Relatório ‘bomba’ não faz cair Pedro Sánchez

O relatório da UCO foi mais uma machadada no governo de Pedro Sánchez. A oposição continua a exigir a demissão e até os aliados fazem pressão, mas Sánchez não cede e diz que eleições só em 2027.

O último mês tem sido especialmente complicado para o governo espanhol, liderado pelo socialista Pedro Sánchez. As mensagens entre Sánchez e José Luis Ábalos, ex-ministro dos Transportes, Mobilidade e Agenda Urbana, publicadas pelo El Mundo, e as declarações de Javier Pérez Dolset ao El Confidencial que demonstram que «Pedro Sánchez e Santos Cerdán sabiam e dirigiram a operação para obter informações comprometedoras dos investigadores da Unidade Central Operativa (UCO) da Guardia Civil e das restantes pessoas e entidades que o Governo colocou na sua mira», juntamente com outros casos, levaram a oposição a convocar uma manifestação sob o lema «Máfia ou Democracia» que contou com a presença de milhares de espanhóis em Madrid. Os próprios membros da esquerda, inclusive os que fazem parte quer do governo quer da maioria parlamentar que o suporta, pedem um apuramento sério de responsabilidades.

O relatório

Mas foi ontem que caiu a maior ‘bomba’ em Ferraz, sede do PSOE, e na Moncloa, residência oficial do Presidente do Governo. A UCO lançou relatório que se estende por 500 páginas com informações avassaladoras e que envolvem os mesmos protagonistas: Santos Cerdán, Ábalos e, naturalmente, Pedro Sánchez. Pode apurar-se a gravidade das conclusões do relatório, entre outras coisas, pelo simples facto de um dos braços da Guardia Civil atribuir o título de «organização criminosa» à cúpula do Partido Socialista de Pedro Sánchez.

Em causa estão várias questões, mas sobressaem principalmente duas: as comissões avultadas obtidas através da adjudicação de obras públicas e a fraude eleitoral nas primárias do PSOE em 2014 – eleições das quais Sánchez emergiu como vencedor. Por exemplo, o jornal espanhol The Objective publicou, ontem, uma notícia onde diz que «o relatório da Unidade Operacional Central (UCO) da Guardia Civil revela que o ex-ministro dos Transportes, José Luis Ábalos, o seu conselheiro de confiança, Koldo García, e o atual número três do PSOE, Santos Cerdán, participaram em adjudicações a favor da empresa de construção Acciona em troca do recebimento de 620.000 euros». O The Objective passa a citar diretamente o relatório, que diz o seguinte: «As contrapartidas económicas supostamente provenientes da Acciona, recebidas por Ábalos e Koldo, e geridas por Santos Cerdán, ascenderiam a 620 mil euros, embora, na opinião de Koldo, ainda houvesse 450 mil euros pendentes de pagamento». «Para estas ações», continua o relatório, «que teriam permitido a manipulação dos processos de contratação, Koldo terá recorrido à então presidente da ADIF, Isabel Pardo de Vera (acusada no ‘caso Koldo’), e ao diretor-geral de Estradas, Javier Herrero, cada um na sua esfera de ação».

No que diz respeito à fraude eleitoral nas primárias do PSOE de 2014, o relatório revela uma mensagem em que Santos Cerdán diz «quando ninguém te esteja a ver, metes dois boletins de voto» a Koldo García. Importa relembrar que Pedro Sánchez, na campanha para essas eleições internas, percorreu o país com Cerdán, Ábalos e Koldo num Peugeot – razão pela qual são conhecidos como «o grupo do Peugeot» –, e o então candidato à liderança socialista chegou a dizer «jogo limpo contra as más práticas».

Sánchez resiste, para já

Naturalmente, todo este enredo coloca o governo em xeque. Trata-se de casos de gravidade extrema, mas, mesmo assim, Pedro Sánchez resistiu a este abalo, ainda que o governo possa ficar debilitado, até porque os seus parceiros, tanto de coligação quanto de suporte parlamentar, exigem responsabilizações imediatas e fortes. Por exemplo, Mónica Garcia, atual ministra da Saúde e porta-voz do Más Madrid, escreveu na sua conta oficial da rede social X que «o que temos estado a ouvir nas últimas horas é muito grave. É altura de tomar medidas decisivas e sem restrições. Santos Cerdán tem de sair e o PSOE tem de dar todas as explicações necessárias. Sejamos dignos do nosso país». Também Gabriel Rufián, do Esquerda Republicana da Catalunha, pediu explicações: «No final de contas, a pergunta que muita gente neste país se faz é: onde está o Presidente do Governo?». No meio mediático, Antonio Maestre, jornalista e escritor assumidamente de esquerda, diz que não vê «qualquer saída para o PSOE com este relatório. Santos Cerdán tem de se demitir hoje, mas não creio que isso seja suficiente. Não há defesa possível ou contexto adequado que possa justificar as conversas que foram incluídas».

Cerdán, que foi ‘apanhado’ a ler o relatório em pleno Congresso, já se demitiu, mas continua a insistir na sua inocência, enquanto o presidente do Governo, que estava a bordo do Falcon, voltou para Madrid para prestar declarações à imprensa na sede do PSOE. Sánchez pediu desculpa «à cidadania» e prometeu uma «auditoria externa» às contas do partido, bem como uma «reestruturação» na cúpula socialista. O chefe do executivo espanhol disse que se mantém para «defender um projeto político e isso vai para além da sigla do Partido Socialista», afirmando que «não haverá eleições até 2027». Ainda houve oportunidade para se distanciar de Cerdán: «Não devíamos ter confiado nele», disse.

Independentemente de tudo isto, o Centro de Investigação Sociológica (CIS) espanhol, liderado por José Tezanos, lançou hoje uma sondagem que, mesmo refletindo já o impacto do caso de Leire Díez, dá uma vantagem de 7% ao PSOE sobre o partido da oposição, o Partido Popular. Gonçalo Dorotea Cevada, jurista e residente em Madrid por três anos, diz ao Nascer do SOL que «a última sondagem do CIS é, tal como todas as que a antecederam, mais um exercício de estatística fabricada, de fraude científica e, sobretudo, de propaganda, do que um retrato do sentimento eleitoral do momento político espanhol». «As sondagens do CIS – um organismo público liderado por um militante do PSOE», continua, «tornaram-se meme político, e são uma caricatura da degradação institucional que se vive em Espanha. São, em resumo, a praxis sanchista em esteroides».

No que toca à previsão de queda do governo, o jurista disse, antes de se saber a decisão do Presidente do Governo, que não sabia se Sánchez cairia. Isto porque «os últimos dois anos mostraram que Pedro Sánchez não tem um projeto de país, mas um projeto de permanência no poder. De resistência». Gonçalo Dorotea Cevada reforça ainda a questão dos equilíbrios parlamentares, dizendo que Sánchez se manterá no poder «enquanto o PSOE, a esquerda radical e os independentistas – de esquerda e de direita – não o quiserem derrubar. E este ponto é fundamental para responder à pergunta ‘haverá eleições antecipadas?’: Puigdemont [líder do Junts], a ERC ou o Bildu [partidos separatistas catalães e basco, respetivamente] preferem manter um Sánchez politicamente debilitado e acossado pela corrupção, ou fazer aprovar uma moção de censura do PP, entregando a liderança do Governo a Feijóo?». «A resposta parece óbvia», conclui.

Assim, este é mais um episódio, talvez o mais importante e revelador até agora, do enredo político espanhol que tem deixado Pedro Sánchez e o Partido Socialista cada vez mais debilitados.