Descarbonização dá passos mas ainda há muito por fazer

A Comissão Europeia tem em consulta pública uma proposta para acelerar a descarbonização industrial. O Nascer do SOL falou com alguns dos setores de atividade abrangidos sobre o desafio de reduzir as emissões sem perder competitividade.

A Europa quer caminhar a passos largos no sentido da descarbonização – processo de redução ou até eliminação da emissão de dióxido de carbono (CO2) e outros gases de efeito estufa na atmosfera. A meta é atingir a neutralidade carbónica e climática até 2050, com recurso a um processo de transição energética, o que implica uma mudança na produção e no consumo de energia. Para isso, tanto países como empresas têm de mudar o seu comportamento e Bruxelas vai acenando com apoios.

Em abril, a Comissão Europeia lançou uma consulta pública sobre a proposta do Industrial Decarbonisation Accelerator Act, «que visa garantir que as indústrias intensivas em energia reduzam as suas emissões sem perder a competitividade global». O processo de consulta deste Pacto da Indústria Limpa que conta com mais de 100 mil milhões de euros para impulsionar a competitividade da indústria da União Europeia decorre até ao próximo dia 9 de julho.

«A União Europeia tem de enfrentar urgentemente três desafios em simultâneo: uma crise climática e as suas consequências, preocupações em matéria de competitividade e resiliência económica. Tal como salientado no relatório Draghi e na Bússola para a Competitividade, as políticas de descarbonização são um poderoso motor de crescimento quando bem integradas nas políticas industrial, económica, comercial e de concorrência», diz o Executivo comunitário.

E alerta: «Os setores industriais europeus, em especial os que se deparam com preços elevados da energia e uma concorrência mundial feroz, enfrentam desafios existenciais. A Europa corre o risco de ser ultrapassada por outras grandes potências em termos de aumento da produtividade. É necessário agir rapidamente».

De acordo com o Pacto da Indústria Limpa, até 2050 deverá haver uma economia descarbonizada, mas antes disso, até 2040, há que alcançar a meta intermédia de redução de 90% das emissões líquidas de gases com efeito de estufa. «Este quadro pode impulsionar a competitividade, uma vez que proporciona segurança e previsibilidade tanto às empresas como aos investidores. Este objetivo será alcançado estimulando a competitividade dos fabricantes que impulsionem a descarbonização pela inovação, criem empregos de qualidade e contribuam para a nossa autonomia estratégica aberta, respeitando e aplicando plenamente o princípio da neutralidade tecnológica para os Estados-Membros, sempre que se justifique», explica a Comissão Europeia.

Portugal não escapa a estas metas e, apesar de, ao longo dos últimos anos, vários setores terem vindo a adotar medidas e a aderir a iniciativas para iniciar o seu processo de descarbonização, alguns responsáveis ouvidos pelo Nascer do SOL admitem que ainda temos um longo caminho a percorrer.

‘Questão incontornável’ para a indústria
O presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP) reconhece que descarbonização é, atualmente, «uma questão incontornável» e, como tal, representa um desafio significativo para as empresas, principalmente dos setores industriais que se coloca essencialmente ao nível energético e dos materiais. «As empresas, hoje, já não questionam se a descarbonização é ou não para ser feita, os problemas surgem do ‘quando’, ‘como’ e ‘quem’», revela ao nosso jornal o presidente da entidade, Luís Miguel Ribeiro.

No entanto, reconhece que as metas definidas pela União Europeia «são muito exigentes, começam pelas maiores empresas, mas exigem que estas alarguem a aplicação destes critérios na sua cadeia de valor, o que irá apanhar neste circuito muitas outras empresas, a maioria PME, que serão também obrigadas ao cumprimento destes objetivos», defendendo que cabe às associações empresariais, como a AEP, acompanhar este desafio que se coloca às empresas e a dar o seu contributo, nomeadamente ao nível da formação profissional e da promoção de ações de capacitação junto do tecido empresarial.

