Não é ainda o livro de memórias, mas está cheio delas. José Fragata, cirurgião cardíaco, que tem no currículo mais de dez mil operações – transplantes de coração serão quase 300 e de pulmões à volta de 30/40 –, decidiu contar algumas das histórias por que passou, falando muito na relação entre médico e doente, e da Medina Humanista. No livro Histórias da Vida de um Cirurgião Cardíaco, Fragata fala do sucesso e do insucesso e de como é ser acusado de assassino, não faltando questões intrigantes, como as dos doentes transplantados que ‘ficam’ com os ‘sentimentos’ do dador. Deixou de operar quase há um ano, e fê-lo por razões pessoais, a mulher que sempre foi a sua anestesista decidiu reformar-se, cansou-se também de ouvir a pergunta se ainda operava, e também o fez por questões de contexto, já que a realidade hospitalar é hoje bem diferente. «Tomei a atitude, que acho que é um desperdício, mas que assumo, de não operar mais. Agora estou em comissões ministeriais, apoio candidatos à presidência, escrevo livros e talvez ainda marque algum cirurgia humanitária, porque acho que estou bem ainda para isso».
«A geração dos chamados dinossauros já desapareceu. Não me considero velho, atendendo aos padrões atuais, tenho 71 a caminho dos 72, mas parte do nosso exame de liderança é sobretudo a qualidade daquilo que deixamos. Tenho a minha consciência tranquila de ter treinado gente, de lhes ter dado as ferramentas para trabalharem bem», concluiu.
No livro escolhe situações que o marcaram. Uma das primeiras histórias é a da atleta transplantada, que acabou por concorrer às Olimpíadas para Transplantados em Bangkok. Foi um caso de superação incrível, nem o professor acreditava que a doente sobrevivesse quanto mais ir a umas Olimpíadas… Este livro é muito à volta de uma coisa que a maior parte dos leitores não conhece, mas cada vez se fala mais, que se chama medicina narrativa. Nós, normalmente, quando vemos um doente, focamo-nos muito nos aspetos que tem a ver com a doença, com as queixas, os sintomas que tem e os sinais que apresenta, mas nós nunca podemos desligar esse doente/doença do doente/pessoa e da pessoa que é. E essa pessoa tem família, tem relacionamentos, e esta Medicina narrativa é uma Medicina virada para as humanidades, é uma Medicina que encara o doente naturalmente como doente, mas encara o doente no contexto da sua vida, da sua família, dos seus anseios, tudo isso. Essa rapariga, que hoje é uma mulher adulta, foi transplantada há 20 e tal anos, superou ela própria a doença que tinha. Claro que nós demos uma boa ajuda, mas este livro tem histórias que me marcaram e eu antes que me esquecesse, com o tempo a memória tende a esfumar-se, achei que devia escrevê-las e, sobretudo, mais importante do que escrevê-las, foi no final de cada história ter uma reflexão séria sobre aquela história. E isso aí tem uma componente didática, porque nós, as pessoas mais velhas, noutra altura da vida, temos a presunção, se calhar a obrigação, que devemos deixar legados de ensino. Cada história tem uma interpretação e essa interpretação é plasmada depois de uma reflexão, essa sim, mais séria, enfim, até com o apoio bibliográfico e documentada, feita de uma forma, digamos, mais científica, que visa basicamente espremer dessa história um sumo que possa servir para as pessoas que aí estão e que aí vêm, ficarem com alguma ideia. Mas este livro é, sobretudo, à volta daquilo que é chamado a outra Medicina, que é a Medicina das humanidades.
A fé entra muito nesta Medicina das Humanidades? A fé é inerente – excluindo um pequeno número de agnósticos de base altamente respeitáveis –, é quase inseparável da humanidade, e quando falo em fé, não falo só em religiões, falo no acreditar em qualquer coisa, seja em valores, seja em seres divinos, seja no que for, em divindades! A família dessa rapariga teve sempre uma enorme fé e provavelmente eu teria desistido. Quando a determinada altura ela resolveu concorrer às Olimpíadas para Transplantados e me veio mostrar a medalha, disse-lhe para tirarmos uma foto, ao que me respondeu: «A medalha foi o senhor que a ganhou e quero que fique com ela». Tenho a medalha comigo em casa. Ela acreditou sempre, não só que ia ganhar uma prova nas Olimpíadas, como acreditou que mesmo com uma neoplasia cardíaca, iria ter uma vida normal. E hoje é uma pessoa que tem uma vida normal. Isso é uma forma de fé.
