Como vê o fenómeno em torno dos bebés reborn? É uma moda passageira ou poderá tornar-se uma tendência?
Poderá passar como tantas outras, mas não posso fazer futurologia. É relevante percebermos que isto vem já desde os anos 80, mas que viralizou agora, o que mostra que não terá tanto a ver com o facto de as pessoas estarem mais diferentes do que estavam no passado. Agora tem assumido estes contornos que são um bocadinho mais chocantes, mas que tem muito a ver com a questão das redes sociais e a viralização que vem daí. Por outro lado, também se dá depois um destaque maior a alguns casos que são particulares. A verdade é que em tantos outros fenómenos também fomos vendo isto, quando falamos na identidade de género depois surgem sempre alguns exemplos radicais de pessoas que se identificam como sendo cães ou gatos. Percebemos que são casos que existem, como é evidente, mas são casos muito particulares e que têm de ser analisados e avaliados caso a caso para se perceber o que se passa naquela situação concreta. Penso que neste caso dos bebés reborn possa ser algo deste género, em que depois temos alguns casos extremos, já ouvimos falar das maternidades, da forma como se compra e o que se está a potenciar. Mas também acredito que exista uma dimensão económica.
Estamos a falar de um bebé que custa centenas de euros…
São coisas caras. Há uns mais baratos, outros mais caros. Mas no mundo de hoje estamos cada vez mais a encontrarmos respostas, coisas que se vendem às pessoas para algum tipo de regulação emocional. E, portanto, explora-se muito esta dimensão emocional das pessoas, por um lado, que depois pode, às vezes, ter consequências mais difíceis, por outro.
Chegou a ser falado que esses bebés foram idealizados para idosos com Alzheimer ou para pessoas que estavam a sofrer processos de luto…
São estudos que existem na literatura científica, não são muito frequentes, porque isto nunca foi explorado, possivelmente porque não se colocaram as questões da forma como se estão agora a colocar. Foi e tem sido utilizado, mediante um conjunto de artigos que estão publicados no trabalho com pessoas idosas, sobretudo com Alzheimer e que, de alguma forma, era uma maneira de as manter um bocadinho agarradas ao mundo, de trabalhar com elas as emoções e de lhes proporcionar algum tipo de bem-estar e de regulação emocional. Isso claramente é uma das utilizações para estes bebés. Depois há algumas coisas, que centradas com ajuda profissional poderia servir como orientação de alguns processos de luto, no sentido de ajudar as pessoas a conseguirem exprimir algumas emoções que pudessem estar mais reprimidas. No entanto, podem ser acompanhadas pelas dificuldades no sentido oposto de as pessoas criarem uma vinculação grande demais e de poder criar uma espécie de negação em relação ao luto e, como tal, este luto não ser tão bem resolvido. No entanto, o que motiva a nossa conversa não é algo que tenha sido explorado. Fartei-me de procurar quando este fenómeno começou a surgir, fui tentar explorar o máximo possível para conseguir refletir sobre isto e não encontrei nada. É evidente que podemos ir pegando nestas coisas a partir do que sabemos de outras, mas em relação aos bonecos reborn não há rigorosamente nada, o que significa que é claramente um fenómeno que resulta muito mais desta viralização por ter aparecido nas redes sociais. Não sabemos se vai desaparecer de repente, se vai deixar de se falar e se os casos que nos vão chamando a atenção continuarão a ser poucos ou se será algo que se irá tornar problemático, o que não antevejo. Aí, naturalmente, vai ter de se perceber melhor porque é que isto acontece. Neste momento preocupa-me mais, por exemplo, o impacto dos modelos de linguagem de inteligência artificial que agora existem, tipo GPT e outros afins, e no tipo de relações vinculativas que as pessoas criam com estes modelos. Aqui o que temos, se quiser, são uns bonecos que são parecidos com bebés e, em função disso, pode representar a vivência da maternidade sem as dificuldades que a maternidade provoca, em que não acorda a meio da noite, nem fica doente.
Há uns anos assistimos à moda do Tamagotchi [‘animais de estimação’ eletrónicos que tinham de ser cuidados e alimentados] mas por não haver redes sociais não teve tanto impacto?
Exato, porque as redes sociais podem potenciar o aumento do número de pessoas que exprimam estas coisas, primeiro porque se tornam mais visíveis e depois porque encontram uma comunidade. As redes sociais têm esta particularidade de criar uma bolha e de repente essas bolhas dão a sensação de que há muita gente. Então de repente eu que até estou a criar esta ligação vou encontrando pessoas que me reforçam esta pseudo sensação de adequabilidade em relação a isto. Mas estou a dizer isso, deduzindo de outros fenómenos que foram potenciados pelas redes sociais. A particularidade destes bebés é o facto de serem muito realistas, o que facilita esse efeito de mais pessoas poderem ir um bocadinho mais longe do que aquilo que seria razoável nestes tipos de coisas.
Portugal ainda não assistiu a casos como os que se vê no Brasil, como simular partos, idas às urgências dos hospitais…
Não, mas acaba por se se criar sempre um nicho. Aliás, não é preciso vender muitos para se ganhar dinheiro e em países muito grandes com cidades e comunidades muito grandes, o pouco torna-se muito e torna-se o suficiente, se calhar, para alimentar um negócio desse género.
Mas o suficiente para um homem no Brasil bater num bebé verdadeiro a pensar que não era…
Já estamos a falar no sentido negativo do que isto provoca. Voltamos aos fenómenos de polarização, que são típicos nestas coisas, infelizmente, e que se assiste em todas as áreas da nossa sociedade. As pessoas, seja em sentido positivo, seja em sentido negativo, ficam demasiado envolvidas emocionalmente com estas coisas e acabam por ter este tipo de comportamentos.