Ainda assim, Luís Miguel Ribeiro recorda que a União Europeia tem estado a rever as principais diretivas, «através dos pacotes Omnibus, que ainda não estão totalmente definidos e que vêm trazer algum alívio nas exigências às empresas, designadamente no que respeita à cadeia de valor», acrescentando que «as empresas têm vindo já a fazer o seu caminho neste sentido, mas a falta de definição das metas efetivas e dos respetivos tempos de implementação faz com que as empresas, naturalmente, procurem aguardar pelas regras finais para avançarem definitivamente. Aguarda-se com expectativa a redefinição destas regras, bem como pelas novas versões das normas de relato de sustentabilidade, incluindo as voluntárias para as PME, que a EFRAG [European Financial Reporting Advisory Group) se encontra neste momento a alterar».

E face à importância deste tema, o presidente da AEP considera que «o mais natural seria que uma significativa parte dos fundos estruturais a que Portugal teve direito fosse canalizada para este fim, fazendo com que setores ou regiões específicas – designadamente aquelas com maior vocação industrial e, consequentemente, maior potencial de descarbonização, fossem apoiados neste movimento de descarbonização, com a promoção da reconversão energética e a utilização de diferentes materiais, com reforço da adoção do modelo de economia circular, entre outras matérias, por forma a não comprometer a competitividade das empresas e dos respetivos setores».

Automóvel com regras apertadas
Para o secretário-geral da ACAP (Associação Automóvel de Portugal), o setor automóvel é um dos mais regulamentados em termos industriais na União Europeia, apontando para cerca de 100 regulamentos e diretivas, onde entram os objetivos de descarbonização, estando agora a ser discutidas as metas para a descarbonização dos pesados até 2040. «É sabido que a indústria automóvel é uma indústria limpa, no sentido que cumpre todas as diretivas e metas de regulamentos comunitários nos processos de produção. E ainda por cima, temos agora um novo regulamento que obriga em termos de economia circular a reutilização de materiais», diz Hélder Pedro ao Nascer do SOL.

É certo que a Comissão Europeia adiou algumas das metas previstas para este ano para 2028 face à retração do mercado e à redução da procura, nomeadamente na Alemanha e em França, sobretudo de veículos elétricos. «Não só foram adiadas as metas como os construtores de automóveis não vão pagar as multas pesadas que já estavam calculadas em 16 mil milhões», salienta.

O responsável admite que a indústria automóvel tem vindo a adaptar-se a estes desafios, daí colocar no mercado todos os dias veículos elétricos, no entanto, afirma que o setor «não pode obrigar» os consumidores a comprarem veículos elétricos. «Tem de haver uma motivação e o que dizemos é que a indústria cumpre o seu papel, mas não é suficiente. Tem de haver apoios, tem de haver incentivos», reforça. E aí apela ao papel do Governo, porque ao contrário do que acontece com as empresas que têm benefícios fiscal por renovarem as suas frotas elétricos, o mesmo não acontece com os particulares que esgotam rapidamente os subsídios que têm disponíveis.

Em causa está um apoio de quatro mil euros a compra de um veículo elétrico até 38.500 euros ou até 55 mil euros para carros elétricos entre 6-9 lugares
«O Governo tem de aumentar os apoios. Vendem-se quase 40 mil carros elétricos e depois os apoios esgotam nas 1.400 e tal unidades. Tem de haver um plano de incentivos maior e, por outro lado, é necessário redobrar a rede de carregamentos. É fundamental para a pessoa que compra o carro saber que vai viajar e que tem a segurança de ter uma rede de carregamento a nível nacional que seja eficaz e que não esteja avariada», alerta.

Outra medida que, segundo Hélder Pedro, poderia ajudar na aposta de adquisição de carros elétricos seria a reposição de medidas como a do incentivo ao abate, mas de aplicação alargada. «Não faz sentido ser aplicado tal como foi feito por este Governo na anterior legislatura, em que restringia este incentivo apenas à compra de elétricos».

E recorda a idade do parque automóvel em Portugal que não para de aumentar. «O parque automóvel dos ligeiros já passou os 14 anos, ou seja, já é bastante avançado, os comerciais ligeiros já vão em quase 16 anos e os carros que vão para abate têm em média 24 anos», lembrando que são estes que mais poluem, já que os atuais carros de combustão têm de respeitar regras mais apertadas.