No livro fala que não sabe se houve milagres no bloco operatório. Diz que, por vezes, sentiu que não estava só… Sou basicamente um homem da técnica e da ciência, mas senti várias vezes na minha vida que não estava só. Signifique isso o que significar. Todos nós temos histórias na vida, que se estivermos atentos a ela, nos marcam exatamente nessa perspetiva. Não vou cair na tentação de dizer que há milagres ou não. Há coisas de uma elevada improbabilidade e que naturalmente podem ter interpretações diferentes. No livro digo isso mesmo, não me comprometo. Deus me livre agora de pensar que algo que fiz ou que aconteceu aos doentes foram milagres. Deus me livre! Nunca iria por aí.
Sim, mas diz, por exemplo, no caso concreto de um bebé de seis meses que foi transplantado… Que hoje é pai de oito filhos.
Mas diz que foi a fé dos pais que foram a Fátima no dia do transplante que… Essa fé é absolutamente inquebrantável. Essa fé marcou-me pela força de acreditar daquela família, quando eu próprio não acreditava. Nunca terei uma fé tamanha. Estamos a falar de uma criança de seis meses com uma coronária esquerda anómala, uma situação tremendamente grave, falamos de uma insuficiência circulatória respiratória aguda. Eu tinha acabado de regressar do Reino Unido, nunca tinha feito uma cirurgia daquelas sozinho, para mim era um desafio colossal, mas não havia mais ninguém, teria que ser eu. Aliás, na altura, no país seria eu seguramente. E, em condições normais, o resultado teria sido mau. E, de facto, nós na altura explorámos formas de assistência do coração que nunca tinham sido usadas, provavelmente até na Europa, seguramente que não, porque era o que tínhamos à disposição e, de repente, nisto tudo surge uma família com uma fé brutal, há o equipamento que pára inexplicavelmente, sem uma razão física para isso. Não faço comentários de interpretação sobre isto…
Para quem não leu o livro, diga-se que o aparelho no bloco operatório deixou de funcionar a meio da cirurgia, mas quando foi enviado para os EUA para ser reparado receberam como resposta que o mesmo nunca esteve desligado e estava perfeito. São máquinas que não avariam, como é óbvio, são como os motores dos aviões. A família, no dia da operação, não quis estar ao pé do filho e foi para Fátima. São devotos profundos de Fátima. Aliás, são uma família muito numerosa. Curiosamente, o miúdo que agora é homem com 35 anos, isso foi em 1993, é já pai de sete raparigas e de um rapaz. Estas histórias marcam-nos. Além da demanda técnica, sempre vi nos doentes uma componente humana enorme. Não é lamechas, nem piegas. Nós não podemos dissociar as pessoas da sua religião, da sua entourage familiar, dos seus anseios, e isso é uma forma de medicina narrativa. E estas histórias que eu trouxe aqui foram todas de uma intensidade muito grande, umas com final feliz, outras com final infeliz.
Para terminarmos as histórias dos ‘milagres’… Não gosto de lhe chamar milagres, diria que são factos para os quais não tenho explicação.
Houve colegas que passaram pelo mesmo e que, por vergonha, não o dizem? É possível. Os cirurgiões são homens. Aliás, um dos capítulos do livro é sobre de que são feitos os cirurgiões. Os cirurgiões são homens, os médicos são homens. E, obviamente, há médicos agnósticos, há médicos profundamente devotos. Acho que depende do modo como cada um está desperto para perceber as mensagens e as realidades com que lida. A Medicina tem uma espiritualidade própria, a Medicina, como dizia o professor João Lobo Antunes, é uma epistemologia de valores. E esses valores hoje, e não queria cair aqui no vício dos velhos, mas estes valores da Medicina hoje são valores que estão muito esquecidos, suplantados que estão por um excessivo tecnicismo e por uma burocracia e um conflito de interesses insanável. Temos de ter cuidado, porque a medicina verdadeiramente… tratar alguém é uma coisa, curar alguém é uma coisa, mas curar é curar o corpo e a alma. E hoje em dia nós estamos muito submersos na inteligência artificial, nas novas tecnologias, é tudo tecnológico. Muito pouco tempo para uma palavra, muito pouco tempo para uma proximidade, imensos conflitos de interesses no complexo médico industrial, uma burocracia terrível… E nós não somos só tecnologia. Volto a dizer, a Medicina é uma epistemologia de valores e um compêndio de humanidades.