Quem leva estes casos ao extremo poderá ser indício de algum transtorno?
Acredito sinceramente que os problemas graves neste tipo de coisas verifica-se em pessoas que têm problemas prévios. E quando surge o bebé reborn, esta vinculação faz-se em função disso porque as pessoas têm esses problemas prévios, como poderia surgir outra coisa qualquer e que pudesse ter o mesmo impacto. Isto para não estarmos a dizer que a existência dos bebés é potencialmente geradora de patologia, não é isso, mas há uma patologia prévia e os bebés acabam por ser o veículo ou o estímulo, se quiser, que forma torna isso evidente. Agora, é evidente que quanto mais isto viraliza, quanto mais as pessoas encontram uma comunidade de pessoas que têm os mesmos prazeres ou as mesmas ideias ou as mesmas vivências mais fácil torna a pessoa deixar-se levar por esta fantasia e que, evidentemente, vai sempre acabar acabar mal porque vai provocar uma desilusão, vai isolando mais as pessoas que vivem durante algum tempo nesta expectativa de que aquilo é suficiente para conseguirem estar bem. E nesse caso, agravam os problemas prévios. É evidente que essas pessoas precisam de ajuda e precisam de intervenção, como já precisam antes.
Mas cujo problema se tornou mais evidente…
Torna-se mais evidente. E numa sociedade cada vez mais focada numa espécie de individualização, onde parece que tudo o que tem sucesso – e é isso que tem sido explorado do ponto de vista comercial – são coisas que nos permitem estar mais entretidos sozinhos. E confunde-se liberdade ou autonomia com a ideia de ‘não preciso de ninguém para poder estar bem’, o que evidentemente, é um erro. Em função daquilo que é a nossa natureza social todos somos diferentes e todos temos, naturalmente, necessidades diferentes mas, evidentemente, que nós construímos através dos outros e através das relações com os outros. Posso dar o exemplo de um amigo que tem sempre as tecnologias primeiro do que os outros e recordo-me que quando apareceu o primeiro tablet disse-meque com isso conseguia estar horas entretido sozinho. Muitas vezes, a tecnologia dá a ideia e a sensação de que não precisamos de mais ninguém.
Este exagero comportamental em torno dos bebés reborn pode ser comparado em alguns casos com o que se verifica com os animais de estimação?
Diria que podemos assistir a relações patológicas também a esse nível. Mas as pessoas vão tendo os cães ou os gatos e não faz, pelo menos, a pessoa sentir-se tão estranha. É evidente que também podemos falar perfeitamente das relações patológicas com o animal. A diferença, diria, terá a ver com o facto de muito mais pessoas terem relações com animais, não desse nível, como é evidente, mas a outros níveis. Esta ideia de antropomorfizar um bocadinho o animal e, de alguma maneira, ter com ele uma relação de elementos da família não me preocupa tanto, precisamente, porque hoje tem mais a ver com a ideia de conseguir dar a esses animais essa relação. Também não nos podemos esquecer que há mais pessoas a viver de forma isolada, mas o animal não tem de ser substituto de coisa nenhuma, como é evidente, mas também sabemos que pode ser. No entanto, o animal sempre nos devolve qualquer coisa. O boneco tem mais dificuldade em devolver, mas entra tudo no campo da fantasia e da representação. A vinculação a um animal é, se quisermos, mais normativa do que a vinculação a um boneco, independentemente de as crianças terem vinculações a bonecos, a que chamamos na psicologia os objetos transacionais que ajudam a criança a lidar com momentos de menor positividade emocional, etc. que lhes dão um conforto naquilo que é o seu crescimento em direção à autonomia que traz momentos assustadores. E é, de alguma forma, isso que pode estar a acontecer com estes bonecos, em que estas pessoas podem criar esta vinculação numa fase diferente da vida, com significados diferentes e menos adequados. Nos animais, apesar de tudo, existe uma relação porque há, evidentemente, uma ação e uma reação por parte do animal e a vinculação é mais fácil de se fazer. Mas essa relação não deve ser prevalecer em relação a outras relações humanas que são sempre importantes para nós ao longo de toda a vida. As relações humanas são uma necessidade absoluta em pequeninos, depois vamos, naturalmente, aprendendo a estar sozinhos e temos também de saber estar sozinhos, mas sabemos que temos esta capacidade e esta vontade de criar relações com outros e viver relações com outros. Se essa relação for impeditiva ou diminuir aquilo que é a minha apetência para desenvolver outro tipo de relações colocaremos o mesmo nível de problema, como é evidente.
Devemos estar atentos a que tipo de sinais de alerta?
Quando há ideia de substituição. O problema é sempre a substituição e se isto levar a pessoa a evitar em estar com outras pessoas, até porque, quando falamos destes bonecos, isso pode ser natural, porque depois há um estigma associado. E acabam por se afastar ainda mais dos outros para poderem viver esta representação ou a juntarem-se só às tais comunidades virtuais que tenham experiências semelhantes às suas. Isto pode isolar as pessoas para uma espécie de mundo fantasioso, que acaba por ser marginalizador e que aumenta as dificuldades porque quanto mais isolados estamos do mundo menos capacidade temos de continuar a desenvolver mecanismos de solução de problemas e em conseguir lidar com aquilo que são as dificuldades naturais das relações entre as pessoas.