A democracia em coma

Não é necessário ir a Budapeste para encontrar um exemplo de democracia com tiques iliberais. Basta ir até Madrid

O debate atual sobre o estado de saúde das democracias ocidentais tornou-se inevitável. O que é positivo. No final de contas, é sob um regime democrático de cariz liberal que os nossos direitos fundamentais – maioritariamente negativos – estão assegurados, que os poderes estão devidamente separados e que existe menos risco de vermos a nossa liberdade natural conculcada. É também inegável que as nossas democracias enfrentam múltiplos desafios em várias geografias. Mas se o debate e o confronto de ideias, uma arena na qual os princípios liberais – mesmo que muitos fujam do termo por preconceito ideológico ou ignorância – se superiorizam a quaisquer outros sistematicamente, é a cura, a seletividade no momento de identificar as ameaças e o cancelamento de outras ideias, por muito horríveis que possam ser, não o é certamente. E não só não é a cura, como é uma agravante num diagnóstico que já se revela bastante reservado.

O sistema tem, principalmente na última década, tentado defender-se da ameaça populista da direita. São fascistas, racistas, xenófobos, reacionários, enfim, todo um cardápio de caricaturas e terminologias do qual se pode escolher a opção favorita, mas que acaba sempre por ser amalgamado naquele que se tornou o ex-líbris da esquerda: a extrema-direita. Isto não significa, de todo, que algumas das preocupações e acusações não sejam válidas ou coerentes. São vários os exemplos em que a direita nacionalista – uma fação que, ela própria, se divide em vários subgrupos específicos – mina as bases da democracia liberal. Mas não são os únicos.

O exemplo favorito da esquerda, do centro-esquerda e até do centro-direita é a Hungria de Viktor Orbán. Mas convém relembrar, principalmente aos social-democratas, em evidente declínio um pouco por toda a parte, que não é necessário deslocar-se até Budapeste para encontrar um exemplo de democracia com tiques iliberais. Em Madrid, mais especificamente no Palácio da Moncloa, a pouco mais de 600km de Lisboa, assistimos, quiçá, à maior ameaça à democracia e ao estado de direito em toda a Europa. 

Pedro Sánchez é primeiro-ministro após ter perdido as eleições – um exemplo do esplendor democrático quando funciona a favor da esquerda que, justiça seja feita, não lhe é exclusivo –, depende de partidos separatistas para suportar uma maioria parlamentar, está envolvido num enredo de escândalos inqualificáveis que, por cegueira ideológica ou pelo tão prezado combate à extrema-direita, são vistos como pequenos percalços ou são encobertos, e não aprova um Orçamento do Estado desde 2022. Nesta última matéria, o Pedro Sánchez de hoje poderia aprender com o Pedro Sánchez de 2018, quando pediu a Mariano Rajoy que convocasse eleições na eventualidade de não aprovar o orçamento.

Falando em orçamentos, e também porque ontem se cumpriu o quadragésimo aniversário da adesão de Portugal e de Espanha à CEE, recordemos Felipe González, ex-líder do PSOE que assinou o Tratado de Adesão e uma figura-chave da transição democrática espanhola. Quando, em 1996, González não aprovou o orçamento, convocou eleições que acabaria por perder para Aznar. A salvaguarda da democracia começa por aqui, aceitando as regras do jogo mesmo quando nos são desfavoráveis. 

Assim, os que acreditam ser guardiães únicos, porque moralmente superiores, da democracia são dos que, por interferência direta ou ignorância racional, mais contribuem para a colocar em estado comatoso.