Bill Gates disse há duas semanas que dentro de dez anos o cirurgião é praticamente uma coisa pré-histórica… É possível, já não estarei cá, ou estarei muito de saída, se tudo correr bem, normalmente, porque nós hoje em dia já estamos a tratar molecularmente determinadas doenças. A minha geração abre invariavelmente os doentes com grandes incisões. E hoje em dia uma grande parte dos procedimentos são feitas já por incisões mais pequenas. Não foi a minha formação, não foi a minha geração, mas não estou 100% convencido de que seja sempre melhor, mas é mais moderno. Não me espanta isso. Acho que a cirurgia não desaparecerá, haverá intervencionistas. Haverá pessoas certamente que intervêm diretamente, fisicamente no corpo, mas seguramente com ferramentas que usarão radiação óptica, ou que serão instrumentos finos, sem grandes incisões na pele dos doentes, de uma forma menos invasiva.
Quando diz que há conflitos de interesse entre doentes e médicos está a referir-se a quê? O que é um conflito de interesse da Saúde? O nosso primeiro mandato é o interesse do doente. O primeiro interesse de qualquer médico, moderno ou antigo, deve ser, deixe-me lembrar, o interesse supremo do doente. Quando se jura Hipócrates, mesmo que não se jure, qualquer médico que o é, deve zelar sempre pelo interesse primário do doente. Sempre que há outros interesses ditos secundários, que normalmente são interesses próprios, podem ser financeiros, podem ser de promoção, podem ser de carreiras, podem ser descoberta e fama. É normal que existam conflitos de interesse, que são inevitáveis na vida.
A doente que foi às Olimpíadas de Transplantados ofereceu-lhe a medalha. Que outro tipo de ofertas recebia? Houve tempos em que se davam galinhas vivas, etc. Ainda sou da geração que fez o chamado serviço militar médico, era o chamado serviço médico à periferia, isto no final dos anos 70. Nessa altura sim, não era excecional fazer consultas com ovos e galinhas e coelhos, até às vezes vivos, debaixo da secretária, era um meio de ruralidades. Houve uma altura que os doentes davam garrafas da Atlantis, canetas, quer no público como no privado. A gratidão não é pública nem privada, é humana. Depois, a partir de determinada altura, neste escrutínio que a sociedade civil faz dos bons costumes, houve uma regulamentação qualquer de que presentes superiores a 50 euros tinham que ser declarados ao Ministério da Saúde. Enfim. Presentes vindos de doentes têm uma inocência diferente dos presentes que podem vir da indústria farmacêutica, por exemplo, não é? E depois até havia um valor para os políticos que era superior ao valor dos médicos. As prendas caíram em desuso na sociedade moderna, era uma coisa dos anos 80, 90. Penso que é absolutamente excecional que um doente dê a um médico qualquer coisa.
