Entre a luz de Abraão e as trevas de Khomeini

O que os líderes árabes recusavam, desde o início, não era uma política ou uma fronteira: era a própria ideia de uma soberania judaica na região, fosse ela qual fosse.

O Governo de Sua Majestade foi assim confrontado com um conflito irreconciliável de princípios. Há na Palestina cerca de 1.200.000 árabes e 600.000 judeus. Para os judeus, o ponto essencial de princípio é a criação de um Estado judaico soberano. Para os árabes, o ponto essencial de princípio é resistir até ao fim à criação de uma soberania judaica em qualquer parte da Palestina.”

Foi nestes termos que Ernest Bevin, então Foreign Secretary, apresentou ao Parlamento britânico, a 18 de Fevereiro de 1947, a sua leitura do impasse na Palestina: “an irreconcilable conflict of principles”. De um lado, os judeus, determinados a fundar um Estado judaico numa parte da Palestina; do outro, os árabes, irredutíveis na recusa de qualquer soberania judaica, em qualquer parcela daquele território. Para Bevin (que, lembremos, era assumidamente anti-sionista, considerando mesmo a Declaração Balfour um desastroso documento de política externa), este impasse transcendia a esfera estritamente geográfica ou diplomática: o impasse era, na verdade, de natureza ontológica.

O “conflito irreconciliável de princípios” não traduzia um mero litígio sobre fronteiras, estatutos administrativos ou modelos de coabitação territorial. Em causa não estava uma negociação, por mais delicada, entre dois projectos nacionais concorrentes, ambos dotados de reivindicações de soberania intrinsecamente legítimas, mas circunstancialmente conflituantes. Em confronto, não estavam dois povos a disputar o mesmo espaço, a aspirar ao mesmo chão, mas dois princípios fundacionais mutuamente excludentes.

De um lado, o gesto de fundação e auto-determinação – a vontade de instituir um lar nacional judaico; do outro, a recusa implacável e intransigente de permitir que esse gesto tivesse lugar. O conflito não opunha aspirações simétricas (como sugeriria mais tarde a fórmula convencional da two-state solution), mas um impulso de afirmação e uma determinação de negação. Como no julgamento bíblico das duas mães reclamando o mesmo bebé perante Salomão, a verdadeira questão não residia na divisão do filho, mas na disposição de o deixar viver.

Dado que o mandato britânico não conferia autoridade para a imposição de uma solução e as negociações tinham falhado, o Governo de Sua Majestade decidiu remeter a questão à ONU, reconhecendo que os compromissos assumidos no âmbito do mandato eram, em última análise, irreconciliáveis. Desde então, tudo o que se seguiu – até aos nossos dias – não foi senão a manifestação prolongada desse conflito inaugural entre afirmação e negação, entre a determinação de existir e a determinação de impedir essa existência.

Em 1947, convém lembrar, o Estado de Israel ainda não existia: não havia “colonatos”, nem “ocupação”, nem “bloqueios”, nem “refugiados”, nem qualquer regime que pudesse ser descrito como “apartheid”. Nenhuma das condições hoje invocadas como causas do conflito existia naquele momento em que o conflito já estava plenamente em curso – e era já, segundo Bevin, de natureza irreconciliável. O absurdo lógico actual é flagrante: pretende-se explicar a origem da recusa pela consequência daquilo que foi recusado; pretende-se explicar a origem de uma rejeição apelando a fenómenos que ainda não tinham ocorrido – como se o efeito, num passe de mágica, pudesse preceder a causa, e a história, num acto de capricho, estar em contradição com a sua própria cronologia.

O que os líderes árabes recusavam, desde o início, não era uma política ou uma fronteira: era a própria ideia de uma soberania judaica na região, fosse ela qual fosse. Paradoxalmente, os Estados vizinhos (como a Síria, o Líbano, o Iraque ou a Jordânia) foram todos criados a partir dos mesmos mecanismos mandatários impostos pelas potências coloniais, partilhando a mesma origem artificial e exógena – “colonialista” e “imperialista”, segundo a gramática em voga – que constantemente se imputa a Israel. A sua soberania e legitimidade, embora decorrentes de arranjos coloniais ou sob tutela imperialista, nunca foram postas em causa, muito menos objectos de rejeição existencial.