Agricultura ainda com muito por fazer
A agricultura é outra das atividades que tem de acelerar no caminho da descarbonização. Ao Nascer do SOL, o secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) admite que o setor tem vindo a dar passos nesse sentido, mas também reconhece que «ainda há muitas coisas por fazer» e que é preciso «um empurrão do Governo português».
Um dos passos a dar, de acordo com o responsável, passa pela questão da produção de biometano através de restos de culturas e de abjetos dos animais, lembrando que é um processo que está a ser levado a cabo por vários países, mas que em Portugal «ainda está a dar os primeiros passos». E dá o exemplo de França que todas semanas abre dois biodigestores. «Em Portugal continuamos a fazer as coisas bem à maneira portuguesa e fruto da burocracia e de todas as questões relacionadas com estes projetos ainda estamos a dar os primeiros passos. Para fomentar este tipo de energia e para que se inicie o processo temos de apostar num tratamento semelhante ao que existiu na eólica e na solar, em que ao início tem de se dar um empurrão, tal como os franceses estão a fazer», considera.

O responsável afirma que alguns investidores já mostraram interesse em avançar, no entanto, essa intenção esbarra «na inércia do Estado que é muito grande» e no desinteresse que tem existido por parte do Governo nesta matéria. «Esta é uma área importante para o setor agrícola, porque além de produzir alimentos também pode produzir energia, no entanto, não vemos no Governo a mesma excitação que teve com os painéis solares ou com as eólicas».

Quanto às metas, Luís Mira diz que, em 2030, já é uma meta significativa, mas admite que não sabe como «se chega lá se não houver uma agilização de todos estes sistemas e processos», lembrando que a matéria de classificação dos subprodutos é uma dor de cabeça, uma vez que, «para a APA [Agência Portuguesa do Ambiente] é tudo resíduos e é tudo uma complicação para eles», recordando que demoraram 11 meses para considerar o bagaço de girassol um subproduto que os espanhóis sempre o consideraram. «Em Portugal é tudo assim e o ministério da Agricultura estava de acordo, mas a lentidão do serviço é assustadora», salienta.

Outro caminho a seguir pelo setor, segundo o secretário-geral da CAP, passa por apostar ainda mais na agricultura regenerativa. «É uma prática que desenvolve as capacidades do solo, nomeadamente através de bactérias e de minhocas no solo e da plantação de um conjunto de graminhas e de nabos, que tentam fazer o mesmo trabalho que faria uma charrua que é abrir o solo para que a água se infiltre, é reter azoto, fósforo para que a próxima cultura se faça», diz ao nosso jornal. Uma técnica que já existe em algumas partes do mundo e Portugal não fica alheio. «Já há agricultores que estão a ir por esse caminho, uma vez que emite muito menos do que aquilo que se fazia até agora, em que grande parte da capacidade produtiva era feita à base da mobilização do solo e de adubos orgânicos. Isto porque esta técnica diminui os fertilizantes já que o próprio solo consegue assimilar o azoto que está na atmosfera e o fósforo que existe no solo. No fundo pôr o solo a trabalhar para o agricultor e não o agricultor a trabalhar para o solo», acrescenta
É certo que Luís Mira acena com algumas inovações que foram apresentadas recentemente na Feira da Agricultura. Um desses casos foi a apresentação de dois tratores elétricos, assim como a apresentação de biosoluções, em que a Repsol apresentou um gás óleo feito totalmente de restos de plantas e de produtos agrícolas.

Ainda assim reconhece que, para desenvolver mais este trabalho, o Governo deveria ter utilizado a Política Agrícola Comum (PAC) para incentivar este tipo de práticas. «Já vamos a meio da Política Agrícola comum, já se começa a falar em Bruxelas no novo período de 2028-2034 e espero que o Governo vá por esse caminho. Isto é, que a PAC sirva para indicar um caminho ao agricultor, para lhe dar uma pista mais evoluída, mais sustentável do que aquela que existiu até aqui», conclui.