Vamos então à relação com os doentes. Há uma história no livro que penso que é um belo retrato da sociedade portuguesa. Os serviços do hospital público recebem a notícia de que vão ter um doente VIP, pai de um então secretário de Estado. Diz que o médico mais famoso no serviço se ofereceu logo para fazer a cirurgia. Acontece que o doente não entrou na véspera da cirurgia e quando o fez estava com um infeção, sendo obrigado a permanecer mais de uma semana no hospital. Mas como o filho estava a ser muito contestado na comunicação social por assuntos vários, o pai foi mudando de estatuto para o pessoal do hospital, à medida que o filho ia sendo mais atacado. De doente VIP, passou a sr. Costa, depois a sr. José, e quando o filho foi demitido passou a doente do quarto 618, tendo até perdido o cirurgião famoso. Como se humaniza a medicina com estes comportamentos? O doente nem se apercebeu dessa mudança de tratamento, o problema dele era ser operado e foi-o com sucesso. Os doentes são todos iguais, mas o modo como são olhados não é necessariamente igual. Quando se vai operar ou tratar alguém que é conhecido, não é que seja melhor ou pior tratado que os outros, mas a pressão sobre quem trata é maior, por uma questão de visibilidade própria até para a instituição e, portanto, de repente, um hospital anónimo, um médico anónimo passa a ser alvo da comunicação social. Mas nenhum doente devia ser chamado pelo número do quarto. Também nenhum doente devia ser chamado pelo primeiro nome. Conto essa história que é caricata e que não me escapou porque estava atento e acabei por ser eu a operar o senhor, eu era um jovem especialista. Exatamente para rever os diferentes nomes, designações que os doentes são tratados. E, por exemplo, os doentes que estão num momento de grande fragilidade quando vão para o hospital não devem ser tratados pelo primeiro nome. Corrigi muitas vezes enfermeiros e médicos novos. Quando ligamos para uma dessas companhias telefónicas, normalmente tratam-nos por senhor José, não nos conhecem de parte nenhuma. Mas quando a pessoa está no auge de sua fraqueza, debilitado pela doença e com um futuro incerto, à mercê que o tratem, estar a depreciar-lhe inclusive o nome de como é tratado e o apelido, que é um direito intrínseco seu, acho que é de uma crueldade muito grande. Depois, há formas mais impessoais de tratar como utentes, são meros frequentadores que descaracterizam a Saúde e depois há modos de tratar, enfim, como perspetiva de negócio, como clientes.
E ainda há o doentinho. Sim, são atitudes protecionistas. Sabe que hoje em dia o paternalismo é fortemente condenado. Porque a autonomia, a capacidade de cada um decidir o que se faz consigo, naturalmente é um primado, é um primeiro valor ético, mas atenção! Na relação médico-doente, acho que o chamado bom paternalismo é positivo. Aliás, o João Lobo Antunes já dizia que quando uma pessoa vai ao médico, quando uma pessoa recebe uma má notícia de saúde é uma pessoa tremendamente frágil. Não precisa de ninguém que substitua a sua decisão. Mas precisa de alguém que o acompanhe de uma forma paternal. Portanto, o paternalismo como proteção empática, que não seja um substituto de decisão, não só é bom como é necessário. E, claro, quando chamam um doente de doentinho, é uma lamechice como outra qualquer, mas implica já aqui uma certa atitude diminutiva de reduzir à doença e se for acompanhada de paternalismo substituto de decisão, é absolutamente condenável. Agora, tratar um doente com proximidade, com empatia, é bastante positivo. Isso não pode é implicar que o médico diga: ‘Eu não lhe vou explicar o que lhe vou fazer, eu é que sei o que é bom para si’. Isso é absolutamente condenável. Era hábito nos anos 70, mas hoje em dia não há mais lugar para isso e ainda bem.
Mas existe ainda. Sim, mas existe mal e não deve ser aceite.
Há pouco falou do conflito de interesses entre médicos e doentes. Pode explicar com mais detalhes? Sempre que eu olhe para um doente primariamente como uma fonte de lucro e não como doente, obviamente estou a substituir o primeiro interesse, que é a salvaguarda do interesse desse doente, por outro interesse que é o lucro que eu possa ter com ele. Vamos lá ver, conflitos de interesse na Medicina, como em todas as atividades da vida humana, existem, agora, têm que ser temperados, têm que ser evitados e têm que ser declarados. É por isso que nós fazemos uma apresentação hoje em dia técnica e o primeiro ou segundo slide diz ‘não tenho conflito de interesse ou tenho, recebo dinheiro desta companhia ou daquela, porquê? Para quem me está a ler que dê desconto àquilo que eu vou dizer, ok? Portanto, se eu não tenho conflito de interesses, estou puro. Quer dizer, não há nada entre mim e aquela verdade. Claro que quando se faz carreira com doentes, quando se ganha dinheiro com doentes, sejamos claros, há uma potencialidade sempre de conflito de interesses. É óbvio que isso está na consciência de cada um, e há mecanismos regulatórios, quando as pessoas transbordam o que bebem, obviamente caem noutras esferas.
Não é por acaso que os hospitais privados têm reuniões de produtividade. Claro, mas isso não tem mal nenhum.