A Jordânia é, aliás, um caso emblemático. Segundo conta a anedota histórica, foi “com um simples traço de caneta (stroke of a pen), numa tarde de domingo no Cairo em 1921” que Winston Churchill terá criado o Mandato Britânico da Transjordânia (hoje conhecido como o Reino Hashemita da Jordânia). Anos mais tarde, Churchill declararia no Parlamento: “O Emir Abdullah está na Transjordânia, onde o coloquei numa tarde de domingo em Jerusalém”. De resto, basta contemplar a linha ziguezagueante da fronteira oriental da Jordânia com a Arábia Saudita para perceber por que razão lhe chamam, com ironia, “o soluço” ou “o espirro” de Churchill (Winston’s hiccup, Churchill’s sneeze). Soluço imperial ou espirro colonialista, ninguém contesta, contudo, a soberania dos jordanos. A dos judeus – apenas a dos judeus –, sim.

A recusa árabe, que não nascia de uma luta contra o colonialismo enquanto tal, carrega uma genealogia mais profunda, enraizada na história simbólica da própria negação. Quando, no século II, o imperador Adriano esmagou a revolta de Bar Kokhba, não se contentou com a vitória militar. Rebaptizou Jerusalém como Aelia Capitolina, proibiu a entrada dos judeus na cidade e enterrou o nome da Judeia debaixo de uma designação punitiva e humilhante chamada Syria Palaestina, visando romper assim o vínculo entre um povo e o seu território. Inscrita no mapa imperial, uma damnatio memoriae que dura até hoje. A palavra Palestina, hoje como ontem, designa não a afirmação, mas a negação, de uma soberania: a dos judeus.

É essa operação simbólica que reverbera nas catacumbas do discurso político que, nos nossos dias, recusa a legitimidade de Israel, o Judeu Colectivo Soberano. Da Roma antiga à Roma moderna, dos túneis de Sinwar aos mísseis de Khomeini, dos brados fanáticos de “Morte a Israel!” aos cânticos coreografados que exigem uma Palestina livre “do rio ao mar” (versão adocicada para palatos ocidentais da fórmula árabe Min il-ṃayye la-l-ṃayye, Falasṭīn ʿarabiyye: “Da água à água, a Palestina é árabe”), o conflito revela a sua verdade não na dimensão territorial, mas existencial. Quando, quase dezanove séculos depois, se ouve, nas avenidas mais centrais e nas universidades mais prestigiadas, o slogan “From the river to the sea”, torna-se impossível não reconhecer aí o eco longínquo, mas ininterrupto, do gesto de erradicação – póstumo, mas ainda vivo – de Adriano.

O que se contesta, na verdade, não é o que Israel faz, mas o que Israel é: judeu. Não é a ocupação que incomoda, é a existência: judaica. O que verdadeiramente perturba não é que o judeu seja agressor, mas que seja senhor do seu destino. Para muitos, de ontem e de hoje, o judeu permanece tolerável apenas enquanto figura submissa, assimilada ou, como não há muito tempo, destinada ao extermínio. É também por isso que o anti-sionismo se tornou o novo batom do velho anti-semitismo, uma espécie de anti-semitismo respeitável, um anti-semitismo de lábios pintados.

E é ainda por isso que o mundo – que nunca foi propriamente um refúgio para os judeus – se apressa, das resoluções da ONU às manifestações “humanitárias”, das chancelarias do Ocidente aos vídeos do TikTok, a condenar o Estado dos judeus: não por matar, mas por sobreviver. O mais chocante, afinal, não é que Israel dispare: é que se defenda. É que dispare na defesa da sua condição – precisamente, crime supremo, arquetípico, sem absolvição – de judeu. O judeu morto, afinal, sempre foi uma inspiração singular e tradicional para poetas e carrascos. Que os judeus tenham deixado de inspirar listas de Schindler e meninos do pijama às riscas para voltar a inspirar caricaturas e libelos demonológicos saídos directamente dos Protocolos dos Sábios de Sião, é talvez o sinal mais claro dessa evolução: o judeu, finalmente soberano, é ainda mais intolerável do que o judeu exterminado.

