De Árgia, cá de cima, não se vê nada; há quem diga: ‘É lá em baixo’ e só nos resta acreditar; os lugares são desertos. De noite, encostando o ouvido ao chão, às vezes ouve-se bater uma porta».
Italo Calvino in As Cidades Invisíveis.
A questão da droga desapareceu dos radares da Comunicação Social. Isto quando é óbvio, pelas apreensões, o aumento do tráfico de droga, fruto do empoderamento dos cartéis na América Latina mas também de alterações políticas. A nova legislação portuguesa só facilitou a cadeia doméstica de distribuição: temos uma ‘lei seca’ aperfeiçoada com a cumplicidade do poder político. Seria por isso normal que houvesse, no espetro partidário, quem defendesse a regulação e a formalização da venda de droga pelo Estado, quebrando o negócio ilícito. E quem defendesse medidas mais duras, como o agravamento de penas e medidas de coação para o consumo em espaço público.
Em vez disso, a política ignora o tema. Mesmo quando há uma conexão entre o tráfico e a imigração, como na Operação Porthos, em que se verificou que entraram toneladas de cocaína através dos portos e que os funcionários eram cúmplices e estavam às ordens do PCC – Primeiro Comando da Capital. Esta multinacional do crime com origem no Brasil já tem, através da imigração descontrolada, tentáculos em Portugal. Ouviram o Chega falar no assunto? Eu não, ainda que todos saibam que o tráfico tem relação direta com o branqueamento de capitais, o enriquecimento ilícito e a corrupção, como é notório na citada operação.
As receitas da droga são extorquidas à sociedade como uma dízima, através dos dealers que operam às claras. Estão protegidos pela lei que lhes permite invocar que a droga é para seu consumo, quando de facto a vendem a pronto aos toxicodependentes. Estes pagam o vício cometendo crimes contra a propriedade e furtando coisas de baixo valor, mas que causam caros e irritantes prejuízos aos proprietários.
O abuso de substâncias é, igualmente, causa direta do aumento dos sem-abrigo e tem impacto na violência doméstica e na saúde pública, com o aumento exponencial de doenças infecciosas. É uma ameaça real para muitas famílias cujos filhos são tentados a experimentar até ficarem reféns do produto; para as pessoas que, vivendo nos epicentros do tráfico, se veem forçadas a abdicar das suas liberdades; para muitos velhos cujos parcos proventos são extorquidos por familiares alienados pelo consumo. Sim, a normalização da droga contribui para o ciclo inexorável de pobreza, para o deslaçamento da sociedade, para a impunidade perante a lei.
À beira das autárquicas, a direita defenderá que falta um polícia em cada rua e mais videovigilância; a esquerda resumirá tudo um problema social e não deixará de asseverar que traficantes e dealers têm direito a habitação social, mesmo que a utilizem como depósito de distribuição. Se algum for por isso despejado, enquanto os vizinhos aplaudem a medida, chegam os moralistas da esquerda para garantirem que ‘coitada da traficante, até já esteve presa, foi castigada, e não pode ficar sem a sua casa’.
Vêm aí os festivais de verão, onde é tão fácil comprar droga como cerveja. Os filhos dos mais ricos podem consumir ou não, mas sabem e toleram aqueles que vendem as drogas da moda. Os filhos dos mais pobres também sabem, porque os familiares dos dealers exibem no bairro e na escola o seu poder de compra.
Sim, é este o maior flagelo social, transversal no modo e no alvo. E mexe com muito dinheiro. Coisas que a que somos insensíveis e queremos invisíveis.