Não tem mal nenhum, é como quem diz. Já levei um familiar a um hospital privado onde o queriam operar a toda a ‘velocidade’. Quando o levei ao hospital público disseram-me que não percebiam a necessidade de tal cirurgia… Nunca foi operado e viveu longos anos sem essa cirurgia que era urgente… A medicina privada nada tem de pecaminoso. Na minha vida fiz, vamos lá ver, 48 anos de Serviço Nacional de Saúde e 33 anos de atividade privada. Nunca na minha vida os chamados conflitos secundários impediram ou prejudicaram os conflitos primários. O objetivo dos hospitais privados, obviamente, como empresas que são, é não ter prejuízo e, se possível, ter lucro. Mas isso é altamente defensável desde que a prática seja séria e não sacrifique o interesse primário do doente. Os grandes hospitais privados que nós temos hoje, tirando a maior ou menor agressividade comercial, zelam bem por por honrar isso. E isso está também na consciência de cada um dos profissionais, mas hoje há um grande escrutínio. Haverá casos pontuais. Mas tem conflitos de interesse também no setor público da saúde. Relativamente aos hospitais privados e do que conheço, estaria bastante tranquilo, pese embora possa haver certamente colegas e locais em que esta lisura não exista, mas não ficaria muito preocupado com isso. A Saúde tem outras falhas.
Como se gera uma emoção quando alguém diz ‘Mataste o meu filho’? Penso que teve um episódio destes, embora a criança apenas estivesse anestesiada. No caso em apreço, é o chamado contexto patético, porque há outros contextos mais pesados. Estamos a falar de uma senhora que vem quase de um regime tribal, que é trazida com a criança para ser operada, que nunca entrou numa cidade, nunca entrou num hospital, não sabe o que é a tecnologia e para ela uma pessoa que não se mexe, não é acordável, está morta. A filha estava sedada ainda e a mãe olhou para mim com ar de revolta e disse: ‘Tá morta, Mataste a minha filha’. Sinceramente, e já lá vão muitos anos, aquilo provocou-me um enorme embaraço, porque como é que eu podia explicar àquela senhora o que era uma sedação, o que era uma anestesia? Nada, era impossível. Não havia comunicação possível. Agora, coisa diferente, é nós, depois de uma cirurgia mal sucedida, irmos falar com a família e, no momento da revolta, os familiares nos chamarem de assassinos, isso é mais pesado e é mais custoso.
Passou por algumas situações dessas? Claro, operei mais de 10 mil doentes, se a mortalidade for 2%, como diz o outro, faça-lhe a conta, não é? Há muitos doentes que não estão cá porque morreram em cirurgias que eu fiz.
E os familiares chamaram-lhe assassino? Sim, coisas desse género, porque é que operou, esse tipo de coisas. Uma coisa muito importante nesses casos é que os doentes e os familiares têm o direito e nós temos obrigação moral de dar explicações cabais daquilo que se passou. Às vezes são muito difíceis de dar essas explicações. Os erros acontecem, não devem acontecer, mas a verdade é que acontecem. Nós temos uma taxa, são números nacionais, 12%, 12 em 100, danos evitáveis em internamentos hospitalares em Portugal. São números da Escola Nacional de Saúde Pública. Isso não é mau nem bom. É parecido com os outros, a mediana é 10%, é parecido com os outros. Essa é uma realidade que tem a ver com a chamada segurança do doente, que é um problema de saúde pública à escala global e, portanto, quem vai ao hospital…
Mas também diz que uma em cada 300 pessoas pode morrer por erros cometidos. No âmbito da prestação de cuidados. Não são necessariamente erros dos médicos, são erros de pessoal de saúde, e erros, às vezes, do próprio sistema. A noção aqui da taxa dos chamados erros negligentes é de cerca de 4 a 5% em qualquer sistema. Os outros têm a ver com pessoas que cometem erros porque trabalham em sistemas altamente defeituosos, pressão excessiva, mau equipamento, más regras de funcionamento. Isto não é para desculpabilizar as pessoas. Vamos lá ver. Uma coisa é culpa, outra coisa é responsabilidade. São coisas diferentes. O direito às vezes quase se confunde, mas são coisas diferentes. E por isso nós separamos os erros, em chamados erros honestos e os erros negligentes. Os erros negligentes são muito feios. São os erros dos violadores de regras. Os erros honestos são erros de pessoas de bem que se levantam de manhã para ir trabalhar, e porque no alinhamento de circunstâncias abriram um pulmão onde não deviam, cortaram onde não deviam… Esses erros são erros que devem ser desculpabilizados, mas não desresponsabilizados, são coisas diferentes.