A longa guerra do Irão contra Israel deve ser entendida como parte integrante dessa mesma genealogia sombria de negação. O regime dos ayatollahs, Adrianos de turbante envoltos numa escatologia totalitária, fez da negação de Israel o seu dogma fundador. A sua hostilidade não é resposta a políticas concretas, mas à própria presença dos judeus como entidade soberana numa região em que – histórica e teologicamente – deviam ser apenas submissos. Os proxies de Khomeini – Hamas, Hezbollah, Houtis – não são, como a comunicação social ocidental gosta de romantizar, movimentos de resistência, mas extensões armadas dessa teologia da aniquilação. O ódio que os anima é anterior a qualquer mapa e independente de qualquer concessão territorial. Israel, que sempre fez a paz quando teve parceiro com quem fazê-la (Egipto e Jordânia, desde logo; mais recentemente, no contexto dos Acordos de Abraão, os Emirados, o Bahrein, o Sudão e Marrocos), representa menos de 0,002% do território do mundo islâmico. Não, nunca foi sobre território. A bandeira dos Houtis não deixa, senão para os idiotas úteis ocidentais, sobretudo com qualificações superiores, grande margem para dúvidas: nela se inscreve, sem eufemismos, a negação: “Morte a Israel” e, não por acaso, “Maldição aos judeus”.

O conflito entre judeus e árabes não começou com a vitória de 67, nem com a fundação de 48. A sua raiz remonta a um ponto anterior e mais profundo: à rejeição inaugural da própria existência de uma soberania judaica na terra de origem dos judeus. Como, em 1947, reconheceu o anti-sionista Ernest Bevin. Neste sentido, também o duelo actual entre Israel e o Irão não é, e nunca foi, sobre terra, nem sequer, em última análise, sobre um programa nuclear (que constitui, na verdade, o prolongamento tecnológico do conflito inaugural): é sobre a alma das civilizações. Nos desertos de Dasht-e Kavir e do Neguev, bem como nos céus cruzados de Teerão e de Jerusalém, está em curso um duelo – talvez o duelo final – entre a luz de Abraão e as trevas de Khomeini.

O apelo a Abraão, inscrito nos acordos de 2020, recorda-nos que o ódio não é destino. Sempre que uma nação islâmica consegue romper o ciclo da decadência, da corrupção e da vitimização, descobre que não precisa do Judeu Colectivo como bode expiatório dos seus fracassos e das suas tragédias. Ao contrário do delírio escatológico khomeinista, que oferece às suas populações apenas o martírio, a cela ou a cova – e à região, guerra e ruína –, alguns países islâmicos encontraram, no reconhecimento de Israel e no reencontro com os judeus, não a negação de si mesmos nem a renúncia à sua fé, mas uma chave de ouro para a segurança, a prosperidade e o renascimento.

Pela primeira vez em muito tempo, líderes árabes ousaram romper o ciclo vicioso da recusa, reconhecendo Israel não como intruso, mas como vizinho legítimo. E, mais ainda, como irmão. No nome desses acordos está uma chave hermenêutica profunda, e nada fortuita: Abraão, pai comum de judeus e árabes, símbolo de uma origem partilhada, anterior à divisão e ao ressentimento. O que nos Acordos de Abraão se afirma é mais do que uma reconciliação política: é um reencontro entre herdeiros, um reconhecimento concreto da dignidade soberana do outro. A paz duradoura só será possível quando essa rejeição originária for definitivamente rejeitada. Quando, tendo rejeitado a rejeição, os árabes virem no judeu o irmão reencontrado em vez de o inimigo procurado.

Como costuma dizer, de forma particularmente bela, a intelectual israelita Einat Wilf, o conflito começará a terminar no dia em que os árabes olharem os judeus olhos nos olhos, de igual para igual, de irmão para irmão – e finalmente lhes disserem: “Bem-vindos de volta a casa.” 

Eurodeputado eleito pelo Chega