Los Angeles colocam em evidência, a violência foi utilizada em grande escala e de forma constante. Segundo dados apresentados pela CBC, os tumultos civis desta última semana vitimaram mortalmente 64 pessoas, feriram outras 2 mil e 300 e causaram danos materiais no valor de cerca de mil milhões de dólares, sendo assim possível estabelecer um paralelismo com o que aconteceu há cinco anos em Minneapolis, quando George Floyd morreu às mãos de um polícia.

Uma visão singular

Alberto Carvalho, um ex-imigrante ilegal, ou «sem documentos», como o próprio escreveu há dois dias na revista Time, é agora o superintendente do Los Angeles Unified School District (LAUSD), o segundo maior distrito escolar do país. O seu artigo numa das mais conceituadas revistas americanas fornece algumas luzes sobre o porquê dos protestos: «Nos últimos meses, o governo federal enviou agentes de imigração para as nossas comunidades – por vezes diretamente para as escolas ou perto delas. Interrogaram pais e, nalguns casos, falaram com alunos. Os agentes federais de imigração percorreram os bairros com equipamento tático e veículos visíveis e montaram postos de controlo à porta dos locais de trabalho. E este fim de semana, a Guarda Nacional foi destacada para a nossa cidade». «Para ser claro», continua, «nenhuma criança em idade pré-escolar, nenhum aluno da primeira série, nenhum estudante do segundo ano do ensino médio a caminho da aula representa qualquer risco para a segurança nacional dos Estados Unidos. E, no entanto, a resposta a que estamos a assistir assemelha-se mais a uma operação militar do que a um processo de imigração. O resultado é um trauma, medo e desconfiança generalizados – especialmente nas nossas escolas, onde as crianças se deviam sentir mais seguras».

Estragos “de partir o coração”

Mas, independentemente disso, o tema da violência e dos estragos causados na sequência dos protestos é inevitável. A este respeito, a jornalista Amanda Starrantino, da CBS News, entrevistou vários proprietários de negócios que acabaram por ser vandalizados. «Mike Nakagawa vive no centro da cidade há anos, mas na terça-feira de manhã está a ver as consequências no seu bairro, vendo lojas fechadas, janelas fechadas com tábuas e graffitis frescos a marcar uma noite de agitação. ‘É lamentável que algumas tenham fechado, mas sinto-me encorajado pelo facto de não estarem mais marcadas e partidas do que eu poderia ter imaginado’, disse Nakagawa». «Mas nem todos os estabelecimentos foram poupados», continua Starrantino: «Otoro, um restaurante de sushi, teve a porta arrombada e a caixa registadora roubada. ‘Não é um verdadeiro local de protesto. Estão a aproveitar-se da situação?, disse Henry Wang, um empreiteiro».

Mas nem só os restaurantes e os pequenos estabelecimentos comerciais foram afetados; foi também a cultura, em particular um edifício específico que revela a contradição entre a causa dos protestos e o infeliz vandalismo subsequente: «o Museu Ítalo-Americano de Los Angeles também foi danificado. A sua histórica fachada de tijolo está agora marcada pela segunda vez este ano. ‘Quando se vandalizam museus, instituições culturais, empresas familiares, o impacto é enorme’, disse Marianna Gatto, diretora executiva do IAMLA. ‘É um museu que emprega pessoas. É um museu sobre imigração gerido por imigrantes e pelos seus filhos e netos.’». A jornalista americana termina a reportagem com uma frase marcante de Mike Nakagawa, o já mencionado habitante de Los Angeles: «É de partir o coração ver como um indivíduo que tenta ganhar a vida é afetado por tudo isto».

A reação federal

Pouco tempo após a eclosão dos protestos, Donald Trump enviou tropas da Guarda Nacional para a cidade californiana, alegando, num comunicado oficial publicado pela Casa Branca, que «os protestos violentos ameaçam a segurança e causam danos significativos aos centros federais de detenção de imigrantes e a outros bens federais.  Na medida em que os protestos ou atos de violência inibem diretamente a execução das leis, constituem uma forma de rebelião contra a autoridade do Governo dos Estados Unidos».

Na terça-feira, em declarações ao subcomité de Defesa da Câmara dos Representantes, o Secretário da Defesa, Pete Hegseth, disse que a administração acredita que «os agentes do ICE devem poder realizar as suas operações em segurança e destacámos a Guarda Nacional e os fuzileiros navais para os proteger no exercício das suas funções, porque devemos poder fazer cumprir a lei da imigração neste país».

Assim, desde segunda-feira, foram destacados, além de dois mil soldados da Guarda Nacional, setecentos fuzileiros da Marinha dos Estados Unidos.

Ainda na segunda-feira, o Presidente, através de uma publicação nas redes sociais, disse que «se o Governador Gavin Newscum, da Califórnia, e a Presidente da Câmara Karen Bass, de Los Angeles, não conseguirem fazer o seu trabalho, o que toda a gente sabe que não conseguem, então o Governo Federal intervirá e resolverá o problema, os RIOTS & LOOTERS, da forma como deve ser resolvido!!!». Note-se que o nome do Governador é Gavin Newsom, mas Trump, há já algum tempo, escreve, de forma propositada e em tom de escárnio, o apelido do democrata de forma errada.

Tensão administrativa

Dadas as declarações de Trump, seria previsível que o conflito entre o chefe de Estado e o governador californiano se agudizasse, também porque no quadro político norte-americano os Estados são detentores de um grau elevado de autonomia.

Num comunicado, publicado na sua conta oficial da rede social X, Newsom disse que «Donald Trump, sem consultar os líderes das forças policiais da Califórnia, requisitou 2.000 membros da Guarda Nacional do nosso estado para serem destacados para as nossas ruas. Ilegalmente e sem qualquer motivo. Este descarado abuso de poder por parte de um Presidente em exercício inflamou uma situação inflamável, colocando em risco o nosso povo, os nossos agentes e a Guarda Nacional». Newsom acusou ainda Trump de se estar a comportar como um tirano.

Também o procurador-geral californiano, Rob Bonta, teceu duras críticas ao Presidente republicano, afirmando que o seu comportamento «não é apenas imoral – é ilegal e perigoso» e garantindo que recorreram ao tribunal para «que impeça imediatamente a Administração Trump de ordenar que os militares ou a guarda nacional federalizada patrulhem as nossas comunidades ou se envolvam em atividades gerais de aplicação da lei fora da propriedade federal».

Assim, resta esperar pelos desenvolvimentos na segunda maior cidade do país, que aparenta estar a acalmar. O que é certo é que a relação desta administração com a chefia do maior Estado do país (em termos de população) parece irrecuperável.