Mas também li no seu livro que 50% dos erros cometidos em Saúde são inevitáveis. Isso é verdade, são números internacionais. O público tem que ter noção disso. É porque a segurança dos doentes também diz respeito a eles próprios. Se o médico lhe prescreve alguma coisa e se esquece de lhe perguntar que medicamentos é que está a tomar, o doente deve ter esse cuidado, porque o doente deve fazer parte da equipa de segurança. A obrigação do médico quando prescreve alguma coisa é saber se o doente está a tomar alguma coisa que é compatível ou incompatível. Os doentes têm um papel na prevenção da sua própria segurança. O problema da segurança dos doentes, da insegurança dos doentes, é um problema real de Portugal e de todos os países.
No livro conta episódios muito insólitos na sua passagem pelo Médio Oriente. Foi imediatamente a seguir ao final da Guerra do Iraque, em 2004. Nós não temos noção. Mesmo eu que trabalhei em vários sítios, e que tive uma formação internacional prolongada… Mas nós estamos aqui neste canto e às vezes não temos consciência das diferenças culturais que existem. Nesses países, claramente, a relação patrão empregado é uma relação muito hierarquizada, muito forte. E isso começou logo no primeiro, no segundo ou terceiro dia de trabalho no hospital do Catar, quando o diretor do hospital pretendeu falar comigo. Era um colega meu, treinado no Reino Unido, vestido com sua veste árabe branca. No gabinete, que teria alguns 100 metros quadrados, zonas de oração, zonas de reflexão, disse-me simplesmente isto: ‘Aqui as regras são simples. Nós temos muito boas informações a seu respeito. Se as coisas lhe correrem bem, o senhor fica. Temos muito boas condições. Se correr mal, pode -se ir embora e até mais cedo do que pensa. Ah, e para sair do país nós temos que lhe passar um papel a dizer que estamos satisfeitos’. Veja bem, isto foi logo para começar. Ficou logo claro qual era a relação, eu era um cidadão já feito, enfim, independente, e pensei onde é que me tinha ido meter, mas já lá estava, tinha ido substituir uma colega americana que me pediu, e eles exigiram que para a saída dela houvesse outra pessoa. A guerra do Iraque tinha acabado e, portanto, ela pediu-me e eu já lhe tinha dito que sim. Foi uma experiência humana. Este livro vive de experiências humanas, falámos com colegas que não estamos a ver cara, só estamos a ver os olhos, porque estão de burka. Irmos ver um doente e a colega ter que subir num elevador e nós noutro, na cafetaria do hospital não podemos tomar um café com uma colega, porque há uma zona para as senhoras e uma para os homens. É estar a meio de uma cirurgia e o profissional que está a tomar conta da máquina do doente, dizer que tem de sair porque tem de ir rezar, e tinha uma sala de orações dentro do bloco operatório… Acho que estas histórias são tremendamente curiosas. Na altura deram-me algum stresse, mas acabaram por ser divertidas.
No livro conta a história que terá tocado na cara de uma enfermeira e que foi um sarilho. A partir desse momento ficaram a olhar para mim como se fosse um devasso. Fazia isso em Portugal todos os dias, para envolver o pessoal da enfermagem no tratamento e na equipa que só pretendia… Peguei no meu próprio estetoscópio, ouvi e auscultei, tínhamos feito a introdução de um pequeno tubo entre duas artérias no coração e, quando funciona, fica com um sopro, um barulho contínuo de assobio e que é prova de que está a funcionar bem e que todos os cirurgiões fazem a seguir para terem a certeza que está tudo bem. E aquilo tinha ficado particularmente bem feito, era um recém-nascido, e eu virei-me para a enfermeira que estava a tomar conta do doente e perguntei-lhe se ela tinha ouvido o sopro, e ela disse-me que nunca tinha ouvido. Peguei no estetoscópio, e como ela tinha a cara coberta com aquela coisa, o hijab, afastei-lhe gentilmente com os dedos para descobrir o conduto auditivo, pus-lhe o estetoscópio e a rapariga foi ficando vermelha, vermelha, as outras pararam todas, e aquilo quase parecia uma violação. A partir daí percebi onde é que estava, passaram a olhar-me de outra maneira e aquela rapariga nunca mais foi posta nos meus doentes. São coisas que uma pessoa não pode evitar, são choques culturais abissais.
Como é que um médico despe uma doente para a auscultar, etc. A enfermeira é que a despe, fica coberta, deixando só à vista a zona para auscultar, os seios tapados, etc, e se é uma rapariga nova o pai estará sempre presente ou o irmão mais velho.
Há diferenças anatómicas e clínicas na doença relacionadas com a raça? Isto existe? Existe. Há predomínio de doenças que são mais comuns em determinadas zonas do mundo. Por exemplo, há um orifício entre o coração, entre duas cavidades, dois ventrículos, que são comunicações interventriculares, comunicações entre dois ventrículos. No mundo ocidental, predomina um determinado tipo. No mundo oriental é muito mais frequente que esses defeitos sejam sob a artéria pulmonar e a aorta. Há algumas variações, provavelmente tem a ver com genética acumulada própria. Mas haverá algum padrão de variação de doença? Os doentes e as doenças são mais ou menos semelhantes. Mas, de facto, há partes do mundo e nomeadamente em relação ao Oriente e ao Ocidente, em que há variações, pelo menos na minha especialidade. Mas quem opera em Lisboa pode operar em Tóquio, perfeitamente.
Um dos capítulos mais curiosos do livro diz respeito aos transplantes de coração. Há uns bons anos transplantou o sr. Mário, como o trata no livro, que estava muito preocupado com a sua masculinidade, o modo como olharia para as mulheres, depois da operação. Ele estava com medo de herdar um coração de mulher. Na altura riu-se, mas uns anos depois percebeu… Que há diferenças na transplantação entre géneros. Nós testamos transplantação com base na compatibilidade entre grupos sanguíneos.
Consegue ver-se a diferença entre um coração de mulher e de um homem? Nós sabemos a proveniência, se fizermos o estudo cromossómico sabemos porque tem cromossomas masculinos ou femininos.
Mas só olhando, percebe-se as diferenças? Não, normalmente os corações de mulher são um bocadinho mais pequenos dos que os dos homens. Por uma razão ou por outra, durante anos, os resultados com a transplantação heterogéneo, de genes diferentes, deram piores resultados. Idealmente, a escolha deve ser homem/homem, mulher/mulher. É óbvio que isso nem sempre é possível porque há uma grande escassez de dadores. E, por isso, não ligamos muito a isso, e para mim isso não era um problema – na altura, eu comecei a transplantar em 1988. Tivemos o primeiro, acho que foi em 86, aliás, o doente transplantado mais velho do país, é um senhor de nome Camões e foi transplantado por mim há 36 anos, tem agora 86. O primeiro transplante foi a Eva Pinto, o professor João Queiroz e Melo foi o cirurgião, e eu estava como primeiro ajudante. Depois houve mais dois ou três e fiquei a transplantar autonomamente. O meu primeiro transplante autónomo, foi o senhor Manuel Camões, que tem hoje 86 anos e uma forma física total. Isso não é regra. A transplantação é sobretudo uma questão de compatibilidade. Não é uma questão técnica. Tecnicamente é simples. É uma questão de compatibilidade. E na altura não se sabia que havia diferenças entre os resultados. E há uma outra coisa curiosa, há mistura de cromossomas, há uma passagem de cromossomas do órgão hospedeiro para o recetor. Na altura não se sabia isso.
Ainda se fazem transplantes entre géneros diferentes? Claro que se fazem, por uma questão de necessidade. Procura-se otimizar o género, mas como há muita escassez de dadores… Vamos lá ver, isso são coisas que podem, enfim, em grandes análises, influenciar os resultados, mas não o suficiente para impedir que se dê oportunidade para transplantar alguém porque é de um género diferente.
No livro escreve que pessoas transplantadas podem ter mudança de preferência alimentar e de apetite, mudanças nos gostos artísticos e musicais e mudança de preferência sexual, novas memórias e fenómenos religiosos entre outros, adquiridos do dador falecido. Isso está descrito. É um mecanismo mal conhecido, mas que a ciência descreve, e eu cito as referências. Sabe que há uma grande carga emocional no coração e isso não existe, por exemplo, no pulmão. As pessoas têm noção que o coração é a sede da alma, não é a sede da alma, mas há pessoas que o seu coração tem o chamado little brain. Tem o seus sistema nervoso com algum autonomismo. Não é cognitivo, obviamente, Mas o coração recebe mensagens do cérebro e manda mensagens ao cérebro.
Diz no livro que está provado que os homens têm mais cérebro no coração e menos cérebro na cabeça. Enquanto as mulheres pensam mais com a cabeça do que com o coração. Tem a ver com a dimensão desse chamado pequeno cérebro que se descobriu há três ou quatro ou cinco anos. Existe um núcleo nervoso autónomo na massa cardíaca. Curiosamente, é diferente entre os dois géneros, por isso é que digo que um tem mais do que o outro. Nós pensávamos que o coração era comandado por estímulos pelo sistema nervoso autónomo, aquilo que a gente não percebe, mas que regula estarmos de pé, aguentarmos… Por isso é que o coração responde imediatamente às emoções, tem a ver com isso. Há evidência de que o coração modula também a atividade cerebral.
Manda mensagens para o cérebro? Sim, manda. Portanto, não é só o recetor, mas é o emissor também.
Como é que o coração do dador pode mudar preferências do recetor? Discutem-se vários mecanismos que eu analiso no livro. São mecanismos científicos, não acontecem em todas as pessoas, estão descritas… Vamos lá ver, é preciso perceber até que ponto é que essas mudanças são dissociáveis do impacto psicológico de ter um transplante e um transplante de coração. Porque ter um transplante tem sempre um impacto psicológico. Mas ter um transplante cardíaco, digo eu, que fiz cardíacos e que fiz pulmonares – muitos, devo ter feito cerca 300 transplantes cardíacos – é diferente. O modo como reagem ao transplante é diferente, e é uma carga afetiva e emocional muito grande com o recetor. Se isso acontece com base nisso, normalmente o recetor não sabe donde é que veio o doador. E isso é algo que nós fazemos questão de honra, até para evitar todo o tipo de ligações. A preocupação desse homem que eu chamei Mário, era que se o coração fosse de uma mulher ele depois deixava de ser aquele homem forte… Na altura achei a dúvida ridícula, mas depois percebi que, não sendo absolutamente justificada, de facto, ter um coração de mulher ou de homem faz alguma diferença.
Até porque diz que o estudo feito prova que há mudanças de preferências sexuais… Nalguns doentes. Que não fique a ideia que uma pessoa transplantada fica a gostar daquilo que o outro gostava. Não é isso, mas estão descritos em séries grandes, nalguns doentes, e depois exploram-se vários mecanismos, enfim, até alguns nebulosos, mas tudo isto se pode confundir um bocadinho pelo impacto psicológico de ter um coração de outra pessoa. Os doentes, normalmente, nunca perguntavam, ‘o coração já chegou?’, perguntavam, e estamos a falar de doentes deitados na marquesa, na atura de serem induzidos para a anestesia, isso é sincronizado, diziam assim: ‘A coisa já chegou?’. Veja bem a carga emocional… Nós estamos muito ligados ao coração. O coração tem uma carga emocional muito própria.
E já descreveu que tocar num coração tem sempre algo de especial, de mágico? Para mim, depois tornou-se um grande hábito, quando os alunos da Faculdade de Medicina passavam lá pelo serviço, quando via alguns com muito interesse, mandava-os desinfetar e punha-os ao meu lado e aproveitava para pôr as mãos deles no coração e alguns desses tornaram-se cirurgiões cardíacos. Para um jovem estudante de Medicina é uma experiência absolutamente marcante.
É mais simples fazer um transplante de pulmão do que do coração? Não, é muito mais difícil. O transplante de coração é uma operação simples, qualquer cirurgião maduro, treinado, faz um. São quatro ligações de vasos.